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Poemas do livro Vida pequena

ELEGIA AO IRMÃOZINHO MORTO

Meu irmão de olhos claros
apenas te sonhei a sepultura humilde
amiga de enfeites raros.
Meu irmão de olhos amigos
tua ausência me faz o convívio
de todos os amigos que me são caros.
Dormindo no limiar da vida
apenas te possuí no desejo
de assistir ao teu último suspiro.
Jazes na imensa solidão da terra
e mutismo que sempre me sugiro.
Não te admires por não te conhecer.
Por entre os túmulos floridos
ando a procurar teus olhos queridos
desejosos de me ver.
Por isso, meu irmão, és meu chorado
irmão, indiscutivelmente, absoluto.
Com esta quieta lágrima apenas
eu canto a elegia do teu luto.

O BISAVÔ

De outro, o cavalo fiel do avô aguarda.
Renato Pacheco. Cantos de Fernão Ferreiro 33.

Era uma vez um avô barbudo e grave
ele e o seu cavalo
um avô bisavô tataravô de todos nós
montado em seu cavalo branco
era uma vez não mais

Calça de mescla listada
sapatão de couro cru
solene no porte e ouro na lapela
e o seu cachimbo… ah! o seu cachimbo!

Quisera eu fazer uma ternura
pegar nestas mãos calosas, grávidas do tempo
o olhar longínquo e fero a dobrar oceanos
talvez se faça doce e próximo

Que aura me constrange, nobre velho, que aura?
De tudo quero ver a essência íntima
analiso, perscruto as marcas do tempo
escavo em tua face, áspera e severa
o menor traço, as razões invisíveis da pele
incinerados os limpos horizontes

Mas sobretudo teu cavalo…
que fizeram do teu cavalo branco
que me rouba os olhos da infância?
Não sei se vou no teu cavalo
ou me debruço na janela do tempo
lamentando o fluxo irremediável
a memória calcinada
o fatalismo das cinzas

OS HOMENS DE CÁQUI

Eles são reconhecíveis facilmente pela cor de seu uniforme, igual para todos e só a eles reservado. Tomás Morus. A Utopia.

Os homens de cáqui
saem do Admirável mundo novo de Huxley
e esperam nas calçadas da manhã
— despoetizados na intempérie.
Engolidos uniformes por ônibus classistas
perdem-se nas ruas e esquinas
computadorizadamente memorizados
todos com o mesmo destino.
Todos no mesmo ônibus
comprando o mesmo jornal
lendo as mesmas notícias.
Que fazem os homens de cáqui?
estes homens de cáqui
a vida de cáqui?
À tarde os homens de cáqui
saltam dos mesmos ônibus
vão para os mesmos apartamentos
gastar o mesmo salário
viver a mesma vidinha
— o Admirável mundo novo
desconhecido um sonho novo.
Ai! o horizonte se fecha de cansaço
sobre esta vida besta, meu Deus!

THE MEN IN KHAKI

They are easily recognized for their uniform color, the same for all of them and only for them reserved. Thomas More. Utopia.

The men in khaki
get out of Huxley’s Brave New World
and wait on the morning sidewalks
— not poetized in the inclemency.
Engulfed uniforms by class-conscious buses
are lost on the streets and corners
as if run by computer
all with the same destiny.
All in the same bus
buying the same newspaper
reading the same news.
What do the men in khaki do?
these men in khaki
is life khaki?
In the afternoon the men in khaki
get off the same buses
go to the same apartments
spend the same salary
live the same ordinary life
— The Brave New World
unknown new dream.
Oh! the horizon closes itself from weariness
over this silly life, my God!

[Translated by Marina Busatto.]

O CEGO DA FEIRA

O cego da feira açoita sua voz
sobre nossas cabeças.
O tom dorido prega pregos nos ouvidos.
A dor é grande, o violão dói
o rio sonoro derrama-se na calçada.
Esta dor dos olhos sem luz
olhos estáticos de estátua grega
incinerados os limpos horizontes.
Cédulas cruzados jogados à caixa
computam votos de compaixão
conferem a eleição da miséria
rapsodo de índias-guarânias e lero-boleros.
Somos essencialmente compradores de
módicas porções semanais
enquanto o cego semeia
o tom dorido do ofício
na feira pública.
A feira explode cenoura
em sangue de melancias
verdes verduras contrastam
outonais laranjas
permanentes bananas em pencas metódicas
a feira explode mamões inchados
sob o pregão da liquidação derradeira.
Enquanto especulamos
o cego delineia com voz imprecisa
as sombras da nossa homérica cegueira.

NA BOCA DO METRÔ

As portas abrem as portas fecham
As pessoas entram automáticas
As portas abrem as portas fecham
As pessoas saem mecanicamente
Assustador o trem desliza e pára
Assustador o trem pára e desliza
As portas abrem as portas fecham
As escadas levam as escadas trazem
As roletas rodam rodam as roletas
A mesma procissão comungando
à boca dos guichês. Amém.
Abre-fecha corre-pára sobe-desce
Vai-se uma estação outra mais mais outra
enfim dezenas de estações.
Vai-vem mecânico engole-cospe
A boca do metrô cospe o formigueiro
mas ah! um saxofone na boca da Carioca
enche a boca da Carioca de um som
melado misto de camelô e virtuose
entra pelos ouvidos sai pelos ouvidos
dos transeuntes do entra-e-sai
na boca do metrô na Carioca.
As pernas me levam os olhos me levam
Só o ouvido fica pegado no som
do saxofone que rosna canções sentimentais
na boca da Carioca.
Ai! que dor de miséria na garganta deste saxofone
que bota a boca no mundo
e abre uma ferida no tempo!

IN THE METRO MOUTH

The doors open the doors close
People go in, automatically
The doors open the doors close
People go out, mechanically
Frightening the train slides and stops
Frightening the train stops and slides
The doors open the doors close
The escalators take the escalators bring
The turnstyles rotate rotate the turnstyles
The same procession, taking Communion
at the booths’ mouth. Amen.
Open-close run-stop up-down
One station passes by another and another one
at last dozens of stations.
Mechanic come-and-go swallows-and-spits-out
The subway mouth spits out an ant-hill
but ah! a saxophone at the mouth of Carioca (*)
fills the mouth of Carioca with a sweet
sound mixture of street stands and virtuoso
goes in the ears goes out the ears
of the passers-by who come and go
in the mouth of Carioca.
My legs take me my eyes take me
Only my ear is stuck to the sound
of the saxophone that growls romantic songs
at the mouth of Carioca.
Ouch! what a pain of misery in this saxophone’s throat
that shouts from the rooftops
and opens a wound in time!

(*) Carioca is the name of a subway station in Rio de Janeiro. [NT]


[Translated by Marina Busatto.]

SONETO

Eu sou um homem como qualquer homem
que vive na rotina o dia-a-dia
mas, Deus do céu, os dias me consomem
a ruga aumenta, aumenta… quem diria?

Tenho uma casa onde as meninas brincam
nenhuma propriedade ou mordomia.
Vejo paredes de ilusões que trincam
e trinca a vida, o amor… que porcaria!

Se a vida é flor de feno que fenece
alguém a corta quando for preciso
sem discutir se a vida se merece.

Esta é a realidade, alguém a tece.
Tudo o mais ora é dor ora é sorriso
e o tempo estraga tudo, apaga e esquece.

[Transcritos de Vida pequena]

Luiz Busatto nasceu em Ibiraçu-ES, em 1937. Graduado em Letras, com cursos de especialização em Portugal (Teoria da Literatura e História da Literatura Portuguesa), na Itália (Filosofia), mestrado em Letras pela PUC/RJ e doutorado na mesma área pela UFRJ. Professor da Ufes e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina (1969-1983). É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e da Academia Espírito-santense de Letras. Foi presidente do Conselho Estadual de Cultura (1993/4) e vice-presidente (1986/7). Tem várias obras publicadas, sendo um estudioso da imigração italiana.

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