GEMA GEMIDO
dia a dia, adiado o tardio parto, perto.
festa a floresta porque flore a manhã.
alvorada, a ave vê alvo o céu e alto
voa à luz do sol. seu par de asas sobre-
voa a verde mata — matutino vôo,
sem meta. no ar, vão batendo vão
batendo vão, as asas — feixe de penas.
à hora nona, ora evola céu afora
ora parte da altura em raso vôo
em volta ao ninho, meteórica partida
a seu nicho ecológico — auriverde área.
em breve pausa, ao meio-dia, pousa brava.
via oral, via aérea, ousa sua selvagem
melodia — maviosa voz ao véu alvianil.
e logo após impõe às asas o movimento.
céu, vôo — seu ovo. clara metáfora.
seu vôo, arauto de uma nova eva, aérea.
finda o voar ao fim da parda tarde.
pôr-do-sol, a dor do pôr-o-ovo:
adorado ardor de ave ávida à vida.
após posto o ovo, o vôo suave.
de árvore em árvore, o ar de amar,
mãe solteira na tarde, solitária.
mas desalmado a dor da bela ave caça.
bélica, sua mão destra mune a arma
a ar comprimido e opressora bala.
enquanto olho nu por fresta a vê,
de par a par, pára e mira. depara-a
em vôo. agora pouso. pára e mira.
a ave alça vôo fora da alça de mira.
respira o ar em volta. volta e meia,
cessa o respirar. aponta. a ponte,
entre alvo e mão, dura o tiro. demora.
tempo do rito embora breve gera ira.
duro dedo indicador, à vera, aguarda.
quarto de hora, envolto em ar, respira.
a mão, rota em rota, o fim espreita.
rota da ave quieta a mão. enfim o tiro.
reto trajeto de projétil rasga o vôo.
a bala abala a rara arara.
ex-alada, exala findo suspiro.
força da bala o grave repouso forja.
as asas apenas ar: onde há penas.
o corpo: o orpo o rpo o po o o.
agora só o ovo: gema e clara.
gemido imposto por própria arara.
[Poema, hoje com ligeiras alterações, escrito em 1979 e, à época, dedicado ao amigo escritor Oscar Gama Filho, primeiro a ver com olhos sabiamente críticos os parcos escritos do autor então residente além do fim da rua Dalmácio Sodré, no bairro de Santa Teresa (Vitória-ES), onde Reinaldo Santos Neves e Miguel Marvilla, em pluviosa noite de 1983, quase perderam as botas e o rumo do automóvel. MT.]
RÊS MORTA, RÊS POSTA
Cada rês posta
à escolha
para o abate
não berra: olha
nos olhos de quem talvez
as livre, ou mate,
de uma vez.
Mas a vida ou morte
de cada ser
em meio ao pasto
está não só nos olhos
cegos de ódio
de seu carrasco,
como lâminas de aço.
E cada qual aguarda
a hora temida
mas sempre esperada
de certeiro lance
da lâmina amolada,
quando, sem ter chance
de (res) guardar a vida,
rolará em sangue,
toda esvaída,
uma pobre cabra…
— rês posta exangue.
Agora que a rês mais gorda
foi escolhida
dentre muitas reses
de vários meses
de engorda,
que mais lhe importa
senão a resposta
à sua pergunta
de rês exposta
a ser só postas
que não mais se junta
sobre quatro patas?
Lúcida e só,
solucionando,
à hora extrema,
seus enigmas caprinos,
a rês se indaga,
indagadamente,
se o corte de morte
da lâmina é mais brando,
se é menos cortante
que o olhar cego, sem dó,
cego de ódio, de asco,
inflado de sangue,
de seu futuro carrasco.
E a rês exposta
busca e espera
talvez última resposta,
ante ao primeiro olhar
do homem.
PARTILHA
Perto ao porto, não
sei se parto ou não:
beiro o caos.
Perto ao porto, não
sei se rapto ou não
parte da ilha.
Partilho a antes-dor
do ex-ilhado:
meu ser é cacos.
Em si, não me importo
se parto ou não:
a nau é o acaso.
Se parto, levo a bordo
parte da ilha
qual clandestina.
Se me abordarem em
alto mar o contrabando,
grito mais alto
que as ondas.
E, rápido, o embrulho
desfaço, e o passaporte,
e, oco, mergulho
na morte.
DESENLACE
Eis o que se dá
aos que se amam:
das mãos, então atadas — laço de seda,
frágil arame —, a mera forma
amorfa do amor, já ausente.
Como, antes, nós, amantes:
o nó é de quem sente.
ÁS DE ESPADAS
1
Sem mente, sem arma
e sem amar abertamente,
sacarei da conta
milionária, do colar
que não tenho
em nenhuma agência bancária,
e apontarei no teu coração,
e te matarei — de amor.
2
E com engenho tamanho,
destreza de tal monta,
às meninas
dos olhos alheios —
qual surpreendidas à hora do banho,
a ocultar os seios —
deixarei pasmas,
ante o teu corpo
nesse modo estranho
de morrer, caindo em copo
de água benta —
simpatia pr’asma
em noite chuventa.
3
E blasfemarei contra a lei,
contra o céu
de boca escancarada
qual velha porta
sem taramela, ou trinco,
a cuspir navalhas
sobre meu teto, não de palha
ou telha — de zinco.
4
E blasfemarei,
ainda, contra o rei,
contra o ás de espadas
— signo da morte
que se bem adivinha
e se não se engana
no tirar de cartas
na mesa dispostas
pela mão cigana.
5
Não em jogos de pôquer,
de azar, ou sorte,
nos lances de apostas,
ou nos quais se jogue,
mas nos nossos olhares,
quando nos lançamos
cada qual o seu
— de vida ou de morte.
EM FAMÍLIA
O filho dizia dá-me mama a mãe dizia
mame-me o pai dizia ame-me o filho
dizia mama mia a mãe dizia mamãe
o pai dizia dá-me mama o filho
dizia ame-me
o pai dizia mame-me mia-
va o gato lá fora em Mi-
lão.
CONTUDO
A casa me recebeu de braços abertos.
E meu relógio batia — coração no pulso.
Os livros na estante ditavam minha presença.
Ó quanto amor, no retrato dos avós!
Há uma pedra em meu sapato,
e estou descalço, as mãos nuas.
Homens e mulheres atravessaram-me a vida
e estou dividido entre mim e outro.
Soube, por telefone, do ataque cardíaco
de que foi vítima a ex-amada, a esposada.
Já agora é o relógio na parede,
e o calendário anuncia o amanhã.
O sono, solto, foge a galope
de cavalos, mil cavalos, à toda força.
A gravata no cabide evoca a forca
mas ponho a cedilha e não cedo.
A casa, a minha casa, ao acaso,
num lugar eqüidistante a um e outro.
Não amo minhas flores, nem as molho
de lágrimas. Meu canteiro é outro.
A vida prossegue, contudo. Amanhã.
TRABALHO
alho por alho: trabalho.
batalha de s(ais); sal de
rosto (suor), sal de olho
(lágrima) e sal de saldo
(salário). salina luta
salutar (sal de saúde)
que quer a mão, a cabeça,
o pé e o tronco, a troco
de.
sal por sal: salário.
sal de suor do rosto
por sal do árido saldo
em mesma porção (conta hábil).
o pão que, diário, vai à boca
(vira de reto) não se ganha
à toa nem se o dá à mão
mas no calor da barganha
de.
DO ÚLTIMO ANDAR
“Na areia da praia
Oscar risca o projeto.
Salta o edifício
da areia da praia.”
(C.D.A.)
Os edifícios, Oscar,
nunca terminam
no último andar
nem no último andaime
nem no último operário
ultimado.
Porém eles crescem
sempre e sempre crescem
infinitamente
sobre sua própria estrutura.
(Um dia São Pedro
desconfiou que um edifício
de São Paulo
arranhava o céu
e imediatamente emitiu
através do anjo Miguel
a denúncia vazia
com a conta do aluguel.)
Aprender a difícil
engenharia dos edifícios
que nunca terminam:
eis os sonhos — vãos — dos arquitetos.
Enquanto isso, Oscar,
os edifícios crescem
num crescer de degraus,
infinitamente,
ante os teus olhos
teus óculos
de infinitos graus.
Nenhum arquiteto é maior
que arquiteto nenhum
que arquiteto nenhum
é maior
que arquiteto nenhum
é maior
que um edifício
sem teto certo
concreto.
Oscar,
o último andar
reside no ar.
É lá que Cecília
queria morar.
Sem limites de céu,
o ar circula
nos 360o dos mundos
de teus aros binoculares.
Impossível
é andares acima
ou abaixo
das nuvens.
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Marcos Tavares, poeta, contista e cronista, nasceu em Vitória, 1957, radicou-se em Dores do Rio Preto. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)