Porque era sábado, Pedro chegou na livraria Logos, com seu andar nefelibático e jeito de Pinduca. Encaminhou-se para a mesa onde os amigos se reuniam, na praxe de muitos anos, e foi recebido pelo grito de um deles:
“Salve, Peter!”
Educado, Peter cumprimentou a todos, mão estendida, sorriso de quem viu aninhanha verde iluminando-lhe o rosto.
“Pega uma cadeira e senta entre os bons,” disse um outro.
O recém-chegado acomodou-se e foi captando o fio da desmeada. Falava-se de tout et de rien.
“Conta a última, Pedro,” eis que veio a fatalidade da solicitação. Como se esperasse o pedido, Pedro acentuou o seu risinho de bem-te-vi, discreto e ditoso como um vilarejo, e aceitou o desafio. Catedrático no ofício, era exímio em contar piadas representando os personagens e fazendo a sonoplastia das cenas. Assistir a uma anedota de Pedro era assistir a uma opereta bufa, de um único ato, hilário e esfuziante.
“Vocês não sabem o que me aconteceu…”
“É piada ou fato verdadeiro?”
“É fato verdadeiro, mas parece piada.”
“Então continua…”
“Eu estava no meu plantão, na Chapot Presvot, quando entrou um sujeito agitadíssimo. Pela cara, percebi que era uma pessoa diferente.”
“Bicha louca?”
“Bicha nada, espia só… Ele entrou, me viu e veio na minha direção como se tivesse descoberto o eldorado. Mas a merda foi quando tentou falar, porque o cara era mudo, gente, um mudo querendo dar uma queixa na delegacia” — e Pedro imitou o mudo, com sua linguagem troglodita, aproximando-se dele, Pedro, o escrivão de polícia. “Ainda bem que o mudo não era surdo, embora ficasse enroscado no seu glo, glo, glo…”
“Não precisa ficar nervoso, meu amigo.”
“Glo, glo, glo…”
“Sente-se, por favor, eu disse, mas ele, exaltado, começou a gesticular, fazendo sinal para que eu escrevesse. É uma queixa que você quer dar?”
“Glo, glo, glo…”
“Pois pode falar, eu o animei, o que obviamente exasperou o mudo, porque ele começou a bater a mão direita aberta sobre a mão esquerda fechada (Pedro repete o gesto, choc, choc, choc). Então eu perguntei: é uma foda que você quer contar?”
“Glo, glo, glo (Pedro com a boca) e eu vi que o objetivo do mudo era outro. Mas qual? Um estupro?”
“Glo, glo continuou ele, só que agora era um glo, glo de satisfação,” explica Pedro, com o mesmo sorrisinho maroto com que contava suas anedotas. “O mudo estava eufórico porque eu entendi que ele queria dar parte de um estupro. Então eu disse: escreve aqui o nome da estuprada, e pus uma folha de papel na frente dele.”
“Ele escreveu?”
“Que nada, gente. O mudo ficou piço da vida, pegou a caneta que eu lhe entreguei e a partiu em duas. Assim — e Pedro divide no ar uma caneta hipotética. Então ele começou a balançar a cabeça e também a mão como se estivesse segurando a esferográfica ainda inteira, e tome não com a cabeça, e não e não com a mão incontrolável” — e Pedro imitava a reação do mudo.
“Você não sabe escrever, é isso? eu perguntei. Era. O mudo era analfabeto de pai e mãe. Ai eu pensei, como é que eu vou sair desta?”v “Gostei do aí,” disse alguém no grupo. “Piada que não tem aí não é piada.”
“Mas este fato é verdadeiro,” corrigiu outro membro da confraria dos sábados. “Pelo menos foi o que Pedro disse.”
“Deixa Pedro contar,” interveio um terceiro.
“Aí o mudo tirou do bolso uma carteira de plástico e tirou da carteira um retratinho 3 x 4 e eu olhei a foto e vi na foto uma cara igual à cara do mudo, só que de cabelos ondulados. É sua irmã? perguntei bestamente, porque com aquela cara, em não sendo o mudo, só podia ser a irmã do mudo. Então o mudo deu uma porrada em cima da minha mesa e glo, glo, junto com a porrada, e era realmente a irmã do mudo a vítima do estupro, e o mudo não cabia em si de tanta raiva em sua mudez cavernosa. E glo, glo, bateu na mesa e me apontou um dedo, depois dois, depois três, em gestos sucessivos e eu tive um estalo, e indaguei, estuprada três vezes? Mas meu estalo não foi um estalo de Vieira porque o mudo deu mais porradas na mesa, e com mais força (Pedro imita as porradas com a mão fechada) e aí eu caí em mim, ou caí de mim, se vocês preferirem, e perguntei, foram três os estupradores?”
“Foram três?!” reforçou alguém da turma.
“Espia só,” continuou Pedro. “O mudo soltou um ah de quem ficou realizado por eu ter entendido o que ele queria dizer, mas logo fechou a cara voltando ao drama da irmã, e tornou a me apontar os dedos, um, dois, três, glo, glo, glo, e eu que pensei que já tivesse decifrado o mudo vi que ele ainda estava na metade do depoimento, e tornei a perguntar, foram três, três vezes?, e o mudo deu aquela porradona de confirmação que fez balançar nas bases a minha Olivetti.”
“Você já estava se tornando expert em mudo,” deu-se uma nova intervenção inoportuna.
“Mais ou menos”, aquiesceu Pedro.
“Mais ou menos por quê?” indagou uma voz na lateral, partida de um espectador extra, porque Pedro, quando contava uma anedota, seduzia ouvintes periféricos.
“Porque o mudo ainda tinha uma declaração a fazer e tome glo,glo,glo pra lá e pra cá, e ele enfiando o indicador da mão direita no círculo formado pelo polegar com o indicador da mão esquerda, o dedo entrando e saindo de um lado e do outro, e o mudo se exaltando cada vez mais.” Pedro imita a gesticulação do mudo e sua linguagem gutural desesperada.
“Aí eu perguntei, para adiantar o expediente e para pôr fim ao sofrimento do queixoso e também da vítima da suruba frente-e-verso, você levou sua irmã ao pronto socorro? e o mudo parou de gloglolejar e me olhou bem no meio da minha testa como se fixasse um alvo para me dar um tiro sem misericórdia e mandar para o espaço os meus miolos. Vendo que eu falava sério, se sacudiu todo como se estivesse sofrendo um espasmo epiléptico, revirou os olhos (Pedro revira os seus) e se espojou no chão, para indicar a petição de miséria em que a irmã tinha ficado, toda estrumbicada, e eu querendo saber se ele a tinha levado ao pronto-socorro, ele, o mudo, cuja única maneira de se comunicar era através de seu teatro mímico… Fazia sentido a minha pergunta, embora nada faça menos sentido hoje em dia do que um pronto-socorro?”
“Que mancada, hein, Pedro?!”
“E aí?”
“Aí eu passei a explicar que o exame era uma providência necessária para justificar a queixa e abrir o inquérito policial, mas o mudo se ergueu do chão, onde ainda estava enquanto eu descrevia a rotina policial, e mais puto do que nunca voltou a fisgar com os olhos o meio da minha testa, cerrou a cara de mudo que no mínimo se chamava Raimundo, me deu uma banana de braço cruzado e mão fechada que estalou nos meus ouvidos, e abriu fora.”
“Só isto?” perguntou um quinto ou um sexto, que já perdi a conta dos interlocutores de Pedro.
“Se você acha pouco é porque você não era o mudo ou a irmã do mudo,” respondeu Pedro, deliciando-se com a frase de efeito.
“Esta história tem uma moral”, observou outro participante da mesa.
“Dê a sua piadinha”, concedeu Pedro o à parte.
“Não é todo mudo que entra mudo e sai calado. Têm os que saem dando bananas.”
“A moral é diferente, Fernando: não é todo mundo que consegue entender um mudo”, concluiu Pedro. “Eu, por exemplo, quase quebrei a cara.” E o sorriso de bem-te-vi matreiro aninhou-se nos seus lábios.
“Conta outra, Peter”, pediu Renato.
“Conta!” endossaram vários.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)