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Praça Oito ontem e hoje

A tentativa de saque dos piratas franceses em 1561, e a luta contra os holandeses capitaneados por Patrid, em 1621. A peleja foi desesperada. É conhecida a cena corajosa de Maria Ortiz que, do sobrado, na ladeira que lhe guarda o nome, pôs os batavos a correr com queimaduras de água a ferver. O pequeno ancoradouro não passava de restinga marinha em formação. É tão verdade que o naturalista francês, Augusto Saint Hilaire, quando visitou a Ilha em 1818, estranhou a ausência de praça na cidade. Ela se formaria aos poucos com o desaterro da cidade alta e demolições feitas no fim do século e começo deste milênio.

A glória conquistada por Santos Dumont, com sua “Demoiselle” em Paris, refletiu-se patrioticamente em Vitória, e os políticos passaram oficialmente a chamar de “Praça Santos Dumont” ao local histórico. Não calhou, porém; tradição venceu o orgulho patriótico.

Quando construí o Edifício Aguirre, em 1924, sobre algumas, paredes do sobrado antigo, encontrei nas fundações da fachada, moirão de camará com argolas de amarrar canoas. A Praça cresceu em área e se tornou o centro importante da cidade. Ali se faziam os comícios; ali, em 1911, em noite de propaganda eleitoral, a família Lírio recebeu uma saraivada de balas, por fuzis disparados da Pensão Madrid, sobrado junto à Farmácia Aguirre. Todos foram feridos.

Foi, até poucos anos, o ponto único de reunião popular. A Ladeira Maria Ortiz despejava, à tarde, os funcionários públicos, os titulares do Foro, os ginasianos e normalistas. As repartições públicas e os institutos educativos se situavam todos na parte alta da cidade.

A geração de hoje, certamente, não tem por onde se lembrar da antiga Praça Oito de Setembro.

Tinha muito da belle époque e serviu de mote para os cronistas da saudosa Vida Capixaba, revista mensal de Manuel Pimenta, que um falso jornalista, comprando-a, fez morrer. Recordá-la, do quatriênio de Jerônimo Monteiro ao fim do Governo Bley, é passar em revista várias gerações famosas de vida citadina.

Em 12, quando Vitória recebeu o primeiro benefício vital — água, luz e bonde —, a Praça já era logradouro aprazível. Alargava-se até o alinhamento dos fundos da Alfândega. Defendia-se do mar por amurada guarnecia de balaústre, com escadaria para embarque, amarração de canoas e botes. Estes, com tapetes e almofadas vistosas, diferenciavam-se por nomes sugestivos: Furta Moças, Estrela d’Alva, Sereia do Mar, Fé em Deus, etc. Onde está o Relógio Público havia um coreto contornado por canteiros floridos. Às quintas-feiras e domingos as bandas de música da Polícia e da Irmandade de São Francisco faziam exibições de seus repertórios. O grand monde confluía à tarde. Na Praça se situavam as farmácias, as joalharias, as casas de modas, o Banco Inglês e o alfaiate melhor. A sociedade reunia-se nos cafés e bares. O “Café Rio Branco”, de Rodolfo Ribeiro de Souza, acolhia os estudantes e os esportistas. O “Vitória Store”, de Gaspar Guimarães, num velho sobrado, com o pretensioso nome de “Palacete Gongnel”; e onde se ergue o belíssimo edifício do Banco de Crédito Agrícola do Estado do Espírito Santo era um estabelecimento de comestíveis e bebidas finas.

Seu horário preferido era o das oito às dez da noite, quando o bozó acusava o pagador da despesa. Lá bebiam: Serafim Derenzi, Joaquim Pinto de Miranda, Vicente Salgueiro, construtores, e os negociantes ou caixeiros viajantes: José Teixeira, Francisco Silva, Rebelo da Silva, Alfredo Mello, Miguel Maldonado e outros.

O garçom era o jovem Delfim Silva, o maior torcedor do Rio Branco que depois se fez negociante também.

Fronteiro ao “Store”, o “Café Globo” celebrado, cujo prédio ainda existe, atualmente agência do Banco Hipotecário de Minas Gerais. Fundaram-no os espanhóis, irmãos Trinxet, João e Emílio, queridos por todos e conhecedores da arte culinária e de ganhar amigos. Ambiente acolhedor, decorado com arte por Emelio Parras, cunhado dos proprietários, sempre presente com sua elegância e blague. No mezzanino, elevado sobre o balcão-copa, o maestro Antonio Union Sierra, cônsul argentino, deliciava o público, com magistrais tocatas clássicas ou canções franco-italianas. A freguesia ocupava de preferência as mesas ao ar livre, estendidas sobre o passeio. Os elegantes, os altos funcionários, os políticos, os comerciantes e os “cometas”, lá se aboletavam para o drink das cinco. Era um aspecto festivo. Bebia-se com muita sede e charla. Eram constantes: Arnaldo e Demóstenes Magalhães, Clodoaldo Linhares, de peruca e fraque surrado; João Thomé; José Monjardim, no auge de sua eloqüência forense; Thiers Velloso, simpático e polêmico. J. J. Bernardes Sobrinho, elegante e de chapéu côco; João Manuel, apressado e confidente, vez por outra; Carlos Xavier, comunicativo e sorridente; Percio Goulart de cavanhaque sempre aparado; Washington Pessoa, amável e olhar vivo; José Sete, inteligente e conversador. Com exceção dos irmãos Magalhães, eram todos bacharéis de cultura elevada.

Emoldurava o ambiente a chusma de caixeiros viajantes, quase todos portugueses, educados, elegantes e prestativos. Um deles tornou-se famoso pela prestimosidade: João Siqueira, o “João Maluco”, alcunha conquistada por realizar o impossível. Os ginasianos, com suas fardas cáqui de botões dourados, enxameavam as calçadas esperando as normalistas encabuladas. O apogeu da Praça Oito deu-se por vota de 1935, quando os freqüentadores preferiram o “Bar Petrópolis”.

O chopp acompanhava melhor os pitus do Eusébio a mil e quinhentos réis a dúzia. A nova geração o freqüentava à tarde. Só o Le Motte, gerente do Banco Inglês, guardava fidelidade ao ponto, sempre com o seu gim tônica pela manhã e whisky à tarde, cujas doses se mediam pelas sobras nas garrafas.

A Praça mudou completamente de feição. O fechamento dos bares e cafés com mesas e cadeiras, a chusma de ambulantes, a parada de ônibus obrigatória, o aumento da população, tudo concorreu para que se transformasse a face paisagística local.

A transformação arquitetônica da quadra famosa fez-se lentamente. O pioneiro foi Rufino Azevedo, quando em 1910, teve a coragem de construir o “Pan Americano”, Casa Hilal dos nossos dias. A arborização e os passeios de mosaicos, um pouco mais estreitos, são obras do Prefeito Washington Pessoa (1914).

Em 1935, a família Oliveira Santos, honrados negociantes portugueses, radicados em Vitória, erigiram, no centro da Praça, um monumento a Vasco Fernandes Coutinho, para comemorar perpetuamente o quarto centenário do povoamento espírito-santense. Anos depois, se não me falha a memória, o Prefeito Américo Monjardim houve por bem transferir essa dádiva para o fim da Avenida Capixaba, a fim de erguer, no mesmo ponto, o Relógio Público, cujo maquinismo se achava encaixotado desde o governo Aristeu Aguiar.

Após a construção do Porto, a Praça cresceu e o estacionamento de veículos a desfigurou horrivelmente. É o progresso que transforma até os espaços.

[DERENZI, Luiz Serafim. Praça Oito ontem e hoje. In Revista Capixaba, setembro de 1968. Reprodução autorizada pela família Avancini Derenzi.]

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Luiz Serafim Derenzi nasceu em Vitória a 20/3/1898 e faleceu no Rio a 29/4/1977. Formado em Engenharia Civil, participou de muitos projetos importantes nessa área em nosso Estado e fora dele. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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