Há qualquer coisa, aquém do se diz nas frases reflexivas de pensadores e nas tintas dos artistas e nos pentagramas dos músicos e além do que se ouve nos receios das comadres e na cal dos coveiros e nos versos dos aforismos, de incandescente na famigerada figura da Morte.
Tinha visto e lido e ouvido sobre ela diversos testemunhos, sempre em penumbra, doídos como fio de música que se cala. Nenhum me impressionou mais do que “Momento num café”, do Estrela da manhã, de Manuel Bandeira. Se o conhecia antes de 1993, quando o (re)encontrei numa leitura casual, não me recordo. Deparei-me com ele, em São Paulo, e o meti num trabalho acadêmico para o bandeiriano Arrigucci Júnior.
“Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição”
Sua sombra se instalou, límpida como um mote inevitável.
No ano passado, recordei-me da “indesejada das gentes”, convidada pelo poeta para uma consoada. Imaginei a moça, indesejável embora, nos óculos dentuços de Bandeira. Imaginei um rapaz, não obstante indesejado, em poemas de uma elegia à luz do dia: melancólico, mas belo; implacável, mas leve; inadiável, mas terno.
Veio o primeiro verso. Junto, a ideia de um livro em três partes: I (Percurso de sombra e frescor), II (Percurso de sombra e arrepio) e III (Percurso de sombra e corte). E nada, por enquanto, faz-me desistir de um livro em que ele, a Morte, se manifeste, misterioso como o “Homem de luvas”, de Ticiano.
Neste Canteiro de obras* exponho, aos poucos, o percurso. Indesejado?
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Paulo Roberto Sodré, nascido em Vitória em 1962, é poeta, escritor, pesquisador e professor universitário de Literatura na Ufes, com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)