“Clodô, há quanto tempo, meu chapa!” disse Pedro levantando-se de supetão, por detrás da sua mesa.
“É verdade, Pedrinho. Há tempo que não nos vemos,” confirmou Clodomiro, abraçando o escrivão de polícia.
Era um tipo alto, entrado em idade, tendo já dobrado o cabo das Tormentas ou da Boa Esperança com passagem de ida.
“Você continua na Cesan?” quis saber Pedro, pressentindo a resposta negativa.
“Aposentei-me faz cinco anos,” informou Clodomiro.
“E seu Silva está bem?”
“Papai morreu na semana passada,” disse Clodô.
“Meus pêsames,” solidarizou-se Pedro com o amigo. “Eu gostava muito de seu pai. Não conheci ninguém que encadernasse um livro melhor do que ele. O meu Petit Larousse é um exemplo. Tem quinze anos de encadernado e continua perfeito, apesar do uso. A percaline é tão chamativa que dá até vontade de beijar. Tem sex-appeal.”
“Pobre papai. Eu vim procurar você por causa da morte dele. Na verdade, é um ato de desforra que preciso realizar para ficar em paz comigo mesmo,” disse Clodomiro.
“Sente-se, meu chapa. Vamos ver no que posso ajudá-lo. Aceita um Carlton?” E estendeu Pedro a carteira de cigarros.
“Não, mas pode fumar à vontade,” agradeceu Clodomiro, lendo na parede o aviso que proibia o fumo nas dependências da delegacia.
Pedro tragou a gosto o cigarro recém “ignitado” e despachou uma orquídea de fumaça em direção à cesta de lixo, ao pé de sua mesa. “O que houve com seu Silva?” perguntou.
“Depois da morte de mamãe, papai foi morar com uma acompanhante num apartamento na ladeira São Bento, no centro de Vitória. Sabia que ele fez 89 anos pouco antes de morrer?”
“Pensei que ele fosse mais novo…” disse Pedro.
“Não, 89 bem vividos. O pior é que, de certa forma, eu me sinto responsável pela sua morte.”
“Como assim…?”
“No dia do seu aniversário eu resolvi convidá-lo para almoçar num restaurante da Graciano Neves. É um restaurante onde eu ia, e não vou mais. Comidinha caseira, bom tempero.”
“Seu Silva aceitou o convite?” quis saber Pedro.
“No começo, fez corpo mole. ‘Vou nada, meu filho, me deixa quieto aqui em casa, com minha sopinha de ervilhas.’ ‘Mas, pai, há quanto tempo o senhor não come um empadão de frango com feijão manteiga?’ Eu disse isso porque papai era vidrado em empadão de frango com feijão manteiga, que sempre tinha no bufê do restaurante. ‘Olha, meu filho, é uma trabalheira tão grande para eu sair de casa! Tenho que tirar o pijama, vestir a roupa, calçar os sapatos, botar a dentadura…’ ‘Eu ajudo, pai. Onde está a sua calça? E a dentadura?’ perguntei, animando-o. Foi assim, quase empurrado, que papai saiu de casa. Descemos a ladeira São Bento pé-ante-pé, numa chuva fininha. Você pode imaginar o que é descer a ladeira São Bento amparando um velho de 89 anos, debaixo de um guarda-chuva único, com medo de escorregar?”
“Mas ele foi bem, não foi?” indagou Pedro, torcendo retroativamente para que seu Silva tivesse chegado são e salvo ao self-service.
“Até aí, tudo ok. Como chegamos antes do meio-dia deu para dispor do bufê sem pressa alguma e sentar numa mesa de canto, ideal para pai e filho em comemoração de aniversário,” disse Clodomiro. “O revertério veio depois. Não sei se você conhece o Bom de Boca. É um restaurante honesto, como dizem os guias gastronômicos, mas um pouco apertado, mesas muito próximas umas das outras, com passagem estreita entre elas.”
“Já almocei ali, apesar de não gostar do nome Bom de Boca. Tem conotações que não me agradam. Sabe que se eu um dia abrisse um restaurante punha nele o nome de Belo Arroto? Dizem que os chineses demonstram sua satisfação gastronômica com arrotos portentosos em plena mesa. Eu embarcaria nessa dos chineses”, divagou Pedro.
“O importante é que você conhece o local. Eu já tinha acabado de almoçar e esperava que papai terminasse. Como ele comia devagar, mastigando a comida e a dentadura, o restaurante ficou lotado. Nisso, Pedrinho, você nem vai acreditar: começou a tocar uma música árabe e uma bailarina, com tiara na testa e barriga de fora, brotou do chão num passe de mágica e se pôs a dançar a dança do ventre, ali, em pleno restaurante… Dançava na ponta dos pés, descalcinha da silva.”
“Descalcinha pra seu Silva?” perguntou Pedro, permitindo-se uma brincadeira com o amigo.
“Descalça e rebolante, os braços finos em coleios para o alto, os sete véus flutuando entre as coxas, o ventre se contorcendo perto das mesas, com uma meia-lua de prata grudada no umbigo.”
“E qual foi a reação de seu Silva?”
“No começo acho que ele não entendeu o que estava se passando. Depois, percebeu mais ou menos.”
“Como mais ou menos…?” estranhou Pedro.
“Porque ele me perguntou baixinho: ‘Já é Carnaval, meu filho?’ ‘Não, pai, é uma salomé dançando a dança do ventre,’ expliquei quase pedindo desculpas pela apresentação insólita. ‘Mas não é um local muito adequado para isso, você não acha?’ comentou ele.”
“Comentário sensato,” reconheceu Pedro.
“Sensatíssimo. Só que, nessa altura do seu remelexo, a odalisca já estava colada na nossa mesa, girando o ventre erótico em tiques sucessivos, como se tomasse impulso para saltar no prato vazio de papai.”
“Como se fosse uma sobremesa servida em domicílio?” brincou Pedro.
“Isso mesmo… uma gelatina branca e vibrante, com vida própria.”
“E o que aconteceu com seu pai?”
“Ficou pra lá de Bagdá, mastigando a dentadura e fixado no que via!”
“Durou muito a exibição da dançarina?” perguntou Pedro.
“Até terminar a música. Aí, muito aplaudida pelos comensais, ela foi de mesa em mesa distribuindo cartõezinhos de uma academia de dança, lá de Vila Velha. Papai pegou dois. Eu dei um tempo pro velho se acalmar, paguei a conta, e saímos do restaurante para voltar ao apartamento. Foi aí que ele começou a passar mal, empalideceu e teve um espasmo. Ou desenvolveu um espasmo, como dizem os médicos em linguagem de isenção de culpa. Só tive tempo de entrar num táxi e carregar papai pro Hospital da Associação, na cidade alta.”
“Foi tão feio assim?”
“Foi bater na Associação e ser internado no CTI. Seis dias depois, faleceu, sem ter dito uma palavra, durante o tempo da internação.”
“Pela sua indignação, Clodô, estou adivinhando que queira adotar alguma medida contra o restaurante…”
“…E também contra a academia de dança. Vou ingressar no Juizado Especial com uma ação de indenização pelas despesas com os remédios de papai. Na Associação, os associados pagam a conta dos medicamentos, você sabia? E minhas despesas foram altas. Estou reunindo os documentos para dar um tiro certeiro. Tenho as notas do restaurante e da Associação, tenho os cartões da academia que papai pegou, tenho o testemunho do motorista do táxi… E no Juizado a gente faz a acusação e a parte acusada se vira para provar o contrário.”
“Nosso delegado, Digital, costuma dizer que Juizado Especial é uma Justiça canhota.”
“É isso aí…”
“E onde eu entro nessa história?” perguntou Pedrinho.
“Aqui na delegacia, Pedro, quero fazer uma queixa-crime contra o Bom de Boca e contra a academia. Vou infernizar a vida dos que levaram papai à morte.”
“E contra a bailarina?”
“Contra ela também. Já tenho até seu nome e endereço. Vou jogar bosta no ventilador. Restaurante é lugar de se apresentar dança do ventre?”
Em atenção a seu Silva, Pedro não quis dissuadir Clodomiro do seu propósito. Limitou-se a dizer que talvez a tentativa não fosse nada fácil, mas registrou a queixa, para ajudar o amigo a expiar seu sentimento de culpa.
“Saio daqui mais leve,” disse Clodomiro.
“Ótimo,” disse Pedro. “Mas antes de ir embora, me deixa o telefone da salomé. Vou encomendar uma exibição aqui na delegacia….”
“Mas é bom você ficar de barriga vazia…” deu o retorno Clodomiro.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)