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Questão de oportunidade ou escreve, seu Pedrinho!

Pedro resolvera se conceder dez minutos de paz depois de tomar o depoimento de uma meretriz envolvida numa rixa com um proxeneta. Acomodou-se no banco de madeira, embaixo da goiabeira, no quintal da delegacia da Chapot Presvot, 272, e acendeu um cigarro com o isqueiro prateado. Tinha uma coleção deles e os usava de acordo com as variações de sua disposição de espírito.

D. Lenilda, que estava varrendo o quintal, achegou-se ao escrivão. De há muito esperava uma oportunidade para uma conversinha com o amigo.

“Posso sentar, seu Pedrinho?”

“Pode, mulher,” disse Pedro, dando espaço no banco à faxineira.

Lenilda sentou-se com o cabo da vassoura enfiado como um periscópio entre os joelhos, enxugou no dorso da mão o suor que porejava da testa e atacou:

“Posso lhe fazer uma pergunta?”

“Claro, minha cara,” respondeu Pedro atirando um míssil de fumaça em direção a uma goiaba madura, no galho mais baixo da goiabeira. Coincidentemente, a fruta despencou e Lenilda foi rapidamente pegá-la no chão, comentando: “Que pontaria, hein, seu Pedrinho?”

“Até eu me assustei,” declarou o escrivão.

“O senhor quer?” ofereceu Lenilda.

“Sirva-se à vontade.”

Ela limpou na calça jeans a parte da fruta que não ficara amassada, deu-lhe uma dentada canina, examinou o miolo que ficou exposto e disse: “É das brancas e não está bichada. Apesar do quê, eu prefiro as de vez.”

“Eu gosto das vermelhas, que são boas para doce,” declarou Pedro sua preferência em matéria de goiaba.

“O senhor gosta de doce de goiaba, seu Pedrinho?” entusiasmou-se Lenilda, cuspindo um caroço para o lado.

“É o meu predileto,” replicou o escrivão, comemorando a confissão com outra tragada forte.

“Pois então vou fazer um para o senhor. Sabia que é uma das minhas especialidades? Aprendi com a minha avó, adivinha aonde?”

“Aonde, Lenilda?”

“Num sítio que meu avô tinha em Campo Grande, bem pra dentro da estradinha que passava onde é hoje o trevo pra Cariacica. A gente ia lá a pé ou a cavalo. O que mais tinha era goiaba. Caía tanta no chão que a terra ficava pegajosa e o cheiro entrava pelo nariz logo na cancela do sítio…”

“Bons tempos aqueles, hein, Lenilda?” disse Pedro, lembrando-se do verso de Bandeira – “a casa de meu avô, nunca pensei que ela acabasse.”

“Nem me fale, seu Pedrinho.” E os olhos da faxineira se turvaram de melancolia. Antes que as lágrimas rolassem, Pedro interveio:

“Mas afinal o que você queria me perguntar?”

A mulher controlou-se e voltou ao assunto inicial:

“Eu queria saber por que o senhor, que gosta tanto de ler e escrever, não escreve sobre as coisas que acontecem na delegacia? O senhor não acha que tem assunto pra dedéu? Nosso delegado — cá pra nós, seu Pedrinho — não podia dar um seriado? E as queixas que o senhor registra todo dia — por que não escreve sobre elas?”

“Porque já tem gente escrevendo, Lenilda,” respondeu Pedro, despejando pulmões afora a pesada fumaça de outra tragadona.

“Como é que eu nunca li nada?” indagou a faxineira.

“É porque está saindo na internet,” explicou o escrivão.

“Mas na internet não vale, seu Pedrinho. Tem que sair em jornal, como os artigos de seu Pedro Maia. Aí todo mundo lê.”

“É porque você não entra na internet, Lenilda. Mas há milhares de pessoas que a freqüentam…”

“Mesmo assim, eu não concordo com o senhor. O povo, seu Pedrinho, lê o que sai nos jornais, não na internet. É para os jornais que o senhor devia escrever,” forçou a faxineira, sem se abater pelos argumentos do escrivão.

“Acontece, Lenilda, que se eu aceitar a sua sugestão já entro com a originalidade comprometida. Vou ficar em desvantagem com quem saiu na minha frente.”

“Que importância tem isso?” contestou a mulher, apertando com as mãos o cabo da vassoura. “A sua originalidade, seu Pedrinho, é ser ao mesmo tempo escrivão e escritor! E o senhor está no antro dos acontecimentos, como diz o nosso delegado Digital. O antro é aqui, onde nós estamos. Vai ver, quem está escrevendo nunca pisou numa delegacia e fica inventando historinha! E inventado não é o mesmo que acontecido. De mais a mais, garanto que o senhor escreve melhor do que qualquer um.”

“Obrigado pelo elogio, minha amiga, mas acho que perdi o bonde do tema,” disse Pedro, entre complacente e divertido.

“Deixa de ser modesto, seu Pedrinho. O senhor sabe histórias que ninguém sabe. Lembra do caso do mendigo que veio reclamar porque não deixaram ele entrar no Shopping Center? Depois foi o gerente do shopping que reclamou porque o mendigo voltou com uma cachorrada danada correndo atrás dele, entrou pela porta principal, subiu a escada rolante e saiu pela porta de cima, deixando o bando de vira-latas lá dentro? Não foi engraçado?”

“Foi realmente uma piada…”

“Por que o senhor não escreve sobre isso?”

“Porque eu perdi a oportunidade, Lenilda…”

“Bobagem, seu Pedrinho! Escreve… Escreve também sobre o mágico da cartola, está lembrado? Ele veio na delegacia mostrar a cartola para o delegado porque disseram que ele era vigarista. Dr. Digital pelejou, revirando a cartola sem achar nada. Aí o mágico …, como era o nome dele?”

“Zenon, o grego…”

“Pois é, Zenon, o grego, fez uma apresentação que agitou a delegacia, tirando de um tudo da cartola — coelho, lenço colorido, cartas de baralho, moedinhas… — depois jogou tudinho lá dentro de novo, deu um tapa no cocuruto da cartola, que ficou igual a um disco preto, e ainda sentou em cima. Quem pode contar uma história dessas? Só o senhor, seu Pedrinho!”

“Eu perdi a oportunidade, Lenilda,” repetiu o escrivão, lembrando-se com um leve sorriso da exibição do grego.

“E aquela secretária que foi no oculista só para pegar uma receita e, de repente, veio a atendente, pingou duas gotas de colírio pra dilatar as vistas dela e ela perdeu o emprego porque não pôde chegar a tempo para a reunião com o chefe… Quem sabe dessas coisas? Só o senhor, seu Pedrinho!”

“Lenilda, minha santa, não insista!”

“Insisto, seu Pedrinho, insisto! Tem também aquele caso do gago que ligou para a delegacia pra dizer que tinha um cavalo morto aqui na rua Chapot Presvot e ficou gaguejando o nome da rua… Chachacha…”

“Pera aí, Lenilda! Isso nunca aconteceu. É apenas uma anedota que eu gosto de contar…”

“Anedota?! Mas quando o senhor conta parece tão verdadeiro! Conta então como se tivesse acontecido… “

“EU JÁ DISSE QUE PERDI A OPORTUNIDADE, Lenilda!”

“Então, seu Pedrinho, escreve pelo menos sobre esta conversa que a gente está tendo, eu insistindo pro senhor escrever e o senhor se saindo com essas desculpas esfarrapadas. Acho que seria um bom começo, nem que fosse pra me agradar.”

Para se safar do aperto, Pedro disse que ia pensar no assunto. Prevendo, porém, novas investidas de Lenilda, deu-lhe um conselho que já tinha um viés de escapatória: “Mas vê se não insiste nessa sua idéia para ela não ser captada por alguém que escreva na minha frente. Sabe que isso costuma acontecer? É a famosa transmissão de pensamento.”

A faxineira encarou o amigo e perguntou: “Sabe o que eu acho, seu Pedrinho?”

“Diga, minha cara.”

“Acho que o senhor é mais teimoso do que um bode empacado. E digo bode pra não dizer outra coisa.”

E saiu do banco, com a vassoura na mão.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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