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Questões de linguagem ou Pedro, e agora?

“Pedro, foi bom você aparecer. Estou com uma dúvida cruel que só um professor de português pode tirar: cara-de-pau tem hífen?”

Nanico, o escrivão de plantão, viu Pedro chegar e o fisgou com a pergunta, gritada da sala onde estava para a sala onde o colega entrou.

Pedro fora à Delegacia, na Chapot Prevost, para pegar O Jogador, de Dostoiévski, que esquecera na gaveta da sua mesa. Tinha ido à la vontè, de sandália de couro, bermuda curta e justa, camisa de malha verde e chapéu branco à Renoir.

Sua intenção era entrar rapidinho e rapidinho sair para se doar à literatura, naquele dia de folga, ainda por cima cinzento e úmido. Estava imbuído do espírito literário e sussurrava versos de Florbela Espanca: “Perdi meus fantásticos castelos… Perdi minhas galeras entre os gelos… Perdi minha taça, o meu anel…” quando a voz de Nanico o alcançou. Aos versos que sussurrava, Pedro acrescentou, por conta própria: perdi minha paz e meu sossego!

“Primeiro você me diz pra que quer saber a resposta,” respondeu Pedro da sala onde estava para a do colega ao lado.

“É que o vigarista, que está aqui para depor, tem o apelido de Cara-de-Pau,” gritou Nanico.

“Pois pra mim tem hífen. Mas acho bom você consultar o Aurélio,” aconselhou Pedro.

O Aurélio era o dicionário que a Delegacia tinha porque Pedro havia comprado para uso da casa. Estava bastante esculhambado, com muitas páginas dobradas umas dentro das outras, a capa ensebada despregando-se do miolo. Mas ainda assim quebrava um galho danado, pelo menos para o próprio Pedro.

“No Aurélio está com hífen, e é por isso que fiquei na dúvida,” justificou-se Nanico, que invadiu a sala de Pedro com o dicionário aberto nos braços.

“No Aurélio é com hífen e você está na dúvida?” estranhou o consultado.

“Justamente. Repare que cara de tacho está sem hífen, além de cara de bolacha, cara de lua cheia, cara de réu que, aliás, é a cara do depoente na minha sala…” argumentou Nanico, exibindo o dicionário.

Pedro pegou o Aurélio e disse: “Mas veja, Nanico, que estão com hífen: cara-de-mamão-macho, cara-de-gato e o próprio cara-de-pau. E indo da cara para a cama, cama-de-gato também tem hífen.”

“Só aumentou a minha confusão. Por que cara-de-pau tem hífen e cara de tacho não tem? Nos dois casos não se trata de uma comparação?”

“Mas cara-de-pau é uma palavra composta e cara de tacho, não,” explicou Pedro, passando batido sobre qualquer esclarecimento a mais.

“Você acha que se pode confiar no Aurélio?” contrapôs Nanico.

“É um dicionário clássico, muito respeitado,” disse Pedro.

“Mas tem gente que o condena. Você leu uns artigos que um professor de português andou publicando em A Gazeta? Foi também uma questão de hífen, se não me engano na expressão dona de casa. O professor dizia que não tem hífen e no Aurélio está com hífen. Veja aqui.” E Nanico apontou a expressão dona-de-casa grafada com hífen.

“Eu li esses artigos,” disse Pedro, “por sinal de um dos maiores professores de português que eu conheço. Mas você não acha, Nanico, que há muito exagero na sua preocupação? Segue o dicionário, pô! Escreve cara-de-pau com hífen, e ponto final. Ou você pensa que nosso delegado vai corrigir seu português?” deslizou Pedro pela tangente.

“Tinha graça! Digital é capaz de pensar que cara-de-pau é tudo junto. Só fiquei preocupado em escrever certo por duas razões: primeiro, por uma questão de consciência. Nós não temos de tratar os depoentes com dignidade? Não é isso que foi pregado no último seminário dos Direitos das Minorias e dos Excluídos promovido pela Secretaria de Segurança com a Secretaria do Cidadão? Para mim, dignidade começa por escrever certo a identificação das pessoas, ou você acha que não?”

“Então, neste particular, você deve estar satisfeito porque seu apelido não dá para escrever errado. É Nanico, e pronto,” gozou Pedro.

“Você é que pensa, porque aqui na delegacia já foi escrito com um til no a”.

“Não me diga que foi quem eu estou pensando,” divertiu-se Pedro.

“Ele mesmo, nosso amado chefe…”

“E qual a segunda razão da sua preocupação?” voltou Pedro ao leito do rio antigo doido para encerrar o papo e escapulir com o seu Dostoiévski embaixo dos pêlos do sovaco.

“É que você sabe que o pessoal do Ministério Público tem a mania de dizer que os inquéritos da nossa DP saem cheios erros, a começar pelos de português.”

“Mas Digital não costuma arrotar que caga verde-amarelo na cabeça dos promotores?” argumentou Pedro.

“Isso é com ele. Eu, porém, gosto de fazer as coisas certinhas.”

“Neste caso, em atenção ao seu perfeccionismo de escrivão de polícia, escreva cara-de-pau com hífen. Se alguém no MP ficar em dúvida, que vá consultar o Aurélio, que eu sei que eles também têm lá. Aí vão verificar que você escreveu corretamente.”

“Pelo menos segundo o dicionário…”

“Isso mesmo. E o prestígio da nossa DP vai crescer, graças à sua performance.”

“Resolvido, então!”, disse Nanico fechando o dicionário com um estalo.

Foi o tempo de sair da sala e retornar chispado, o semblante transtornado:

“Puta que pariu, Pedro, Cara-de-Pau fugiu!”

“Puta-que-pariu com hífen ou sem hífen?” atropelou Pedro a agitação do companheiro.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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