62 anos
Natural de São Fidélis, RJ, de onde veio para Colatina, ES.
Residente em Vitória, ES, desde 1984.
Casada, com filhos
Professora universitária (aposentada)
Vitória: elo entre memórias
Cria das águas doces de dois outrora caudalosos rios, nos idos anos de quase antigamente, nasci e aprendi a contemplar distâncias às margens do Paraíba do Sul e do rio Doce. Eles me ensinaram uma porção de coisas em seu lento murmúrio; não sei se me ensinaram a viver. Mas de tanto seguir, incansável, seu curso serpenteando entre montanhas, de dezembro a dezembro, aqui como lá, de tanto vagar os olhos por sua amplidão e mistério, vim certo dia espraiar meus anseios nas profundezas desse mar azul que abraça a ilha de Vitória. Filha, portanto, da poeira das estradas que, remotas e precárias, uniam as origens e as brincadeiras de infância à perspectiva de sobrevivência e de futuro, embalada tantas vezes pelo monótono balanço e pelo inequívoco apito do trem de ferro que encurtava a enorme distância que me separava de minha terra natal e de meus avós, traço meu destino pela definitiva escolha de parar no meio do caminho, naquela cidade que, mais que tudo, servira de pouso tantas e tantas vezes para aquela família cigana com a bagagem carregada de cansaço e nostalgia.
Hoje, transcorridos tantos anos, redesenho essa cidade que me acolheu pelo viés dessas esmaecidas lembranças. Como dizer o que ela é hoje para mim, com seus ares de capital ainda um pouco recatada e ameaçada em tempos frenéticos de progresso das metrópoles, sem lembrar da magia de seus bondes e de seus morros cobertos de verde!? Pois, para mim, Vitória é isto: lembrança de sinuosos contornos pontilhados de casas e de luzes circundados pela – com licença para o lugar-comum – imensidão azul do mar. Vitória é, antes de tudo, imagem construída! Cidade construída com as lendas aprendidas ainda menina na escola, com as crônicas de Carmélia e os versos de muitos de seus poetas que cantaram suas ruas e suas praças, com as notícias que chegavam ao interior das festas de gala do Clube Vitória e do Saldanha, este, ali, imponente, sobre o Forte São João, com as histórias em torno de seus cinemas, com o que se dizia de suas praias e da beleza das inúmeras pequenas ilhas que adornavam a régia geografia da histórica capital.
Essa Vitória de minhas lembranças ainda aí está… Ei-la que ressurge senhora em novos tons e timbres na sua diversa literatura e na fotografia de sua gente. Como as cidades invisíveis, aquelas que Marco Polo descreveu a Kublai Khan em sua memorável embaixada ao Oriente e relembradas por Italo Calvino, mais que paisagem insular ou nobre arquitetura de cidade antiga, moldura que enlaça cidade alta e cidade baixa, Vitória é cais. Vitória é porto. Porto de passagem, Vitória é para mim essa cidade engalanada por seus monumentos e pela oscilação das marés. Tendo de sua história eternamente o mar por testemunha, Vitória hoje já não mais consiste em ponto entre distâncias, e, sim, entre memórias. Desavisada como tantos outros forasteiros, não ouvi o canto inaudível de seu menestrel em tempos imemoriais: “Como eles ignoram que há nessas amarras um visgo salgado que prende sua alma à ilha, os que não retornarem logo à terra de onde partiram não retornarão jamais”.[1]
Com o olhar capturado pelo eterno retorno a esse cais e à visão dessa baía só comparável, real ou imaginariamente, a outra pequenina baía grega, destaco nesta crônica, ciente da inevitável ambivalência das coisas do mundo, que sempre têm um dentro e um fora, além da beleza de seu relevo e de sua geografia, dois legítimos símbolos que enobrecem sua história: a estação Pedro Nolasco, situada em Vila Velha, a partir da qual se fundava oficialmente em 13 de maio de 1904 a Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas, – hoje Museu da Vale -, e a Biblioteca Pública do Espírito Santo – BPES, criada em 1855.
O primeiro, marca evidente do desenvolvimento econômico e social do Estado do Espírito Santo, traz o registro de nascimento de vilarejos e cidades ao longo da ferrovia na região do vale do rio Doce e promove de forma decisiva a integração do interior com a capital e do estado com o seu vizinho. Mas não só; a bela estação em estilo neoclássico guarda a narrativa de gerações plasmadas ao som dos apitos dos trens ou dos sinos que “marcavam as horas, os dias, o ritmo da vida”.[2] Voltada para as tranquilas águas da baía, ela espelha a vida de uma gente, cujas histórias, nascidas ao longo da ferrovia, encerram o movimento vital do ir e vir de homens e mulheres que chegavam e partiam nas estações.
O segundo símbolo, a Biblioteca Pública do Espírito Santo – BPES -, além de contar a história política, administrativa e cultural do povo capixaba, tem ela própria história. Com seus 159 anos, a quinta biblioteca pública fundada no país representa uma pequena síntese do sonho de construção e imortalidade que acompanha o homem em seu destino civilizatório. Cada livro que integra cada um de seus acervos, cada obra que forma qualquer uma de suas belas coleções, cada peça antiga ou rara que integra o tesouro que aquela biblioteca guarda diz um pouco sobre a sua história, sua formação e de sua gente. Mais que preservar e tornar acessível todo aquele tesouro em forma de conhecimento, a BPES, como instituição da cultura, oferece ao capixaba o reconhecimento de sua identidade, ajuda a traçar seu olhar em direção ao futuro. Pra não dizer que não falei de pontes, em ambos os casos – o da estação e o da biblioteca – há ligação e travessia. Elos entre o passado e o futuro, entre o cuidado com a memória e a esperança, forjados nas contradições de um presente muitas vezes fustigado e nem sempre pressentido, a estação e a biblioteca simbolizam, na tensão entre necessidade e desejo, destruição e criação cíclicos, ponte entre tradição e modernidade.
Titânicos, os deuses cobram seu preço. Entristece-me hoje o irreversível desmatamento dos morros. Substituído por um crescimento habitacional desordenado, o verde dos morros, ao desaparecer, deixa entrever a ferida que, por um suposto e equivocado progresso, escancara nossa dívida social e põe em xeque nossa presunção de povo civilizado. Em proporção semelhante e em sentido inverso, aumenta assustadoramente a violência, como a confirmar dia após dia que somos um país jovem e que portanto necessitamos de mais quinhentos anos para sermos um país desenvolvido e livre. Tão pródiga em beleza nossa ilha! E quão rarefeito o ar que nela se respira!… Insólita ilha, essa que acorda todos os dias histérica com o brilho metálico de seus automóveis a lhe congestionar as veias. Mas de tudo isso o que mais me entristece é a sutil, quase imperceptível mudança de pequenos hábitos. Como o de conversar nas praças ouvindo interessadamente o que o outro diz; ou de dar bom-dia quando se anda – se é que ainda se anda – pelas calçadas; ou ainda – e aqui com muita ênfase! – quando, na pressa diária entre carros e pedestres, esquecem-se uns e outros das regras de civilidade e cortesia. A cada esquina se constata que todos, por vingança, arrogância ou por literal interpretação das leis, não retribuem com gentileza, por meio de um gesto ou um aceno, a gentileza de quem lhes dá passagem. Tornou-se démodé agradecer.
Ciente, no entanto, da inevitável ambivalência das coisas do mundo, que se organizam em torno de um dentro e um fora, do espaço e do tempo, que se revestem de verdade e fantasia e das artimanhas entre o bem e o mal, trago comigo na bagagem a memória fertilizada pela experiência cotidiana de descobrir como é bom viver aqui.
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Notas
[1] SANTOS NEVES, Luiz Gilherme. Navegação em torno da ilha vislumbrada. Fotografias de Pedro Nunes. Vitória: Cultural & Edições Tertúlia, 2014. (p. 15).
[2]YOUNG, Guilherme. Estrada de Ferro Vitória a Minas: Um Retrato. Concepção de Joseph Young; textos de Paulo Espírito Santo. SP: Lithos Ed., s.d. (p.17).
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