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Recordações do futebol de Vitória

PARTE I

De “compactos”

A saudade sempre nos permite elaborar uma espécie de “compacto”. O jogo da vida pode ter a duração do “tempo regulamentar” mas esses “compactos”, em geral, não passam de poucos minutos. Há os que se impacientam quando uma pessoa de mais idade começa a falar dos “bons tempos”. Se lhes fosse explicado que se trata de um mero “compacto” em que são eliminadas as bolas fora, os tiros de meta, etc, enfim lances que podem ou devem ser esquecidos, talvez fossem mais indulgentes.



Rio Branco

Feito o necessário nariz-de-cera, passo ao assunto que surgiu numa conversa com o Miguel Depes Tallon: o futebol de Vitória “naquele tempo”.

Começo com uma determinada lembrança do meu time, o Rio Branco. Em 1952, vejo-me como membro da diretoria do Rio Branco presidida por Alaor de Queiroz Araújo, mais tarde reitor da Ufes.

Mas a memória mais antiga do Rio Branco vem de 1946, talvez porque me tenham perguntado sobre glórias do futebol capixaba e fui tentando encontrar louros de antigas batalhas em imaginários baús quase esquecidos. Seja também explicado antes de tudo que não sou um conhecedor da história do nosso futebol — como um Grijó Neto — e estas notas têm sobretudo um nítido cunho impressionista. Detalhes podem estar desfocados mas, no conjunto, creio, fica um painel que procura revelar certos episódios, frise-se, na visão de um determinado espectador.

Mas por que 1946? Recordemos. Nesse ano o Fluminense do Rio havia conseguido um título inédito no futebol brasileiro, o de supercampeão. Hoje em dia são fabricados supercampeões em série (releve-se o saudosismo). Mas o supercampeão de que vos falo possuía craques como Ademir Menezes, o Queixada, o Orlando Pingo de Ouro, Rodrigues, o ponta-esquerda que tinha um canhão nos pés, Pedro Amorim, o médico-jogador, e outros astros de semelhante quilate.

Num momento de extrema audácia, o nosso Rio Branco resolveu desafiar esse Fluminense, supercampeão de 1946, para uma partida no Estádio Governador Bley, em Jucutuquara.

Nessa época eu morava a uns duzentos metros do Estádio. Pode-se calcular a alegria de quem apenas podia imaginar os lances de seu time no Rio através do rádio, em especial pelo Oduvaldo Cozzi — também tricolor — e que de repente via a possibilidade de ver as jogadas desses supercraques, ao vivo e a dois passos de sua casa. Mas nesse momento instalou-se também uma espécie de conflito cultural. Como torcer contra o Fluminense apesar de todo o meu amor pelo Rio Branco? Nesses casos, a província se divertia e, sádica, aguçava o dilema. E agora?

Sinceramente? Na hora do jogo torcia para os dois. Como? Torcia para quem estivesse no ataque. Mas quando o Fluminense fez 2 x 0, passei a torcer apenas pelo Rio Branco. A verdade é que toda minha flama provinciana não foi capaz de deter a admiração pelo futebol do Ademir. O Queixada era um bólido que partia de seu campo e parecia deixar um rastro de fumaça em sua vertiginosa escalada em direção ao gol. Na meia-esquerda, o Orlando Pingo de Ouro produzia filigranas, trabalhando jogadas da mais pura ourivesaria do “esporte bretão”, como era denominado o futebol nos discursos de antigas solenidades esportivas. Como ignorar isso em nome da fidelidade ao time da terra? Um doloroso dilema parcialmente resolvido apenas no final do jogo, que terminou mesmo nos 2 x 0 para o clube carioca. A solução veio de riobranquenses como Ruy Benezath que não eram torcedores do Fluminense. Ou eram?

Fica a dúvida. O que importa é que nos descobrimos relativamente satisfeitos porque o Rio Branco havia perdido apenas por 2 x 0. Esperava-se uma goleada e aquele placar reduzido passou a ser uma espécie de vitória moral. Não é preciso acrescentar que, salomonicamente, embora com um leve traço de remorso, passei também a comemorar nossa modesta derrota.

O adolescente e a visão 

Isso afinal mostra que certas glórias dos bons tempos não foram sempre tão deslumbrantes, pelo menos até onde alcança minha memória. Tínhamos plena consciência de que não podíamos nos alinhar com os deuses olímpicos do futebol carioca. O exemplo mais acabado dessa condição não foi o ocorrido nesse jogo do Fluminense mas com um time do Flamengo que apareceu por aqui em meados dos anos quarenta. Ao falar desse time não sei se estou falando de um time de futebol ou de uma ficção, de um punhado de heróis gregos que vai à caça do gol como quem vai pegar o velocino de ouro com o descansado gesto de rotina de apanhar a marmita do almoço. Vejam a linha média: Biguá, Bria e Jaime. Bem mais tarde, cerca de uma década depois, o Brasil se sagrou campeão do mundo mas na memória dos que assistiram àquele jogo aqui em Vitória, permanecerá sempre a dúvida se aquele time do Flamengo não deixava a anos-luz de distância a própria seleção canarinho de 1958. Falei de linha média mas isso é de uma indesculpável trivialidade. Tratava-se de um trio de gigantes que não apenas dava condições para tornar inexpugnável a chamada última cidadela, como também fazia razias mortíferas no terreno adversário. Biguá era um gigante de um metro e sessenta e cinco, se tanto. Um indiozinho atarracado que parecia um desses personagens de história em quadrinhos, o “homem-elástico” ou equivalente. Qualquer bola vinda em sua direção era alcançada por sua perna gigantesca. Na lateral esquerda, o Jaime. Pensem num jogador extremamente leal e que diante do adversário parecia pedir-lhe desculpas antes de tomar-lhe a bola. Com um detalhe: tomava todas, aceitasse ou não o adversário seu educado pedido de desculpas. Se não me engano, esse Jaime é o pai de um treinador do mesmo nome que trabalhou aqui em Vitória há algum tempo: Jaime de Almeida.

Era a época do centeralfe. No campo de batalha ele era o estrategista que, além de exercer uma função defensiva, comandava o ataque às hostes inimigas. O centeralfe era o indiscutível proprietário do meio-de-campo e parecia haver uma espécie de consenso entre os litigantes quanto ao respeito ao território sagrado compreendido em seus domínios. Sabe-se que as táticas atuais profanaram esses domínios e chegaram à extinção do centeralfe, cujo correspondente, no jogo moderno, não consigo identificar. Deve ser um burocrata da bola, um homem de terno cinzento que nada tem a ver com aquele nobre personagem protegido pelas normas de um código invisível que lhe concedia o grau de cavalheiro na hierarquia futebolística. Quem não se lembra do Veraldo do Vitória, Rafael do Caxias, João Pedro do Rio Branco? Todos verdadeiros senhores feudais, muito cônscios da responsabilidade que lhes era delegada: administrar seus domínios com sabedoria, em nome da beleza do futebol. A culpa pelos gols perdidos jamais podia ser atribuída aos centeralfes. As falhas ficavam por conta dos beques ou do infeliz goleiro. No centro do campo eles pairavam acima do bem e do mal. Também não eram culpados por não fazer gols, tarefa dos atacantes. Sempre que os perdiam os tais atacantes seriam apenas desastrados emissários que não cumpriam adequadamente as missões propostas pelos inatacáveis centeralfes. Esta longa introdução ao papel do antigo proprietário do meio-de-campo serve apenas como referência ao maior de todos que já vi jogar em minha vida: Bria, desse mesmo time do Flamengo que veio jogar em Vitória nos anos quarenta. Pode ser que a fantasia de meus olhos adolescentes contribua para exacerbar essa lembrança mas é difícil alguém me convencer que, naquele jogo, se quisesse, Bria não poderia dar saltos de três metros de altura, e até mesmo alcançar a marquise do Estádio. Uma atuação fantástica e que fica como um dos momentos inesquecíveis em minha trajetória de espectador.

A linha de ataque desse mitológico time do Flamengo? Bem, meus caros, “compacto” à parte, declaro que vi Zizinho jogar. Para Zizinho, o campo era uma folha de papel milimetrado onde ele desenhava dribles invisíveis. Fala-se muito, com inteira justiça, nos fenomenais dribles de Garrincha. Mas havia nos dribles do legendário extrema um toque de comediante com suas infalíveis escapadas pela direita. Com Zizinho o espetáculo ficava por conta de uma inexplicável mágica de esconder a bola durante um drible milimétrico. Mas a razão sempre imperava e, no traçado das coordenadas cartesianas, seu passe era meio caminho andado para o gol. Enfim, Zizinho encarnava um mágico que não usava truques e isso enriquece a condição humana na medida em que um portador dos tradicionais cinco sentidos nos aponta uma insuspeitada possibilidade de superação de triviais limites. E assim foi porque me pareceu.



Um gênio do futebol

Mas nessas recordações do futebol de Vitória há também o cruel, o épico e o trágico. Lembro-me de um jogo do Vasco da Gama, “Expresso da Vitória” ou pelo menos com alguns vagões dessa locomotiva que arrasava os demais times cariocas. Havia o zagueiro Rafanelli, uma espécie de paredão, um Evereste em cujo sopé os ataques inimigos se desfaziam como ondas na praia. Ely, o Príncipe Danilo e Jorge na linha de alfes. No ataque, Maneca e Chico mas, principalmente, Heleno de Freitas, o épico e o trágico. Nos dias anteriores ao jogo havia chovido muito e continuou chovendo no domingo de manhã. Pela tarde o sol apareceu mas o campo estava todo enlameado. Grandes poças d’água nas linhas intermediárias mostravam um precário sistema de drenagem.

Entra em campo a equipe cruzmaltina com aquela faixa diagonal na camisa. O time vinha completo.

Aos trinta minutos do primeiro tempo o placar já mostrava três a zero para o Vasco. Uma superioridade esmagadora. Os jogadores de ambos os times pareciam egressos de um festival de lama. Difícil até distinguir os respectivos uniformes. Com uma exceção: Heleno de Freitas. O uniforme do centroavante permanecia imaculado. Havia uma razão para isso: ele estava em campo mas não participava do jogo. Nos cruzamentos de bola sobre a área, se essa caísse numa das inúmeras poças da intermediária, ele simplesmente parava e deixava que o adversário a tomasse, pulava por cima da poça para não molhar as chuteiras e os pés. Os cabelos glostorados — como se dizia — continuavam também penteados. Enfim, Heleno simplesmente não tomava conhecimento da partida. Como os demais jogadores vascaínos continuavam fazendo jogadas inéditas para nossos olhos provincianos, Heleno passou despercebido. Afinal seus companheiros continuavam a marcar gols na meta do time conterrâneo.

Veio o segundo tempo e as coisas permaneceram no mesmo ritmo embora o Vasco não se interessasse mais em fazer gols. Limitava-se a deixar o tempo passar, construindo jogadas com todos os enfeites do repertório de seus craques, mas Heleno continuava o mesmo ausente do jogo e seu uniforme permanecia limpíssimo. Recusava-se a jogar. Era um lorde inglês no meio de enlameados proletários da bola.

Conformada com o resultado da partida, a torcida se limitava a apreciar a beleza do espetáculo proporcionado pelos craques do Vasco, sem se manifestar. Mas em dado momento, alguém começou a se irritar com a displicência de Heleno e começou a surgir, a princípio tímido, um coro que gritava “Gilda…Gilda…”. Os torcedores sabiam que Heleno não gostava nem um pouco desse apelido que punha em dúvida sua masculinidade. “Gilda…Gilda…” e logo o coro se tornou bem forte, concentrando toda a frustração da torcida pelo esmagador placar e pela superioridade técnica que o Vasco impunha ao time da casa.

No princípio Heleno pareceu não se incomodar, mas foi por pouco tempo. Quando o coro se tornou ainda mais forte, Heleno levantou o queixo para a arquibancada numa atitude de desafio. O estádio quase veio abaixo com os gritos de “Gilda…Gilda…”. Alguns segundos depois, Heleno pareceu, afinal, tomar conhecimento do jogo e viu o ponta-direita esticar uma bola para o centro. Pela primeira vez ele entrou na inevitável poça d’água da linha intermediária. Mas não passou dali. De onde estava, numa posição anterior à meia-lua da área, desferiu potentíssima cabeçada. Um petardo que entrou com extrema violência no canto direito do gol. O goleiro ficou absolutamente parado e perplexo com a velocidade do lance. Até prova em contrário, tenho para mim que esse foi o maior gol de cabeça da história do futebol.

O que aconteceu depois? A torcida não teve alternativa: para honra e beleza do espetáculo, calou o coro de “Gilda” e aplaudiu bastante o lance extraordinário. Heleno? Simplesmente continuou a pular sobre as poças d’água até o final do jogo, saiu com o uniforme limpo e a única marca de sua participação na partida foi o cabelo levemente despenteado. Aliás, em homenagem a esse gol, é melhor não entrar no trágico do destino desse jogador excepcional, de temperamento muito difícil. Neste momento, permaneça a lembrança desse lance de um gênio do futebol.

Aquele jogo da seleção capixaba 

Mas, e as glórias? Será que não existiram? Preciso avisar que estas recordações coincidem com uma fase de grande crise no futebol capixaba. Foi a época em que o Rio Branco ficou sem o Estádio Governador Bley e teve até que mudar de nome, passando a chamar-se Riobranquinho, vejam só. Voltou a chamar-se Rio Branco A. C. alguns anos depois, quando também pôde reaver o Estádio, construído com muito sacrifício pelos associados daquele tempo. É verdade que no período em que assistia a futebol em Vitória, entre os anos quarenta e sessenta, falava-se de uma época anterior muito feliz de nosso futebol. Não sei se se trata de referências às invariáveis idades de ouro da história de todos os povos e que correspondem apenas a uma conhecida necessidade psicológica, sem relação com os fatos. Não sei. Falava-se de muitas glórias e de grandes craques. Não duvido. Apenas não sei. Limito-me a escavar as glórias do meu próprio tempo como espectador. Talvez não muito retumbantes. Mas são as que a memória torna disponíveis.

Naquele dia aguardávamos ansiosos o trompete do Harry James que anunciava o programa “Focalizando os Desportos” na Rádio Espírito Santo. Um programa apresentado pelo Mickey, dublê do jogador Darly, excelente meia-esquerda do escrete capixaba. Aguardávamos a descrição da façanha de nosso selecionado em terras estranhas onde havíamos derrotado o time dos temíveis papa-goiabas, os fluminenses. Adolescentes ilhados em Vitória, imaginávamos esses papa-goiabas travestidos de ferrabrases então subjugados pela perícia de nossos craques. Ainda mais, esses nossos inimigos, ora derrotados pelo arrasador placar de 2 x 1, moravam em Niterói, uma cidade que, em nossa imaginação, aparecia como uma espécie de Nova Iorque. Claro, esses nossos adversários deviam viver como nababos naqueles arranha-céus que seriam gigantescos. Não trabalhavam. Viviam de jogar futebol, o que na época não era nada recomendável. “Nossos rapazes”, como eram chamados pela imprensa, nossos humildes rapazes, ao contrário, não eram assim. Trabalhavam de sol a sol. Treinavam ao clarear do dia para pegar no batente às oito da manhã. Mesmo assim, nossos heroicos rapazes haviam infligido essa acachapante derrota aos nababos fluminenses, desprezíveis profissionais da bola. Argh.

No domingo seguinte, seria a revanche no Estádio Governador Bley. Para os papadores de goiaba, bem entendido.

E o domingo veio. Estádio repleto. O orgulho da terra pelo seu escrete explodia nos risos de todos, sentíamo-nos mais conterrâneos do que nunca.

Entra em campo a representação fluminense.

“Papa-goiaba”, “Papa-goiaba”… nós, da camisa 12, procurávamos fazer a nossa parte a fim de minar a auto-estima dos inimigos. Afinal, ali estavam os ferrabrases, os argentários, pretendendo vingar a derrota que lhes impusemos em seus próprios domínios. Pois sim. No calor das manifestações das hostilidades — uma hostilidade esportiva, e os aficionados sabem do que estou falando — fazíamos espaço para observações. Para falar a verdade, a maioria daqueles jogadores era de estatura bem menor do que imaginávamos e ao invés de bíceps hercúleos muitos deles traziam a marca de um quase raquitismo. Não importava. Eram nossos inimigos e seriam massacrados (na bola, é claro).

Uma figura se destacava entre eles. Era um jogador depois identificado com Cliveraldo, ponta-esquerda do selecionado fluminense. Para espanto de todos, esse jogador tinha entrado em campo simplesmente com a perna esquerda totalmente enfaixada em gaze.

O que foi, o que não foi. Ficou-se sabendo que o jogador havia se machucado no jogo anterior com o nosso escrete. Imediatamente formou-se um consenso de que a contusão havia sido acidental porque “nossos rapazes” seriam incapazes de machucar alguém de propósito. Isto é, numa fração de minuto, todo o estádio, embora sem informações prévias, concluiu que a contusão se dera num lance da maior casualidade. Ora, se assim era, pensando bem, aquilo até que representava uma vantagem para nós. Não sendo culpados pela contusão, só nos restava aceitar a vantagem inesperada. Ia acontecendo isso no jogo. Até os trinta minutos do segundo tempo, Cliveraldo, o ponta-esquerda de perna enfaixada, cumpria o seu papel de inválido com espaço privilegiado para assistir ao jogo. Arrastava-se pela extrema esquerda do campo como uma tartaruga conformada. Mas por volta dos trinta e cinco minutos do segundo tempo, a tartaruga vestiu uma roupa de lebre e todos nós prendemos a respiração porque ia se materializando uma leve suspeita que, desde o princípio, nos incomodava: aquela faixa na perna não seria mero embuste, um truque, para nos enganar, uma traição ignominiosa? Cliveraldo corria pela ponta como se tivesse nos pés as asas de um lépido Mercúrio. “Infame, traidor”, era um pensamento tão unânime na arquibancada que quase podia ser tocado com as mãos. Nos segundos em que tais coisas aconteciam, Cliveraldo acelerava mais a corrida com a bola dominada até que do bico da área desfechou um canhonaço histórico. A bola-bala descreve uma curta e descabida parábola e, em cima do gol, caprichosa, despenca como uma folha seca. Goleiro batido, já que havia se jogado para o canto errado, enganado pela trajetória da bola temperada com um veneno mortal (também não sei se o chute saiu assim por acaso), só nos restava erguer lamentos aos céus. Mas não foi nada disso. No último instante, como se também estivesse revoltado contra as transgressões à lei da Física perpetradas pelo chute que muitos diriam desengonçado mas nós considerávamos traiçoeiro, apareceu, não sei como, o ângulo de junção das traves do canto direito que deu um quique na bola jogando-a pela linha de fundo.

Perplexos e felizes vimos a bola morrendo no fundo do campo, talvez aliviada por não participar daquele conluio com o falso inválido. Falso? Talvez não fosse fingimento porque após aquela corrida que durou alguns segundos, mas para nós teve a duração de um século, o Cliveraldo caiu pela lateral do campo e parecia, como se ouviu, “completamente falecido”. Os dirigentes do selecionado fluminense foram até lá e trouxeram o Cliveraldo nas costas porque naquele tempo ainda não era usada a maca. Nova farsa? Tivemos a certeza que não, porque dali a poucos minutos o jogo acabava com nossa vitória por um a zero. Foi assim que, com duas vitórias consecutivas, eliminamos os terríveis papa-goiabas, aqueles que viviam à tripa forra, ganhando salários astronômicos e morando em arranha-céus de luxo, como era maquinado pela nossa fértil imaginação. A comemoração varou a madrugada e os bares do Guaracy e do Heráclito, em Jucutuquara, venderam cerveja como nunca.

No mês seguinte o Vitória contratou o ponta-direita desse mesmo selecionado fluminense, de nome Heitor. A partir daí fomos obrigados a fazer uma revisão histórica, como está em moda hoje em dia. Heitor, ex-atacante do facinoroso escrete fluminense, na verdade, em sua identidade secreta, era uma excelente pessoa que se casou com uma moça de Jucutuquara onde foi morar, na rua Augusto Calmon, e passou a fazer parte de nosso grupo que ficava batendo papo na beira da antiga vala até altas horas da noite. Claro que durante algum tempo foi obrigado a aguentar nossas brincadeiras mas a tudo respondia com sorrisos e uma calma de sábio.

Não demorou a ser um dos nossos.



Os mineiros 

A seqüência de jogos nos remete aos adversários seguintes no Campeonato Brasileiro de Futebol: os mineiros. Passado tanto tempo, o garoto que mora em minha lembrança não me permite brincar muito com a frustração decorrente do jogo contra esse escrete. O som da bola batendo no alambrado do fundo do gol que dá para o morro, depois do pênalti batido pelo Marmorato, persiste até hoje em meus ouvidos. Acontece que o futebol mineiro, com todo o seu poderio, seus Kafunga, Ismael, Zé Carlos, Mário de Souza, não, Mário de Souza entrou em outra ocasião, mas afinal com todo o poderio de estado rico, não estava conseguindo nada com nosso intrépido selecionado até o começo do segundo tempo. Jogávamos no mesmo nível deles até o momento em que o árbitro resolveu mudar as regras estabelecidas pela International Board e alterou o tamanho do campo durante o jogo. Foi o que aconteceu. O atacante mineiro veio vindo e saiu com bola e tudo pela linha de fundo. Então, para surpresa de todos, mais de metro e meio fora do campo, ele cruzou para a área e outro avante mineiro fez o gol de cabeça. Gol nulo? Nada. Sua Senhoria começou a caminhar lentamente para o centro do gramado a fim de validar o gol. A ira da massa de patriotas que se comprimia no Governador Bley era imensa. Tentativa de invasão de campo. Adolescentes, olhávamos para aqueles senhores circunspectos que sempre iam aos jogos usando terno, gravata e chapéu. Nunca pudemos compreender bem mas eles sempre assistiam aos jogos sentados nas cadeiras, observando-os com frieza e aparente isenção. Seriam eles portanto nossa instância superior. Podíamos estar enlouquecidos pela paixão mas ninguém melhor que eles para avaliar a situação e dar um sinal qualquer, indicar a atitude a tomar. Mas eles não falaram e nem fizeram nada. Permaneceram frios e isentos. Todos nós nos sentimos órfãos e vazados por uma cruel injustiça. Sua Senhoria, inexorável, ordenou nova saída tirando qualquer possibilidade de anulação do gol.

O jogo prosseguiu sob a indignação geral. Dispensável detalhar o conceito que a multidão fazia do senhor juiz, aquele… aquele… Fechem janelas e portas, senhoritas. O ribombar dos palavrões fazia corar as cinzentas estruturas do Estádio.

Mas, de súbito, Sua Senhoria tem um momento de clarividência. Embora um espião traidor ao meu lado tenha dito que não viu o lance direito, é claro que tinha sido pênalti contra os mineiros. Um pênalti claríssimo como soem ser os que beneficiam nossos times.

E lá vem o Marmorato do fundo da memória para bater outra vez o pênalti. Era um destróier vingador navegando pelo meio do campo em direção à meta adversária, como já disse o cronista Luís de Almeida. Marmorato, um gigante de quase dois metros, prepara-se para esfarelar com seu chute destruidor o amedrontado goleiro das Gerais. Vai goleiro e bola para dentro do gol. Era o pensamento unânime do Estádio. Tum. O som da bola batendo no alambrado, como disse, rói meus ouvidos até hoje.

Empatamos o jogo e saímos do campeonato brasileiro daquele ano, já que havíamos perdido em Belo Horizonte.

[BORGO, Ivan. Recordações do futebol de Vitória. Publicado em forma de livro em 2001. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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