Assim como domingo, dizem, é dia de pescaria, sábado é dia de livraria. Isso, pelo menos, para o grupo de amigos que se reúne todo sábado na Livraria Logos da Praia do Suá, a partir de por volta de dez horas da manhã.
Somos nem sei quantos. Tem a velha guarda, tem a nova guarda, tem a média guarda: ou seja, gente de todas as idades e para todos os gostos. Somos – reconheço – barulhentos; já houve freguês que reclamasse (como se estivesse em sua própria casa), mas até agora ninguém atirou sobre nós nenhum pé de sapato velho, como se faz, ou se fazia, para calar a miação de um gato.
Falar em gato me leva, por uma associação que só Freud explica, a falar em João Bonino Moreira. A origem dessa confraria tavolar já se perdeu nas brumas da História, mas alguma coisa me diz que aí tem dedo de Bonino: creio não estar errado se disser que é ele a célula mater que deu à luz a nossa confraria, não sei como nem quando (essa questão ainda será tema de tese de doutoramento em 2035, ano em que a grande escassez de temas de teses de doutoramento justificará a existência de um próspero mercado negro dessa mercadoria). Porque houve uma época (meus amigos hão de se chocar, mas não estou mentindo nem delirando) em que essa confraria ainda estava por se formar ou, em outras e mais cruas palavras, ainda nem existia. Lembro-me vagamente de ter visto a figura de João Bonino algumas vezes, nessa época proto-histórica, quando era ele toda a confraria: lembro-me como pisava com impaciência os frisos da loja, novinhos em folha, fumando com impaciência mais cigarros ainda um atrás do outro do que fuma hoje. Bonino não sabia, mas essa era a impaciência da espera: ele já estava esperando por nós.
Com mais paciência esperava ele condução, um belo sábado deste mês de março (belo aí é mero eufemismo, porque estava um puto calor), no ponto de ônibus da avenida República. Foi ali que dei com nosso querido sócio fundador. O primeiro ônibus que parou foi um ônibus do bairro Bairro República. Assim, no meu pobre entender, se fôssemos dali até o ponto final, teríamos ido da República à República, o que, na velha lógica do absurdo, seria o mesmo que não sair do lugar (como também não saiu o Brasil, na República, durante muito tempo).
No trajeto para a Praia do Suá, bateu-me a brilhante idéia e pedi autorização a Bonino, e ele deu, para publicar um texto dele na Escrivaninha. Assim, veja o leitor que numa simples viagem num dos ônibus da linha 123 pode estar o embrião de acontecimento historicamente tão crucial como este: o que você vai ler na seção Escrivaninha desta revista (revista que, como já disse alhures, não pode ser vendida separadamente).
Mas com que então, dirá o leitor, esse João Bonino, além de ser fundador de confrarias, ainda se mete a gato-mestre e escreve as suas literaturas? Sim. Bonino é um caso ímpar na nossa literatura home-made. Primeiro, porque só se arvorou a publicar na alta maturidade, que é o que, convenhamos, muitos de nós devíamos ter feito também. Segundo, porque mesmo depois de uma vida pródiga de grandes peripécias e experiências, de vastas leituras sobre tudo sob o sol e de profundas reflexões a respeito de tudo que fez, que viu e que leu, Bonino escreve modicamente. Escreve somente aquilo que tem mais prazer em escrever: aquilo que é fruto de uma escolha pessoal muito pessoal: mais pessoal que a de Borges, famoso por dar ao adjetivo respeitáveis conotações.
Mas acabo estendendo-me mais do que devo. O conto de Bonino que escolhi para a Escrivaninha me agrada por vários motivos. Em primeiro lugar, porque é muito engraçado. Em segundo lugar, porque tem subentendidos políticos que juntam no mesmo saco de ironia farinhas políticas aparentemente tão diferentes como uma prefeitura do Espírito Santo e um palácio da Grã-Bretanha. Em terceiro lugar, porque nunca, creio eu, tinha ocorrido a ninguém trazer para a literatura os famosos pios de caça fabricados em Cachoeiro de Itapemirim, coisa autenticamente nossa, que não existe em parte do mundo alguma. Em quarto, porque Bonino usa os pios como ponto de partida para a criação de uma verdadeira fábula, e quando digo fábula não estou usando o termo na solene concepção em que é usado em teoria literária, nem na de Faulkner em A Fable, mas antes, por exemplo, na de Stevenson em The Bottle Imp. Para provar o que digo, basta-me uma pergunta retórica: o conto de Bonino a que remete? E outra resposta não tenho, para tirar de imediato do chapéu, a não ser: remete à fábula do flautista de Hamelin. A associação se apóia num fio tênue, mas bastante forte, espero, para sustentar classificação que não hesito em dar ao conto.
Mas agora já está mais que na hora de me calar antes que o leitor, impaciente por ler o conto, atire sobre mim um pé de sapato velho. Só direi mais que o conto faz parte do livro A rainha que piava e outros contos, lançado em dezembro de 1997 por ocasião daquele que foi o maior lançamento da história literária do Estado, quando o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo desovou de uma só vez vinte e cinco títulos diferentes, no evento que ficou conhecido, por sugestão inspirada de Luiz Guilherme, como “dezembrada”.
Direi ainda, por fim, que esse ilustre teresense de Santa Teresa João Bonino Moreira é também autor do estranho e maravilhoso fragmento de romance, O presidente nu, de 1996, texto concebido e realizado à la Borges, sem que Bonino tenha jamais gostado de ler Borges.
[O conto “A rainha que piava”, de João Bonino Moreira, foi publicado na seção Escrivaninha da revista Você n° 55, de março de 1998, com a introdução aqui apresentada.]
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo.