Fez frio em Vitória mês de junho. Só que dia 21, data da abertura oficial da temporada de inverno, deixou de fazer frio e fez calor. Ou seja: até isso pode acontecer em Vitória: o inverno começar de mãos dadas com o verão (para desgosto de amantes da friagem, como eu e os irmãos Ivan e Ivantir Borgo).
Detalhes climatológicos à parte, este morno inverno trouxe consigo nada menos que quatro livros de poesia da melhor qualidade.
Um. Gilbert Chaudanne promoveu a reedição — ilustrada por ele mesmo, comme il faut — dos Cânticos noturnos, de Audífax de Amorim, poeta que inaugurou, de sola, com pé direito, e quae sera tamen, a poesia modernista em terras do Espírito Santo.
Dois. Valdo Motta trouxe de São Paulo, onde foi editado com o selo requintado da Unicamp, seu livro Bundo e outros poemas, que representa mais uma fase da trajetória desse poeta por excelência em sua busca de um graal altamente personalizado.
Três. Sérgio Blank lançou o seu Vírgula. Mesmo sem folha de rosto (engolida por engano durante o processo de montagem na gráfica, além de outras barbaridades, para justíssima indignação de Joca Simonetti, responsável pelo primoroso projeto gráfico), o livro contém dezesseis poemas que consolidam o nome de Blank na vanguarda avançada (com perdão da redundância) da nossa poesia.
E agora — quatro — é Miguel Marvilla que põe na roda os seus Sonetos da despaixão.
Miguel vem cheio de nove horas, como é o seu estilo. Pra começar, inventou uma editora virtual — Flor & Cultura — com marca (criada por Mara Perpétua) que parece um enxerto de flor e de pé e me remete, num piscar d’olhos, ao pôster do filme Meu pé esquerdo e isso é, eu digo, acreditem, um elogio.
Além disso, Miguel continua achando que o poema só por si não é o bastante. Daí a sua mania de adereçá-lo com tudo quanto é ornamento, na forma de epígrafes, dedicatórias e datas de fabricação — penduricalhos que, a meu ver, só poluem o entorno — com perdão da má (má só? — péssima!) palavra — do poema. Entre as epígrafes, aliás, merece registro aquela assinada por um certo Deus, isso mesmo, é assim que está lá, sem sobrenome (a menos que Deus seja sobrenome; nesse caso falta o nome de batismo), autor que não encontrei em nenhuma história da literatura mundial que consultei.
Falando sério, ou quase, o que Miguel Marvilla faz nesse livro é mostrar com quantos versos se faz um soneto. Longe, muito longe, de chover no molhado, como milhares de sonetistas de ontem e de sempre, que fazem sonetos com catorze versos, Miguel faz diferente: faz sonetos com catorze versos. Ora, direis: não é a mesma coisa? É e não é. Acaso Jorge Luis Borges não já demonstrou, como queria demonstrar, que é possível produzir um Dom Quixote totalmente novo e inovado reescrevendo palavra por palavra a obra-prima de Cervantes? Pois então. É por aí. Verso de soneto de Miguel Marvilla não tem a mesma tessitura, o mesmo quilate, a mesma gramatura, o mesmo peso atômico que o verso do comum dos sonetistas. São catorze? São. Mas seu valor intrínseco se estima filatelicamente: tão filatelicamente como se estima, deixa ver um exemplo — como se estima um olho-de-boi.
Ademais, enquanto uma legião de poetas está aí escrevendo em vernáculo, Miguel Marvilla, ao contrário, escreve em vernáculo. Ora, direis, outra vez: não é a mesma coisa? Claro que não. Para usar da expressão mais simples, direi que o vernáculo daqueles poetas é o mesmo do tabelião: só permite uma leitura e olhe lá. No caso de Miguel, o seu vernáculo confere ao poema o poder caleidoscópico de admitir um porrilhão de leituras diferentes e sobretudo — repito: sobretudo — contraditórias. Cada verso se derrame, para parafrasear achado do próprio poeta em questão, num abismo de sinônimos.
Outra diferença fundamental entre o poeta, digamos, menor e um poeta como Miguel tem a ver com a temática de um e de outro. Aquele trata do ser humano e dos meandros de sua mente e de sua alma, tendo como um dos assuntos preferenciais, naturalmente, o amor. Já um poeta como Miguel trata do ser humano e dos meandros de sua mente e de sua alma, tendo como um dos assuntos preferenciais, naturalmente, o amor.
Terceira vez, ora, direis: não é a mesmissíssima temática? É e não é. A reação do poeta menor diante, por exemplo, do amor é pavloviana: vêm-lhe à mente todos os lugares-comuns — conceituais, imagéticos, vocabulares — que fazem parte do inconsciente poético coletivo e é com esses lugares mais que comuns, sem nenhum tratamento de choque, que ele vai compor o seu poema. Já um poeta como Miguel, diante, por exemplo, do amor, vê uma colcha de mistérios. Parte, então, em seus poemas, para mostrar que nenhum desses mistérios se presta à vulgaridade do esclarecimento. Esclarecer mistérios é tarefa da ciência; à poesia cabe, sim, desdobrá-los em mais mistérios.
Para encerrar. Miguel Marvilla é poeta que trabalha com o indizível. Ousa, em seus poemas, não só dizer o indizível mas, assim que o tenha dito, desdizê-lo categoricamente. E, nesse diz-que-desdiz, produz poemas como estes que aqui estão.
[In Revista Você nº 41, de agosto de 1996, seção Escrivaninha. Os poemas reproduzidos na revista são os de nº III, IV e X.]
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Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)