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Remanescentes neolíticos do índio

Na constante disputa em que viviam as tribos indígenas, dos parques de caça e pesca, a orla marítima era sempre mais ambicionada. Nela, eles encontravam abundância de peixes e mariscos, além do sal, imprescindível à alimentação.

Havia, ainda, a atração do intercâmbio com o branco, que trazia os instrumentos de ferro tão precisados: facas e machados.

É fácil compreender o quanto se revezavam nessa supremacia de domínio.

A terra capixaba, que no tempo de Cabral tinha índio como formiga, recebeu, na extensão da sua costa azul, o batismo tupi: Itabapoana; Siri; Marataízes; Itapemirim; Itaoca; Piúma; Iriri; Ubu: Guarapari: Meaípe; Muquiçaba; Suá; Piraém; Jacareípe… Em toda essa região, bem palmilhada, foram muitos os sambaquis ou ostreiras, deixados como marcos das diversas tribos itinerantes: tupinambás, tupiniquins, goitacás, botocudos, puris… Os fabricantes de cal, que vieram depois, se incumbiram de consumir esses “livros abertos”, para os pesquisadores.

Os cemitérios indígenas, onde outrora era relativamente fácil escavar uma urna funerária, tornaram-se extremamente raros. As grutas e cavernas vêm sendo transfiguradas pelos visitantes curiosos, que destroem ou carregam os elementos de maior interesse do arqueologista. Só mesmo algum fator ocasional e adverso, como a emanação de gás carbônico, consegue preservar parte de uma importante gruta como a do Limoeiro, no Castelo.

Por tais razões, seria providencial o costume dos aborígenes de reduzirem a cacos os potes, cabaços e utensílios que possuíam, ao abandonarem as suas aldeias. Desses fragmentos de cerâmica com ornatos, encontraram-se diversos, na Sapucaia, região norte do Espírito Santo, junto a machados de pedra e um amuleto de minério de ferro, material classificado como de origem tupi. Notou-se a curiosidade num dos machados de jaspe branco, rocha não encontradiça no Estado, o que vem demonstrar o nomadismo das tribos.

O historiador Antônio Marins registrou, no ano de 1882, o achado numa pequena gruta, ao pé da pedra Itabira, de ossadas e utensílios indígenas. Ajuntou que em 1906 ele endereçou a uma pessoa, no Rio, um machado de pedra negra, com os característicos de autêntico sílex da época neolítica. Não forneceu nenhum outro elemento elucidativo. Mas acentuou outra informação: a da remessa, no citado ano de 82, para figurar na Exposição Antropológica da Corte, de dois machados de pedra (vulgo pedra de raio), encontrados em terras da Cachoeira do Rio Novo.

Recordo-me de um achado, em 1940, na fazenda Santa Rosa, próxima ao município de Cachoeiro de Itapemirim, numa pedra a 500 metros de altura, em uma gruta formando imenso salão escavado na rocha, sobre o abismo, medindo 50m de frente, por 20m de profundidade e 30m de altura: ossos de oito pessoas, seis adultos e duas crianças; uma rede de fibra de tucum; uma pele de onça jaguatirica, provável agasalho; e alguns metros de corda de tucum, de uso presumível para acesso àquele local.

Os índios amarraram, em “nó de porco”, ao osso rádio do antebraço duma das crianças, a mais velha, de seis a oito anos, prováveis, uma pequena corda de tucum.

As mulheres botocudas costumavam carregar os filhos atados aos seus pescoços, para melhor os segurarem nas freqüentes correrias pelo mato. Tudo faz crer que aqueles índios se deixaram consumir, ali na gruta, por alguma doença epidêmica, associada à fome e à inanição.

De procedências diferentes, guardo comigo três espécimes de machados de pedra indígenas, pouco elucidativos ao estudo, pelas vagas informações que os acompanham. Um, de pedra clara, bastante polido, salvo na parte superior, oposta ao bisel do corte, mede sete cm de comprimento por três e meio e quatro e meio cm de largura; tido como procedente de São Mateus. Pelo seu reduzido tamanho, deve ter sido encastoado em algum cabo de madeira resistente e dura. como a brejaúba ou o ipê, preferidas para a confecção dos arcos, lanças e tacapes, e usada como machadinha para arrancar o cobiçado mel das abelhas silvestres.

O outro machado, procedente de Bananal, próximo à cidade de Cachoeiro, menos liso, tem o formato de um dente incisivo humano e a dimensão de 14 cm de comprimento por 3 cm de largura, na extremidade superior; 7 cm no terço inferior, onde começa a cava do corte, formado em meia lua. Seu tamanho permite supor que o cabo lhe fosse amarrado ao meio com alguma embira resistente. Quero crer que teria sido de uso dos puris, com mais propriedade, como o primeiro, para arrancar abelheiras mombuca, tuiúba, ou urucu, no oco de alguma oiticica ou tamburi; para cortar algum palmito, ou mesmo quebrar cocos de iri, sapucaia, ou pindoba.

O terceiro espécime, granito preto, procedente do norte do Estado, mede vinte cm de comprimento e o original primitivo mediria vinte e cinco, não fosse a ignorância de um caboclo, o qual perdeu a aposta de que o material, tido como pedra de corisco, ou meteorito, era inquebrável. A conformação dessa pedra admite tratar-se de uma cunha, semelhante às usadas pelos tiradores de madeira.

A melhor notícia dos machados de pedra polida descobertos no solo capixaba parece-nos a fornecida por Afonso Cláudio, em 1918. Machados e punções, ou cunhas de pedra, de tamanhos fora do comum, alguns medindo dois palmos craveiros de comprimento por cinco polegadas de largura, encontrados perto de Vitória, no rio Meaípe. Tais artefatos, de uso atribuído aos goitacás, que se destinavam à coleção do Museu Nacional, teriam caído nas mãos do tupinólogo Simões da Silva, enriquecendo o seu museu particular. Com a sua morte, e dispersão das peças do dito museu, seria difícil determinar o paradeiro dos artefatos.

O mais superficial exame dum machado de pedra permite-nos aquilatar o insano trabalho de paciência dos índios, no polimento obtido com a fricção contra outra pedra, geralmente uma laje em cuja superfície formavam extensos sulcos, procurando afiar, com o auxílio de areia, o gume desses objetos cortantes. Dessas ranhuras ou polidores neolíticos, riscos fusiformes mais ou menos paralelos, há presença no morro do Mosteiro, em Cabo Frio. Criou-se, em torno delas, uma lenda: seriam as marcas das chicotadas de Jesus ao encontrar-se, no local, com Satanás.

Também em Inhanguetá (pedra do Diabo), arredores de Vitória, há marcas na laje, que poderiam ser afiadores neolíticos; ranhuras em extensão longitudinal e, nitidamente gravadas, marcas como as deixadas por um pé comum e outro, fora de proporções. Essas depressões ou “couvetes” eram usadas para polir os lados dos utensílios. Junto às pegadas, alguém se deu ao trabalho de talhar uma cruz. Também em torno dessas marcas criou-se uma lenda. Segundo a crendice do povo, a marca maior seria a do pé de Lúcifer e a menor corresponderia à pegada de Santo Antônio.

A lenda diz que aquele sítio pertencera a um homem rico e avarento. Como uma terrível praga assolasse a região, o Demônio se comprometeu a extingui-la, recebendo, em troca, o filho único do homem desalmado. No cumprimento do pacto, firmado através de um sonho, o fazendeiro levou o rapaz ao local da pedra, lá deixando-o, sob algum pretexto, na escuridão da meia-noite. Eis senão quando apareceu a visão terrífica de Satanás; porém o moço, que era devoto de Santo Antônio, com ele se apegou, e teve pernas para correr. A lenda explica que a cruz foi riscada, na pedra, como exorcismo, pelo taumaturgo, e que as marcas longitudinais foram deixadas pelos açoites da cauda em fogo do Diabo…

[In Crônicas de Cachoeiro. Rio de Janeiro: Gelsa, 1966. Reprodução autorizada pela família.]

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Levy Rocha nasceu em 14 de merco de 1916, em São Felipe, então distrito de São João do Muqui. Graduado em Farmácia, residiu em Cachoeiro de Itapemirim e no Rio de Janeiro, interessando pela história de seu Estado natal. Publicou vários livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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