Casarões do antigo porto de São Mateus. Imagem cedida por Altair Malacarne. |
Nascido às margens da lagoa do Palmito, na confluência de uma curva vadia do rio Cricaré, só mais tarde, em virtude de mudança da família para a “cidade”, puderam os meus olhos tomar contato, pela primeira vez, com a repousante beleza natural de São Mateus. Foi uma revelação, sobretudo pelo contraste dos ambientes. No Palmito, apenas duas ou três casas de pau-a-pique e telhado de tabuinhas, situadas ao lado de um renque de coqueiros, preguiçando ao sol, à beira da lagoa. Ao longe, na volta do rio, passavam canoas carregadas, vindas da serra, em busca do mercado da cidade. Vez por outra, embicavam rumo à lagoa e atracavam à frente de nossa casa para descanso dos canoeiros ou para a consulta de doentes a meu pai, único médico residente na região, em um raio de muitas léguas.
Assim, só poderia ser para mim um deslumbramento a primeira visão de São Mateus com seu casario de variadas cores a se estender por ladeiras e ruas, e gente, muita gente, a povoar aquele pequeno mundo que se agigantava aos meus olhos infantis, dando-me a impressão amedrontada de passar a residir em um mundão sem fim. E havia trapiches, canoas de todos os tipos e tamanhos, e até, maravilha das maravilhas, navios com chaminé, apitando, lá longe, na curva misteriosa do rio. Era um salto para a civilização. Morávamos na “cidade baixa”, perto do porto, num grande sobrado amarelo, de três andares, que ainda lá existe, sempre fechado e silencioso, como um cofre a guardar velhas recordações insepultas. Ali vivi os primeiros anos da minha infância. E, apesar do tempo, retenho ainda, na retina da memória, cenas e fatos que povoavam aquele sobradão amarelo, palco das minhas primeiras revelações e ousadias pelo estranho mundo das coisas e das gentes. A sala de visitas, forrado o assoalho com esteirinha japonesa, guardando como relíquias, gordos álbuns, de capa de couro e fechos dourados, contendo esmaecidas fotografias de mulheres tristes e solenes velhos barbudos. As camarinhas escuras, as alcovas fedorentas e o oratório, sempre vazio, no qual, ao passar pela porta, cheio de medo e respeito, vislumbrava, à trêmula luz de uma lamparina de azeite, santos tristonhos e sonolentos, de mãos postas, rezando. O pátio esburacado do andar térreo, sempre entulhado de coisas, com seus desvãos escuros e, no fundo, sob um alpendre podre, a fossa imunda, fervilhando de bichos e de moscas. Pelo corredor da entrada, todo de mármore, em placas pretas e brancas, eu saltava ligeiro, com um pé só, atento aos quadrados brancos que pisava (quem pisar no preto tá-tiúba!).
E o mistério do sótão, lá no alto, até onde subíamos, às vezes, por íngreme escada, para espiar o rio e travar audaciosas batalhas com terríveis inimigos: os vorazes marimbondos caboclos. Era uma aventura chegarmos até lá em cima, no sótão, quase na altura das enormes palmeiras que se enfileiravam na praça, à beira do cais. Mais tarde, foram as andanças vadias pela cidade, os escorregões pelo capim dos morros sentados sobre as palmas de coqueiro, a alegria de puxar o “rolo” d’água que vinha do córrego da Bica, a convivência com pessoas e o conhecimento de tipos populares. Cai-n’água, o trombone da banda. Firmino, o doido manso da cidade. (Firmino por que V. não casa? Porque não quero. Será porque não arranja noiva? Não arranjo noiva? Fosse eu mil, fosse eu mil!). Firmino não era assim tão louco como se pensava… E os banhos no rio, em bandos alegres e pelados, saltando do zinco do trapiche (o feito heróico!), brincando de “pique” dentro d’água, e escondendo-nos por detrás dos balsedos flutuantes, ao léu da correnteza. Quando se mergulhava a cabeça n’água, escutava-se em certos dias, o pulsar das hélices do navio que chegava, ainda distante. (Evém o vapor, evém o vapor!) E se era o Mayrink, do Lloyd, era batata, dali a pouco, ouvirmos os berros e esculachos do seu comandante, o Vaca-Brava. A volta ruidosa desses folguedos, “da camisa aberta o peito, pés descalços, braços nus”, soprando entre as mãos, num arremedo de orquestra, os pios agudos dos plangentes “caborês”.
Aquela viagem à noite, rio abaixo, para as primeiras férias na Barra. A canoa Japira, larga e enorme, como uma baleia, com toldo de palha na popa, para abrigar a criançada, e até uma cadeira de balanço, sobre o estrado do centro da embarcação, onde o chefe da família se balançava, fumando. Conforto de outras eras… A chegada, ao alvorecer, à Barra, com o popeiro a soprar, no búzio, o que hoje se pode chamar de característica musical da sua canoa! Os primeiros encontros com os barrenses, temíveis adversários da gente mateense: Barata! Pau de sebo! Barata rói o sebo! Barata é a mãe! Ao longe, apontando o céu com seu dedo branco, o Farol da Barra, e o imenso mar, desconhecido ainda, bradando a sua fúria, no tropel cavo e soturno das ondas.
Serões de família, depois das canecas de café com rosca e “ceia de garfo” para os mais velhos, brincando com as carochas que esvoaçavam à luz brilhante de vistosos lampiões belgas legítimos, dos quais me recordo com saudade, hoje, nas trevas habituais do racionamento elétrico de Vitória. Muxá, farinha de coco, beiju, moqueca de judeus, marujada, alardo, ruidosas cavalhadas dos dias festivos de São Benedito e São Brás. Baile de Congos. Saias brancas engomadas, cheias de fitas e babados, espelhinhos na cabeça, cantarias e baticuns de pandeiros, desafios e retinir de espadas, nos ruidosos duelos entre Rei Congo e Rei Bamba. Sacratário, Sacratário! Rei Senhor a que mandá-lo? Não sei por quê, sempre torci pelo Rei Congo e me entusiasmava com a sua vitória. Creio que foi pela “valentia” do seu secretário, o primeiro que vi na furiosa batalha. Era um crioulo forte e ágil, que riscava o chão com a sua espada atrevida, saltava e se agachava, ora num, ora noutro pé, sem perder o ritmo barulhento e teimoso do congo. E lançava, estufando o peito, arrogante, o seu desafio, na velha modulação africana: Gi pinica, gi viola, gi toca gi pandeiro, quero mostrar a rei Bamba, se minha rei tem dinheiro! Eu achava isto o máximo. Mestre Guilherme ainda não era nascido…
Voltei, várias vezes, a São Mateus, depois de grande. Além de uma viagem sentimental, feita por mar, a bordo do Lud, para rever a casa em ruínas da lagoa do Palmito, lá estive, em setembro de 1938, no dia da inauguração da estrada para Vitória a que Arlindo Sodré, de enxada em punho, à frente de numerosos mateenses, dera início, cansado de esperar as eternas promessas dos governos. Em abril de 1943, lá fui, “tomar a bênção à terra natal”, logo após assumir as graves responsabilidades da interventoria federal no Estado. No discurso oficial que tive de perpetrar, lembro-me de haver assinalado a falta de integração econômica do norte no organismo social do Espírito Santo. E citava números, demonstrando a baixa densidade demográfica da margem norte do rio Doce, avaliada, então, em 2,74 por km2, em confronto com os 30,14 habitantes por km2 da zona sul. E fazia uma profecia, anunciando o despertar de energias da região, tão logo fosse vencida a impetuosa barreira do rio Doce. Tive o privilégio, mais tarde, de construir e inaugurar a grande ponte, pórtico monumental de toda a vigorosa expansão atual do norte. Antes, lá voltara, em janeiro de 1945, para instalar seu primeiro serviço de abastecimento d’água, captada ainda do córrego da Bica e Malaquias, que fez arquivar, por muito tempo, o pitoresco trajeto do “rolo” pelas ruas centrais da cidade. Lá existe, ainda, como testemunho desse esforço inicial, a caixa d’água elevada, com 150.000 litros de capacidade, ali pelas cercanias da Cadeia Velha.
Mais tarde, por inúmeras vezes, visitei a terra natal. E lá estão, em sinal de meu amor ao berço, algumas realizações que a Providência me permitiu ajudar e oferecer a São Mateus, quando, imerecidamente, me colocou aos ombros os pesados encargos de governar o Estado: Fórum, Grupo Escolar, Ginásio, Casa do Lavrador, Cadeia, Hospital (eu mais Oto), Pavilhão e recinto da Exposição Pecuária, rodovia BR-5 (eu mais Régis Bittencourt), ponte sobre o rio São Mateus e várias obras menores.
Se parece muito, comparado com as realizações de outros governos, é quase nada em relação ao que sonhava ainda fazer para resgatar, em minha sensibilidade, as indeléveis e gratas recordações da infância… Muxá, farinha de coco, beiju, marujada, bailes de Congo, moqueca de judeus, Firmino, Vaca-Brava, marimbondos (o “tapa-goela” era espeto, inchava a garganta e a gente morria estuporada), caborê, banhos no rio, cavalhadas, sobradão amarelo, lampiões belgas…
Tudo isto junto vale um poema e não se paga nunca, mateense amigo, meu conterrâneo e meu irmão.
Das últimas vezes que lá estive, e não serão as derradeiras, outras preocupações e propósitos me conduziram. Mas isto é outra história, como dizia Kipling, que não vale a pena repetir, nem me seduz relembrar, sobretudo a São Mateus, robusto ancião de duzentos anos bem vividos!
[Documento encontrado entre os papéis de Jones dos Santos Neves, com data de 8 de outubro de 1964, e publicado, com o título “Reminiscências”, em Cartas selecionadas, de Jones dos Santos Neves, Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo, com apoio da Fundação Ceciliano Abel de Almeida e Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1988]
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Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)