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Renato Pacheco entrevistado por Oscar Gama Filho

VOCÊ — Ultimamente você tem se engajado num projeto cultural, literário e histórico da maior importância, principalmente, para o Espírito Santo, junto com Luiz Guilherme [Santos Neves] e, eventualmente, com a colaboração de Reinaldo [Santos Neves]. Como ocorre, em sua carreira, esse processo, verdadeiramente iluminista?

RENATO PACHECO — Eu assumi, há 50 anos, o compromisso de escrever sobre o Espírito Santo, sentindo a falta que havia aqui de escritores que procurassem fazer trabalhos de ficção mais profundos e abrangentes sobre a nossa terra. Então minha visão é só o Espírito Santo, basicamente o Espírito Santo. Desde A oferta e o altar, que foi editado pela primeira vez em janeiro de 64, eu “pintei” o Espírito Santo. Primeiro, Conceição da Barra; depois, Santa Leopoldina; depois, Vitória. E voltei ao romance histórico, com Vasco Fernandes Coutinho. Há uns dez anos atrás, Léa Brígida de Alvarenga Rosa, Luiz Guilherme e eu fizemos um livro para o Estado, para crianças, História do Espírito Santo. Infelizmente, o governo mudou e este livro não teve a penetração que deveria ter, porque era um livro para estar nas escolas, com os meninos, os alunos, com os professores e professoras, também. Talvez agora ele seja reeditado. Com isso, nós abrimos um campo e gostamos de trabalhar juntos. Tanto que, nesse período, já publicamos doze livros. Com o Reinaldo, às vezes; com Ivan Borgo, com a Léa. Os principais foram quatro para a Prefeitura de Vitória (agora, vamos lançar o quinto, Os bondes de Vitória), um para a Prefeitura de Ecoporanga, um para a Prefeitura de Anchieta, um para a Vale do Rio Doce, um para a Xerox, um para a Aracruz Celulose (Luiz não entrou, mas entraram Léa e Ivan) e um para a Garoto, que é o mais recente. Lançamos o Índice do folclore capixaba, que é uma homenagem a Mestre Guilherme Santos Neves, nosso maior folclorista, e estamos para lançar Cozinha capixaba, que faz parte de uma trilogia. Falamos da importância da culinária para a vida social de um povo. O terceiro vai ser sobre o artesanato, uma homenagem ao trabalhador, que está numa fase pré-industrial ainda. Com isso, a gente tem trabalhado muito. Fora os outros projetos em andamento. Por exemplo, tem um projeto já aprovado pelo Ministério da Cultura (infelizmente os empresários não estão apoiando), que é um projeto grande, sobre os pomeranos, baseado em fotografias antigas, e este projeto está parado. De modo que nós não paramos. Nosso objetivo é fazer trabalhos sobre nossa terra, nossa gente, nosso povo.

— Você vai adotar mesmo o termo “moqueca”, com “o”, na Culinária capixaba?

— Na Culinária, nós fizemos referência ao seu texto, que é belíssimo, sobre Ernesto Guimarães, que foi o primeiro, que eu saiba, a usar literariamente a palavra “moqueca” — e usou com “u”. Você tem razão, quanto à origem do vocábulo. Mas acontece que o vocábulo está dicionarizado. Nós vamos seguir o Aurélio, mas fazendo a ressalva de que, como o erudito Oscar Gama explicou, o vocábulo deve ser “muqueca”.

— Não é oficial não. O oficial é o Pequeno Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Mas lá você tem “Xica” com “x” e com “ch”. Bobagem. Não é nem para incluir, não. Bom, Renato, esse processo parece que até repete uma velha piada que eu e Reinaldo fizemos, olhando os manuscritos deixados por Mestre Guilherme. Nós dizíamos que para ele só interessava o Espírito Santo. Ele leu o Aurélio, os cronistas históricos. O que fazia menção ao Espírito Santo ele recolhia, o resto ele deixava pra lá. E nós dizíamos que, se houvesse uma guerra entre o Espírito Santo e o Brasil, nós ficaríamos do lado do Espírito Santo, liderando o movimento separatista. Você faria parte desse movimento?

— Evidentemente. Primeiro, porque eu sou discípulo de Mestre Guilherme. Segundo, porque estou imbuído do mesmo projeto, que é “o Espírito Santo em primeiro lugar”. O Brasil em segundo. O Brasil entra porque o Espírito Santo é Brasil. Eu tenho um romance, chamado O senhor Kurtz, morto [publicado no site Estação Capixaba], baseado em Conrad. Esse romance, inspirado um pouco em Saramago também, tira o Espírito Santo daqui e o coloca no meio do Atlântico, entre o Brasil e a África. E ele se torna uma colônia de Portugal até 1985 e esse Curtis é quem faz a independência da Santa Maria do Atlântico, capital Vitória, na ilha de Vitória. O que fica aqui, então? Fica o Golfo do Espírito Santo, que o Brasil não tem golfo e tem uma vergonha danada disso. E o que acontece? O Porto de Tubarão vai lá para Aimorés, para grande satisfação dos mineiros. E a vida do Espírito Santo passa a ser toda lá na Santa Maria do Atlântico, com todos os rios (São Mateus, Itapemirim, Jucu), mas tudo lá, no meio do Atlântico, fora do Brasil.

— Gozado, eu tenho um romance parecido também [risos]. Podemos fazer uma obra só. Ainda bem que o meu é um pouquinho diferente, mas tem essa história também. É a mesma ideia, com formas diferentes. Podemos fazer uma trilogia.

— A quatro mãos.

— A quatro mãos. A sua obra é uma obra unânime entre todos no Espírito Santo. A oferta e o altar, no entanto, foi um livro que rendeu farta polêmica. Fale um pouco sobre isso, aquela história dos cidadãos barrenses…

— O que exprime essa polêmica é a expressão de uma barrense dizendo: “É tudo verdade, Dr. Renato não tinha o direito de falar.” E aconteceu uma coisa interessante. Minha mãe gostava tanto da Barra que me disse que, se soubesse do livro antes de ele ser publicado, pediria para eu não publicar, porque ela achou também que eu feri os brios dos barrenses. Mas não é não. É aquilo mesmo. Eu tenho um poema de Bernadette Lyra, que está dentro do livro, que diz exatamente isso, que um viking (naquele tempo eu era louro, não era de cabelo branco ainda não) veio do sul para fazer com que a Barra acordasse, porque ela estava dormindo. E depois eu tenho um depoimento de Hermógenes Lima Fonseca que diz que, anos depois, a situação piorou muito. E a ideia é essa mesma: a terra é maravilhosa. A gente é que é complicada, muito criadora de picuinhas, de casinhos, coisas mínimas. O fato de eles terem queimado o livro na frente da igreja não me ofende em nada. Eu recebi também uma carta de um padre pavoniano, que veio da Itália, que dizia “o senhor não podia falar”, porque isso e aquilo… Ficam aquelas histórias. Se uma moça bota no alto-falante um disco dedicado ao padre é um fato sociológico, que pode ser relatado por qualquer escritor. E, quando o escritor escreve, ele não está se referindo à Barra, ele está se referindo à sua realidade pessoal, que ele reviu com os olhos da imaginação. Joyce mesmo dizia que a imaginação nada mais é do que recordação, um registro do que está na memória.

— É. O real é impossível. Cada um tem uma fantasia, uma visão da realidade. Mas, mutatis mutandis, aconteceu com A oferta e o altar mais ou menos o que aconteceu com O mofo no pão. Quer dizer, o livro, por causa dessa polêmica, se tornou muito vendido, se tornou um clássico e você acabou colhendo alguns louros dessa batalha não travada por você. Travada por eles, né? Você batalhou no silêncio.

— Eu fiquei completamente alheio ao problema. O problema era deles.

— Um pensamento zen, né? O silêncio é a melhor batalha, a melhor luta.

— Não ação.

— Mas tem outra faceta sua surpreendente, e é algo que eu sempre falo para Reinaldo: um dos melhores poetas brasileiros é Renato Pacheco. Você sabe que eu sou de uma franqueza até absurda nesse sentido e eu reputo a sua obra de poeta como importantíssima. Acho que você, como poeta, transcende as fronteiras do Espírito Santo, a partir dos Cantos de Fernão Ferreiro. Você se lança, cria heterônimos, parece uma espécie de possessão da poesia em você. Você já era poeta há muito tempo e, de repente, você se torna um grande poeta. Nesse momento, parece que houve um clique, uma magia, algo assim. O que houve, mutatis mutandis (estou usando mutatis mutandis de novo [risos]), foi a transformação do Machadinho em Machadão (dizem que, por causa da leitura de Ester, fase romântica para a fase realista). Acho que os futuros vão perguntar o que houve com Renato Pacheco, que, sem desabonar em nada a obra passada, de repente, se transforma em um grande poeta.
— Aconteceu o seguinte: eu, desde garoto, já fazia meus versinhos. Mas eu tinha medo, porque não sabia o que era verso e o que era poesia. Depois eu entrei na Academia Capixaba de Novos, onde havia grandes poetas, como Antenor de Carvalho, por exemplo, que se suicidou há alguns anos atrás, no hotel Sagres. Houve uma certa influência e eu produzi mais, como é o caso de Poesia entressonhada, Presente de natal para três pessoas simples… Agora, ter sido aluno de Guilherme Santos Neves e de Jorge de Lima influenciou muito. Guilherme Santos Neves na parte da pureza da língua e Jorge de Lima na parte de que a poesia é algo transcendental, ela não tem nada a ver com verso. Verso todo mundo faz. Agora, poesia, você tem que colhê-la no espaço. É o mesmo caso do nosso livro que é semelhante, ele estava no espaço aí e nós o colhemos sem nenhuma conversa prévia. Aconteceu isso. Eu sempre fiz poesia. Tem aí os montes de poesias avulsas, que foram saindo, aos pouquinhos, na Torta capixaba e em pequenas publicações. Até que ocorreu o Grupo Letra de Reinaldo Santos Neves, José Augusto Carvalho, Oscar de Almeida Gama Filho, Luiz Busatto, Miguel Marvilla e Marcos Tavares. E eu era o mais velho. E houve um efeito catalítico tremendo na empolgação daqueles jovens. Nós lançamos revista [Revista Letra, sete números publicados entre 1981 e 1986], você sabe melhor do que eu, você escreveu o manifesto, que Rubem Braga achou um pouco exagerado, um pouco exaltado, o capixabismo e tal… Então, o Grupo Letra foi o elemento que juntou as duas coisas e deu a reação química. Aí, eu recebi Fernão Ferreira. Gozado que ele era Ferreira. Depois, ele mesmo falou: “Não, eu sou ferreiro, aquele que trabalha o ferro. O primeiro artesão, que fez as armas, que fez os arados.” Ele me empolgava até de madrugada. Minha mulher, Tilda, ficava até apavorada com aquilo de eu me levantar e ir para a escrivaninha e… ele ficou pronto em três meses, quando a ideia era três anos. Foi de janeiro a março, num verão tão quente”, como diz lá o poeta. Então, isso me dá a impressão de que a poesia é possessão, intuição, está no ar e você a recebe ou não. Todas as crianças recebem. A escola capa as crianças e elas deixam de ser poetas, Os adultos podem ser poetas ou não. É muito bom ser poeta porque dá a você uma nova visão do mundo. Você vê o mundo com outros olhos e trabalha as palavras dando-lhes uma nova feição.

— Fernando Pessoa dizia que precisamos desencaixotar os sentidos e nos tornar animais humanos que a natureza produziu. Então você acha que a sua obra poética, sobre a sua obra de ficção em prosa (novelas, romances), teria esse elemento a mais, o da possessão. A gente tem um distanciamento maior da obra de ficção em prosa? É algo mais frio?

— A obra em prosa é uma obra de sociologia, romance baseado numa realidade refeita de acordo com o seu desejo, com a sua visão. Ela é mais uma obra de anotação, em que você tem um fio condutor. O caso, por exemplo, de Reino não conquistado: a última parte, Folhas ao vento, é uma parte vitoriense. É uma parte em que eu não sou personagem, mas eu vivi, com os olhos daquela personagem, que morava em Jucutuquara, com a tia, pegava o bonde para ir ao colégio, para dar seus primeiros passos, tudo isso é matéria de memória, que se torna um livro. Já na poesia é um pouco diferente. Em grande parte, aquilo vinha como explosão.

— Eu me lembro de você falar (considerações temporais) sobre a importância do tempo. Você me dizia: “Oscar, quando eu fui para Conceição da Barra, eu achei que eu ia escrever, escrever, escrever. Lá, naquele calorão, não consegui escrever nada. Eu consigo escrever bem no frio. Fui para Santa Leopoldina, escrevi, escrevi, escrevi. Tem essa relação? Você acha o frio mais instigante, o calor mais atordoante, uma espécie de droga, que incentiva a letargia?

— O caso do Fernão Ferreiro foi efeito do calor. Um calor tremendo e eu lá, escrevendo. Mas prefiro o frio. Tanto que, se pudesse, eu morava na montanha. Há pouco tempo, passei uns meses em Santa Rita do Sapucaí, aonde vou voltar no mês que vem, e lá eu escrevi dez poemas, os Poemas da montanha. Eu gosto muito de trabalhar no frio. Mas tem essa questão de que, no calor, chegou o Fernão Ferreiro, coisa curiosa. Agora, no caso de Conceição da Barra, tinha o ventinho do nordeste, tinha a puã de caranguejo no pastel, tinha a moqueca de robalo, tudo isso faz com que a pessoa pare de escrever. Só escreve quem está insatisfeito. Quem está satisfeito, no bem-bom, pára de escrever. Nós somos insatisfeitos e por isso escrevemos.

— Tenho de concordar com você. Parece mesmo que a angústia é uma mola da criação. Senão, como é que explicaríamos que nós, que temos uma vida mais ou menos atribulada, dediquemos nossos finais de semana, nossos meios de noite (se fôssemos sensatos, estaríamos dormindo) a possessões e que tais? É um processo meio estranho mesmo. Uma das coisas que a gente sabe é que o calor é muito eficaz na criação do estado de transe. É muito mais fácil colocar alguém em transe numa praia ou numa sauna (mas numa sauna é muito estranho) do que numa geladeira. Na geladeira, a pessoa entra numa fria. Será que a gente poderia dizer, como eu fiz uma vez, que “ou se escreve ou se vive”? Publiquei isso na oficina literária que eu dei em 78, a primeira oficina literária capixaba. Você acha que há essa opção?

— Eu diria que a gente escreve e vive. Porque nem tudo é escritura. A escrita, num grande escritor como Faulkner ou Joyce, ela deve ter durado, na vida deles, um ano, ou cinco anos, no máximo. Então, o que ele fez nos outros anos? Todas as suas atividades fisiológicas normais. Deu aula de inglês na Itália, foi roteirista de cinema em Hollywood, conforme o caso. A minha proposição seria: a gente escreve e a gente vive. Agora, a criação literária, para mim, sempre é um mistério. Porque 90% dos escritores brasileiros, talvez até do mundo, não estão afeitos à criação literária. Eles apenas usam desse canal, como, se eles tivessem vocação para o futebol, usariam o canal de serem bons atacantes de um time de futebol. Um canal de ascensão social, um canal de aparecer, um de vaidade, um de orgulho… E não é nada disso. A criação literária é uma atividade humana, tanto é que ela persiste desde o início, quando o homem pintava nas paredes da caverna seus boizinhos, seus mamutes. Por que existe essa criação espontânea, que tem um valor extraordinário para a própria sobrevivência da humanidade?

— Mas, de certa forma, será que cada gesto do escritor, mesmo um gesto bobo, não influencia profundamente a sensibilidade, como acontece comigo? Eu tenho dois livros inéditos, um de contos e um de poesias. Eu gosto muito de escrever. Agora, eu escrevo possuído. Eu não gosto de publicar. Eu tenho ojeriza a publicar. Publicar para mim é um problema, escrever é uma solução. Agora, cada gestozinho desses cotidianos, fúteis, desses que você menciona (se eu corro ou não na praia, se eu tomo banho ou não, se eu converso com alguém ou não), parece que tudo aquilo é uma maldição (ou uma bênção, não sei). Parece que estou num grande filme, ou num romance. Eu olho as coisas com uma beleza muito grande que chega a ofuscar meus olhos. Eu acho que esse espaço entre a criação literária é um espaço meio maldito, meio abençoado, nesse sentido. Parece que a gente não faz nada para a gente mesmo e tudo para a literatura. Você sente as coisas assim?

— Eu sinto mais como bênção. Porque é uma coisa a mais que você tem diferente dos outros. O homem busca sempre a normalidade. Embora todos os homens, ao saírem do meio natural e entrarem no meio cultural, ao saírem do dado por Deus ou pela natureza, como se quiser, e entrarem naquilo que eles próprios criaram, na cultura, se tornaram anormais dentro do mundo natural. Então, desses anormais, há um meio, que são os médios. Esses são os normais. Para lá estão os santos, que são anormais (Jesus Cristo, Buda, São Francisco de Assis). E para cá estão os que a medicina, a partir do século 18, considerou doentes. Não são doentes. São diferentes da média da normalidade. Precisam de tratamento? Precisam, se a gente quiser que eles venham para essa média estatística, que somos nós. (Acredito que nós estamos dentro da média [risos]. Qualquer tipo de arte é alguma coisa a mais que algumas pessoas têm (uma minoria) e que dá a elas uma condição que, às vezes, é até excêntrica. Está fora da normalidade que todo mundo espera. Porque o que toda gente espera, o caso das cidades do interior, o caso de Vitória há 50 anos atrás, quando comecei a escrever, o que todo mundo quer é que ninguém faça nada, que todo mundo fique no “rame-rame”, falando mal um do outro… É a vida, vamos dizer, da solidariedade orgânica, que diz: “não cria caso, não”. Eu apresentava uma série de projetos para fazer coisas na Faculdade de Filosofia e José Leão, de quem eu gostava demais (eu tenho o nome dele em ponto muito alto — não tão alto quanto mestre Guilherme Santos Neves, mas em ponto alto), levantava o dedão e dizia: “Mas não tem verba! Mas não tem verba!” Não é uma questão de verba. É uma questão de amor, de querer fazer alguma coisa. Esses são os excêntricos, os que estão fora daquele meio. Mas é uma bênção. Nunca pense nisso como uma coisa diabólica ou demoníaca. Isso é uma bênção.

— Você tem um desprendimento muito grande. É um escritor que doou as obras raras da sua biblioteca para José Augusto Carvalho, porque achava que estariam em melhores mãos. É muito desprendimento. Sua própria obra. Uma vez, num lançamento de um livro seu, Fuga de Canaã, ainda lá na Âncora, de saudosa memória, aí eu parabenizei você e me surpreendi, quando você falou: “Oscar, eu sou apenas um animador cultural. Você está muito enganado.” Eu fiquei atordoado com isso, com essa humildade, esse desprendimento. E me lembro de um outro episódio, em que um escritor capixaba, famoso pela sua língua ferina, por usar veneno em vez de tinta, tinha esculhambado com você (não vamos declinar o nome dele, naturalmente), e ficamos nós, do Grupo Letra, esculhambando com essa pessoa, por sua vez, pela malvadeza, pelos termos baixos com que havia se referido a você, sem necessidade nenhuma, porque não era algo útil para o jornal. E, estando lá, falando mal do sujeito, quem passa na rua? O tal. Enquanto nós estávamos lá, falando e decidindo (“Como é que é? Vamos lá, tirar satisfação?”) você vai na rua, se aproxima dele, dá um abraço, volta pra gente e a gente fala: “O que é isso? O sujeito falou mal de você, te ofendeu, foi cruel, e você vai lá e dá um abraço nele?” E você disse: “Olha, nada disso vale a pena, eu não quero carregar a amargura de ter um inimigo perto de mim.” Como é que se adquire isso? Essa humildade, essa capacidade de não guardar rancor, de ajudar?

— Eu era um jovem muito brigão. Inclusive, briguei com Orlando Cariello, que era amicíssimo meu. Depois, ficamos amigos de novo (estive com ele em Brasília, pouco antes de ele morrer, de uma doença estranhíssima, pega com pombos, num pombal que tinha em casa). Ele foi grande poeta, advogado do Incra, lá em Brasília. Então, nós brigamos, coisas bobas de estudante. Briguei com Jarbas Guimarães, que é meu amigo hoje… Então, de repente, me deu um estalo de que a vida não vale nada, é uma coisa muito passageira e nós somos apenas um pequeno elo dentro dessa vida. E me deu uma vontade… Primeiro (vou te responder em duas partes), a questão do agente cultural, realmente, eu me sinto assim. Acho que devo incentivar os outros. Sei que há pessoas muito mais importantes do que eu, aqui em Vitória. Estou diante de uma, Reinaldo Santos Neves é outra. São pessoas que eu valorizo demais. Como poeta, Miguel Marvilla é muito maior do que Renato Pacheco… Tudo isso são coisas que eu aprendi ao longo dos anos. O que eu posso fazer? Posso ajudar o Espírito Santo a ser um Estado mais consciente da sua própria identidade, de que ele vive, de que ele é importante no Brasil. Porque, realmente, o Espírito Santo sempre foi um irmãozinho caçula e pouco conceituado e sempre… Monteiro Lobato dizia: “No Espírito Santo, eu não tenho nenhum leitor. O Espírito Santo não tem livrarias, não está na geografia literária do Brasil.” Isso é triste. Mas ele disse isso na década de 20. Agora, não. O Espírito Santo, agora, está se afirmando. Esta é a primeira parte. A segunda é a do perdão. Eu, se alguém é inimigo meu, é vontade dele ser meu inimigo, mas eu não procuro inimizade com ninguém. De antemão, eu perdoo. Se você me fizer alguma coisa de mal, de antemão, você está perdoado. É um ponto de vista. É uma situação de vida que é difícil. Realmente, viver, como dizia lá o Guimarães Rosa, é perigoso. Viver é dificílimo. E Sartre também dizia: “O inferno são os outros.” Às vezes, eu estou em calma, em paz e criam-se problemas insolúveis, pelos outros. Comigo. Mas, de antemão, já perdoei todos os que, porventura, me fizeram algum mal. Que Deus os tenha.

— Que Deus os tenha tem duplo sentido [risos] mas… Renato, você tem estado refugiado na sua casa. É um exilado dentro dessa produção maravilhosa de obras que você tem feito, uma em cima da outra. Esse auto-exílio (não sei bem se o termo é esse, mas eu o sinto assim, um exílio dentro da sua literatura, dentro dos valores que são essenciais pra você) me parece (me corrija, se eu estiver errado. Um psicólogo, às vezes, interpreta as coisas de forma muito errônea), mas me parece que ele vem assim como uma certa decepção com o que o Drummond chamou de “crueldade e egoísmo do mundo”. (Você não tem crueldade nem egoísmo, é uma pessoa muito dada: se alguém vier aqui pedir sua camisa, você tira e dá, “toma, leva a camisa “, já está até tirando). Mas viria disso, e talvez viesse de um certo temor de que você não concluísse a sua passagem por esta vida sem esse complemento literário que te falta. Quer dizer, “estou aposentado e tenho agora, como Goethe, de dedicar o que eu tenho de vida a produzir um projeto literário”. Você tem um projeto. Seu projeto literário vem desde 47. Você não escreve “às galegas”. Como é esse auto-exílio? São essas coisas mesmo?

— Existe apenas em parte esse auto-exílio, porque eu continuo atuante no Instituto Histórico e na Academia de Letras, onde tenho dezenas de amigos. Mas não é decepção. Eu diria que é uma defesa diante das coisas que a gente vê no Brasil e no Espírito Santo. Nós temos um nível político e uma divisão de renda muito ruins no Brasil. Então, muitas vezes é preferível você se omitir. Dizem que a omissão é um erro, é um mal. Não. Você não pode resolver problemas. Você tem a sua opinião, como cidadão, mas você não vai abrir frentes que você não vai resolver de jeito nenhum. O Brasil é um país triste. Triste trópico. O pessoal não quer resolver problemas, senão os próprios. Os grandes problemas nacionais, os problemas coletivos, ficam de fora. Então, uma pessoa como eu, que deu aulas quarenta e tantos anos, que foi juiz uma vintena de anos, eu acho que é preferível ficar no meu ostracismo voluntário, no meu exílio voluntário, para que eu possa produzir alguma coisa, sem me imiscuir nessa vida social comum, de clubes, partidos e outras atividades que tomam tanto tempo da pessoa e que não levam a nada. Como dizia Tulo Hostílio Montenegro, isso é como o ônibus, que ia pra Serra de manhã e voltava de tarde e, quando chegava na ladeira, em Carapina (naquele tempo, não havia asfalto), se estivesse chovendo, a roda rodava, rodava, rodava e não saía do lugar. Há muitas coisas no Brasil assim. Nós precisamos, particularmente, cuidar disso. Por exemplo, fala-se que não há excesso de população, que a população está crescendo pouco. Mas a população dos velhos está crescendo muito. Não vou propor que matem os velhos nem que eu me mate, mas temos que estudar outras fórmulas. Alguma atividade que os velhos possam ter. Meu pai trabalhou até os 85 anos, como tradutor público. Morreu aos 93. Acho que algum tipo de atividade produtiva também os aposentados deveriam fazer. E hoje são obrigados a fazer. Os aposentados do INSS são obrigados. Problema de população. Reexaminar essa questão. Essa luta de agora contra o aborto, por exemplo, é o tipo da hipocrisia, porque dois milhões de abortos são feitos por ano no Brasil, em condições precárias. Então, temos que assumir as coisas, no caso da população e no caso da divisão da renda. O Fernando Henrique Cardoso apresentou uma vez um projeto taxando as grandes fortunas. Foi eleito presidente da República e esse projeto não deslanchou e ele era o autor do projeto. As grandes fortunas têm de ser taxadas. Não digo isso porque eu não tenho fortuna nenhuma, não. Não é inveja do rico, não. Mas o rico está numa posição privilegiada e não é justo que haja pobres num país como o nosso. Assim como também não é justo que haja países ricos, com tantos países pobres. Tem que haver um tipo de distribuição de renda, não sei como, que resolva essas situações que deixam a gente com vontade de um exílio voluntário.

— Pois é. Você foi do PSB (Partido Socialista Brasileiro), num ato de bravura, isso, inclusive, quando você foi candidato a reitor da UFES, prejudicou a sua escolha. É uma coisa que hoje todo mundo aplaude em você. Essa atitude de bravura, que a gente também vê em Hermógenes Lima Fonseca, que foi do PCB, essa atitude granjeou inimizades pra você? Ela surgiu de uma necessidade ideal de você assumir as coisas, contra tudo que se dizia? Você chegou a ser confundido com comunista? Como foi isso, Renato?

— O negócio foi o seguinte: nós éramos todos jovens e havia um mais velho, que era Nelson Abel de Almeida. Mas nós éramos jovens, Nilo Martins da Cunha, Eugênio Sette, Setembrino Pelissari, Alvino Gatti, eu também, Olegário Ramalhete… Então, nós resolvemos assumir uma posição de melhoria do Brasil. Na época, eu acreditava no socialismo. Hoje, não acredito mais. Foi em 1945, até 50. Depois, eu fiz concurso pra juiz em 57 e não podia ter mais atividade partidária. Até 50, 52, mais ou menos. Também, quando eu fui para São Paulo, em 54, já não tive mais atividade partidária. Esse grupo estava até contra as nossas próprias famílias. Eugênio Sette diz isso numa carta que me escreveu na época da reitoria. Eugênio Sette era filho do Dr. Sette, que era vice-governador, do PSD, o partido mais reacionário que existia, do qual seu pai [do entrevistador, o ex-deputado Oscar de Almeida Gama] também fazia parte [risos]. Você provavelmente era contra ele, politicamente. O que nós queríamos era algo de novo. Tão novo que não fizemos aliança com o Partido Comunista (quem fez foi o PR do senador Atílio Vivacqua) e não elegemos ninguém. Ninguém foi eleito. E Eugênio teve 600 votos contra Sergipense Pena, que foi eleito com 23 votos, graças à sobra de Hermógenes, do PCB, que elegeu com ele mais cinco vereadores. Se tivéssemos feito aliança com o Hermógenes, o eleito teria sido o Eugênio. Então, esse fenômeno foi um fenômeno que, de certa forma (estudando sociologia, antropologia, estudando partidos políticos, inclusive), me deixou com um pé atrás, com relação à política. Há poucos dias, me convidaram para ser homenageado pelo PSB. Eu falei para o rapaz, com toda sinceridade: “Eu não acredito mais na estatização. Eu não acredito mais no socialismo.” Eu diria que, agora, eu sou um neo-anarquista. Aquele que acha que quanto menos governo melhor. E o socialismo quer mais governo. Lênin fez isso contra os anarquistas da Ucrânia. Eles estavam fazendo um trabalho maravilhoso, mas ia ser contrário ao estatismo, à ditadura do proletariado, e eles foram aniquilados. Assim como os anarquistas na Espanha também. Então, hoje eu tenho uma profunda descrença em relação a todas as possibilidades políticas dentro de um país como o Brasil. A minha posição, na época, era uma posição de honestidade, de crença mesmo de que o socialismo (a esquerda democrática, como era chamada no primeiro tempo, que era um braço esquerdo da UDN), que poderia fazer alguma coisa de bom para o Brasil. E tinha à frente, no Rio, João Mangabeira, Hermes Lima, Domingos Velasco, que eram grandes nomes do nosso país, na época.

— É, já falamos sobre isso. Nós dois somos adeptos do “anarquismo construtivo”. O mesmo de Drummond, o mesmo de Gilberto Freire, de tantos outros. Você vê alguma possibilidade real de a humanidade evoluir a um ponto tão grande que a gente possa considerar a propriedade um roubo e que, se a gente tiver um quarto vago em nossa casa, a gente possa acolher uma pessoa que esteja passando na rua? Você vê a humanidade podendo chegar, algum dia (sei lá, 100, 200 anos) a um grau de fraternidade desse tipo? Você desejaria isso?

— Acho que sim, ainda chegaremos lá. Se não houver uma guerra atômica, que ainda é uma possibilidade muito triste porque existem bombas atômicas no mundo, a tecnologia vai nos levar a esse mundo pelo qual a gente anseia. Porque, você vê o caso da Intemet: a Internet está acima de todos os governos. Não há possibilidade de um governo censurar a Internet, porque a tecnologia é mais ampla do que a pequenez dos governantes. Então, essa união cibernética pode vir a ser também uma união humana. O homem pode se convencer de que a vida vale muito pouco, de que a vida é muito pouco importante, é apenas uma passagem por esse planeta, e deve ser uma passagem o mais feliz possível. Aliás, Aristóteles, os religiosos todos, os filósofos todos dizem que o homem tem de procurar a felicidade. Está nos textos de todos os religiosos e filósofos. Nós chegaremos lá.

— A felicidade está no silêncio e o silêncio fala?

— Também no silêncio. O silêncio é uma coisa que, se o homem soubesse, ele teria todo dia. Às vezes eu vou no ônibus, em meu modesto silêncio, e ouço conversas tão inúteis! Senhoras, crianças, meninos, velhos… E eu digo: “Esse pessoal está perdendo tempo de orar, de rezar, de meditar, de procurar o reino de Deus, que está dentro de vós.” Procurar o reino de Deus que está dentro de vós. E é um momento de silêncio. Silêncio se faz em qualquer lugar e é uma parte da felicidade. A felicidade é muito mais complexa, em termos de que seu corpo está funcionando bem (eu te disse antes da entrevista que o meu já tem uns achaques próprios da velhice) e que as coisas estejam… bem. Que a pessoa não tenha que enfrentar uma selva escura diariamente.

— Você tem participado de vários movimentos pioneiros e sempre de uma maneira bem construtiva. Academia Capixaba dos Novos, onde você entra; Academia Espírito-santense de Letras, da qual, durante certo tempo, você é a figura de maior atividade, de maior impulso. E entra no Instituto Histórico. Participa do Grupo Letra (do qual eu sempre dizia que você era o mais jovem e eu, o mais velho. Você acreditava e a crença salva as pessoas, enquanto eu era tão descrente que descria até da descrença.)… O caminho para o intelectual seria trabalhar em grupos ou instituições onde a palavra dele pudesse se multiplicar? A gente tem aí o Valdo Motta, com o grupo dele, o Poiésis; talvez tenhamos de novo, ainda este ano, o grupo Letra de volta, juntos e ao vivo… Essa possibilidade é melhor do que o trabalho individual, isolado?

— Isso depende muito da época, das circunstâncias. Nós temos agora um grupo informal, na livraria Logos, o grupo do João Bonino, do bispo João Bonino, que funciona muito bem culturalmente, literariamente. Tem uns dez ou doze que estão sempre ali num ritual de conversa. Isso varia muito da época, do tempo. Há épocas em que essas coisas são mais valiosas, outras, em que não há tanta necessidade. Você falou em questão de pioneirismo, eu queria lembrar que, quando ninguém editava aqui, eu editei quatro livros, nas Edições Renato Pacheco e, com pena, depois eu soube que você queria fazer uma cooperativa, que continua a ser o meu sonho. Há poucos dias falei para o Xerxes Gusmão Netto: “Xerxes, vê se você inicia isso, com Oscar Gama, nós precisamos ter uma cooperativa editora no Espírito Santo.” Lançamos até um livro por uma cooperativa editora, que foi A história popular do convento da Penha, de Guilherme Santos Neves, um livro de tamanho bolso. Acho que é um campo em que eu trabalharia em conjunto. Varia muito de época pra época, de tempo para tempo e do grupo também.

— A cooperativa é uma ideia anarquista. Eu aceito, se é uma proposta. Você aceita também? [risos] Renato, um outro elemento. Você consegue fazer uma coisa que é bastante rara no Espírito Santo, que é a união entre a cultura popular e o erudito literário. Você leva a cultura popular, os hábitos da nossa gente, até a literatura de uma forma que só tem, no Espírito Santo, à sua altura, Reinaldo Santos Neves. Como fica isso pra você? O olho do folkman ajuda o olho do erudito? Como é essa relação, essa passagem de um tom para o outro.

— Eu vejo as diversas culturas como vasos comunicantes. Então, o que está numa, permeia-se, passa para outra. E o básico é a cultura popular. Sem ela, nós não chegaríamos aonde chegamos hoje. Ela é que existia há 100 mil anos, há 10 mil anos, quando começou a revolução agrícola. Então, acho que a gente deve sempre ter uma inspiração no que o povo diz (grandes escritores seguiram isso) e tentar dar àquilo uma forma erudita. São duas culturas que se interpenetram. Agora, quanto a Reinaldo Santos Neves, que você falou, ele fez de uma maneira muito, mas muito superior a Renato Pacheco. Muito superior, porque Reinaldo é um gênio.

— E o seu projeto de vida, de agora em diante?

— O meu projeto de vida é viver em paz. Com todos. Eu tenho quatro filhos, todos moram fora de Vitória, para muita tristeza minha. Tenho sete netos, também todos fora. Quando vêm aqui em casa é uma alegria (fiz uma piscina para eles, mas não podem usar, porque estão fora). Tenho neto em Rondônia, tenho neto em Santa Rita do Sapucaí, tenho neto em Baton Rouge, na Louisiana, nos Estados Unidos… Então, meu projeto de vida é este: Paz. Paz com a minha esposa, com meus vizinhos, com meus amigos. E procurar ter um final de vida tão feliz quanto possível.. Tão feliz quanto possível.

[In revista Você, da Ufes, n. 50, de outubro de 1997.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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