Foto Gilson Soares, 2014, |
Quando deixei São Mateus, na manhã da quarta-feira, avistei pela primeira vez, nesta viagem, a turbulenta BR-101.
Não só avistei, como por ela – por sua indefectível turbulência – transitei em trecho curto: da fronteira urbana de São Mateus, até a entrada da estrada que eflui da BR e embica no sentido de Conceição da Barra.
Não que eu fosse pra Conceição da Barra, a praia da minha remota infância ecoporanguense.
A cidade praiana mais extrema do litoral norte capixaba vai continuar, por enquanto, apenas apensa – suspensa – em alguma distante parede da memória.
Na verdade ao pegar ali a estrada de Conceição, o fiz com a convicção de que logo depois escapuliria dela pra tomar o rumo da vila de Itaúnas.
É pra Itaúnas que eu estava indo e foi lá que cheguei naquela quarta-feira de início de junho, encontrando a vila entregue à sua quietude original, à sua vidinha besta, distante de férias, feriados, verões e festivais de forró.
Sim, o lugarejo silencioso a que eu chegava pedalando ao quase meio-dia daquele dia simples, era patrimônio pacífico e quase que exclusivo dos seus moradores.
Além dos itaunenses, os forasteiros que perambulavam por ali, naquele dia, éramos somente eu – com minha magrela – e um ou outro empregado da empreiteira que andava cavucando os arredores da vila.
Pois não é que a estradinha de Itaúnas – posso contar, porque vi – acomodava uma frenética movimentação de máquinas e tratores e caminhões e kombis e vans?
Aquela via dos sonhos de tantas gerações que por ali passaram – em regime de férias – para gozarem viagens fugazes por trilhas, dunas, rios, praias e noites de forrós e de namoros, aquela via, repito, que conduziu e conduz a tantos sonhos, estava sendo, então, pavimentada.
Se isso era feito para o bem ou para o mal da paz itaúnica, só o tempo dirá.
Por enquanto o que me coube fazer – pra não ficar pensando nessa ou em qualquer outra preocupação oferecida pelo progresso que chega – foi localizar logo uma hospedagem, pra depois relaxar, conversar, beber, almoçar, passear, enfim, fazer a minha pessoal viagem pelo cenário e pelo clima que Itaúnas ainda guarda e oferece em dias assim, despidos de paramentos artificiosos.
Era exatamente isso o que eu queria quando exigi do meu inexato planejamento de viagem, uma pausa sob aquele céu de sonhos.
E foi conversando e bebendo, ainda no início da minha incursão pelos meandros daquela quarta-feira da Itaúnas vazia, que, sem mais nem porquê, fui informado sobre uma vila chamada Três Corações que pela curiosa característica política e geográfica que contaram dela, muito me interessou.
(Ocorre, no entanto, compreensivo leitor, que essa vila tricordiana está ainda muito distante – a coisa de uma centena de quilômetros – de Itaúnas. Como estou desenvolvendo este relato na mesma sequência da viagem, deixemos essa conversa pra daqui a alguns quilômetros. Ou páginas, se assim você prefere).
De Itaúnas o que posso dizer é que, tanto a pé, quanto de bicicleta, desbravei a vila nua, desde o baixio das suas minudências urbanas, até o cume das dunas douradas, com direito a despejar o olhar desapressado sobre o rio escuro e silencioso; a caminhar pelas trilhas desenhadas com os pés nos interstícios da restinga alta; e com direito, ainda, a uma breve hospedagem solitária na casa desabrigada do velho Tamandaré, que se ofereceu, tácita, para ser a minha sala de leitura vespertina.
E foi ali – sob o olhar curioso e corredio de um lagarto ainda jovem que cruzava, vez ou outra, aquele terreiro arenoso – que se encerrou a caminhada heróica da Coluna Prestes.
Dali em diante ao invés do pertinaz Prestes e de sua valente, ainda que faminta e esfarrapada, Coluna, eu teria a companhia do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, e de seu pacífico e sábio – sim, sábio – escudeiro.
Explico: embora eu não tenha informado para o leitor lá no início deste relato de viagem – até para não alimentar a sua possível preocupação com aquele meu destrambelhamento inicial – eu, além dos cinquenta exemplares de Minério, levava ainda mais dois livros, cuja leitura considerei conveniente e, até, inspiradora.
O livro que acabara de ler ali naquela tarde deserta, sob o olhar fugaz do jovem e passadiço lagarto, foi Uma Epopéia Brasileira – a Coluna Prestes, de Anita Leocádia Prestes, a historiadora, filha do Cavaleiro da Esperança. Um pequeno livro (eu já tinha lido há algum tempo As Noites das Grandes Fogueiras – Uma história da Coluna Prestes, de Domingos Meireles, bem mais volumoso!) com um relato breve da Coluna, que achei apropriado pra a circunstância cigana que me aguardava.
O outro livro que levei, para oportuna releitura, foi o primeiro volume da obra-prima de Miguel de Cervantes, numa bela (volumosa e pesada!) edição da Editora Itatiaia, com tradução de Eugênio Amado e que oferece, de lambuja, uma miríade de impagáveis ilustrações de – sabe quem? – Gustave Doré.
Assim, depois de deixar os remanescentes da esfarelada – ainda que heroica e invicta – Coluna Prestes em território boliviano, abandonei a casa do Tamandaré, passeei mais um pouco pelos desertos extensos da tarde outonal, deixei um ou dois exemplares de Minério na biblioteca daquela escola – cujo nome não fiquei sabendo – ali do centro de Itaúnas e fui dormir, juntamente com as galinhas itaunenses que, enquanto eu passava, iam aos cacarejos se empoleirando pelos arborizados quintais da vila.
Sim, a noite ainda se anunciava sobre Itaúnas, quando me recolhi, como diria um velhíssimo amigo meu, aos cuidados de Morfeu, que por mim esperava no confortável – ainda que rústico – apartamento da pousadinha que me hospedou.
Mas antes que o sono confiscasse-me os sentidos, pulei sobre as ancas magricelas do Rocinante, para, de ponga, iniciar, mais uma vez, um passeio pelas geniais estradas cervantinas, agora a par e passo com a minha viagem – mais venturosa, que aventureira – pelo arco norte do meu estado.
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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Genial! Me transmite um sentimento que poucas vezes sinto quando leio algo, ao ler estas crônicas de "com a magrela na estrada". Sentimento de felicidade. Chego mesmo a invejar não ter vivido quase nada parecido com estes relatos. Parabéns Gilson!