Quem primeiro soube que Digital viu o saci foi Nanico, a quem o delegado fez a confidência que Nanico, apesar de ter jurado manter sigilo, comunicou a Pedro logo que Pedro chegou à delegacia.
“Esta é demais para a minha credibilidade,” disse Pedro. “A única pessoa no mundo que não merece ver saci é Digital. Se é verdade o que ele disse é uma desconsideração do saci para com os outros mortais, beira as raias de um deboche ou pura sacanagem de saci.”
“Mas Digital garante que viu,” confirmou Nanico, testemunha auricular do que dissera o delegado, que havia dormido na delegacia para cuidar de uns processos (imagine-se o que significou esse cuidar) e quando foi de manhãzinha…
Quando foi de manhãzinha, na clareira do dia que nascia, no lusco-fusco da noite que morria, Digital disse que ouviu uns ruídos na janela, e ainda estremunhado do sono mal dormido viu primeiro a carapuça vermelhinha do saci, depois a cara do saci com seu cachimbinho de fornilho aceso, finalmente o corpo todo do saci que apareceu do lado de fora da janela gradeada com a sua perninha preta e solteira, porque o saci ia aparecendo aos poucos de cima para baixo como um periscópio que emergisse do chão periscopiando o interior da sala onde Digital estava e na qual se levantou de um salto da poltrona velha em que tinha dormido, foi um salto de bicho assustado que espantou o saci que lá se foi pulando na sua perna de perneta, no seu pezinho pererê, pererericando em retirada, quem não fugiria da cara amarfanhada do delegado, se Digital não é uma pessoa agradável de ser ver durante o dia, quanto mais acordando na madrugada que claraboiava sem pressa, o saci que o diga.
Digital tinha contado a história a Nanico, antes de Pedro chegar para assumir seu posto de escrivão em substituição ao colega.
Era evidente que o delegado ficara visivelmente impressionado com a visão que teve quando o dia ainda estava ruminando as últimas sombras da noite, ou com a visão que Digital achou que teve porque ele próprio já começava a duvidar de que realmente tivesse visto o que disse que tinha visto, “você acredita em saci?”, foi como iniciou a conversa com Nanico, que perguntou “por quê?”, “porque hoje eu vi um.”
“Eu por mim nunca vi saci nenhum,” retrucou Nanico, “quem entende de saci aqui na delegacia é Lenilda.”
O delegado fez que não ouviu porque não ia querer que a faxineira soubesse que o chefe dela, o todo-poderoso delegado da Chapot Presvot, 272, havia acordado vislumbrando um saci que talvez só existisse em sua imaginação, apesar de ser público e notório que a imaginação de Digital é igual a zero vezes zero, ficasse o vislumbre no ponto em que estava porque o delegado resolveu recolher-se a sua casa a fim de tomar um banho morno para aliviar a cuca de cérebro curtíssimo, fazia pouco tempo que tinha se curado – ou pensava que tivesse se curado – das gira-giradas que andou dando em torno de si mesmo como o velho Monk, estaria numa recaída?
Pedro, porém, não se conformava com a história. Um saci aparece na delegacia e logo para quem, para o delegado Digital, enquanto ele, o Pedrinho como era chamado pelos amigos, xará do Pedrinho de Monteiro Lobato, nunca tinha visto um saci nem magro nem gordo, com carapuça ou de carapinha à mostra, com a perna saltadora e com seu pito de canudo comprido e fino, será que Digital não estava dopado quando pensou que viu o que não viu e criou toda aquela confusão em torno de nada, era preciso esclarecer direitinho o que tinha se passado.
“Se Lenilda entende de saci, vamos ouvir Lenilda,” sugeriu Nanico, “nada como uma palavra abalizada de quem conhece a matéria.”
Chamada que foi, Lenilda veio da copa da delegacia trazida por suas sandálias de borracha, macias e silenciosas. E consultada disse: “saci? Tem um sim aqui na delegacia, eu mesma já vi três vezes, não propriamente na delegacia, mas lá fora no quintal porque saci gosta de árvore, terreiro, ventania e liberdade.”
“E por que você nunca disse que tem saci na delegacia?” perguntou Pedro.
“Porque ninguém ia acreditar, podiam me chamar de doida varrida, eu acabava perdendo o emprego, vocês sabem como o delegado Digital é ignorante e burro, porque ser ignorante é uma coisa e ser burro é outra, mas Digital é as duas coisas juntas para mal dos nossos pecados. Mas que tem saci tem.”
“E o que eu devo fazer para ver o saci?” perguntou Pedrinho, inconformado com sua má sorte de nunca ter visto um.
“Não basta querer ver para ele aparecer. Saci é um bichinho cheio de astúcia, aparece de repente sem ninguém esperar que ele apareça, é como se fosse assombração, o delegado agora está assombrado porque viu o saci, mas o saci não é assombração de meter medo nas pessoas, ele só faz travessuras e molecagens sem maldade, não assombra quem é bom, mas como o delegado tem malvadeza no coração o saci pode até aprontar alguma pra cima dele, vamos esperar para ver o que acontece,” falou Lenilda com todo o seu entendimento da matéria.
Mas não foi o suficiente para Pedro o que Lenilda falou, o escrivão continuava enrodilhado em sua frustração de nunca ter visto um saci ao vivo, morria de inveja de Digital que foi premiado com um desejo que Pedro acalentava desde a sua infância em Ibitirama, onde tinha nascido, se havia um lugar no mundo onde o saci devia mostrar a cara, a carapuça e o corpo inteiro era em Ibitirama. Como isso nunca aconteceu, Pedro amargava essa decepção desde que leu O Sítio do Pica-pau Amarelo onde o saci foi caçado por Emília e Pedrinho num redemoinho de vento e preso numa garrafa, se o Pedrinho do Pica-pau Amarelo tinha conseguido tamanha proeza por que o Pedrinho de Ibitirama e da Chapot Presvot não podia fazer o mesmo com a ajuda de Lenilda bancando a Emília de Monteiro Lobato?
Mas Lenilda não topou a parada, “não conte comigo, seu Pedrinho, eu gosto de saci livre e não prisioneiro, não vou me aventurar nessa maldade de engarrafar saci, ainda mais aqui na delegacia, talvez até numa garrafa de plástico mal lavada, chama o delegado para te ajudar.”
“E você, Nanico, me ajuda a pegar o saci?” perguntou Pedro.
Nanico se fez de desentendido, mas diante da insistência do amigo disse que ia pensar no assunto, ia ler na Internet sobre a maneira mais apropriada de caçar saci, estudar bem os riscos que oferecia uma caçada dessas, não um risco de morte, mas risco de azar, de revertério da sorte ou algo parecido.
“Não precisa pesquisar,” disse Pedrinho, “eu sei tudo sobre saci, não tem risco nenhum, nem mistério, nem revertério, pode acreditar.”
Mesmo assim Nanico pediu tempo para estudar o caso, “macaco velho não mete a mão em cumbuca,” disse ele, “uma decisão dessas exige reflexão, muita reflexão, aguenta as pontas por um tempo, meu amigo.”
“Não adianta vocês dois estarem tramando pegar o saci,” avisou Lenilda, “eu sou capaz de jurar que depois que ele viu a cara do delegado não pisa mais na delegacia, e se pisar não vai aparecer de corpo inteiro, nem de meio corpo, vai ficar escondidinho no olho da ventania rindo seu riso de moleque sabido, o máximo que vai deixar de lembrança é uma pegadinha besta no quintal, porque saci é um pretinho filho da mãe de danado.”
“Epa, Lenilda, não fale assim do saci,” advertiu Pedro.
“Como foi que eu falei?” perguntou a faxineira.
“Falou como se o saci fosse uma criatura escorraçada, esta forma de falar do saci não é politicamente correta,” explicou Pedrinho maneiroso, “não há de faltar quem veja nesse tratamento uma demonstração de preconceito, sobretudo partindo de você que é tão branca que parece uma pomerana, lembre-se de que, além de preto o saci é um aleijadinho de uma perna só que ao invés de inspirar respeito e compaixão tem na sua deformidade um motivo de divertimento popular, pode haver humilhação maior para um menino, um excluidinho social que ainda por cima é pintado pitando um fumo violento no seu cachimbinho tupiniquim?”
“Tudo por causa do modo como eu falei?” indagou a faxineira de olho arregalado.
“Tudo, minha amiga,” confirmou Pedro. “Com palavras de pouco siso podemos, sem querer, eu, você e Nanico criarmos um caso sacissociodiscriminatório de graves conseqüências, capaz de dar até inquérito administrativo e no final das contas ainda sobrar para cima do saci que se arrisca a virar assunto proibido, banido do folclore brasileiro e da imaginação das gentes por conta do respeito que se deve ter para com as criaturas de cor, foi mais ou menos isso que aconteceu com tia Nastácia, não sei se vocês se lembram do caso que agitou os meios literários e educacionais do país”.
“Ufa, seu Pedrinho, que coisa tão complicada que o senhor está dizendo,” comentou Lenilda, “chegou a me deixar zonza da cabeça porque quando falei pretinho filho da mãe de danado, me referindo ao saci, não foi desfazendo dele, nem para ofender ou humilhar, falei com carinho e respeito, mas se o jeito como eu falei pode ser mal interpretado vamos mudar de assunto e fazer de conta que o saci nunca apareceu na delegacia, que eu nunca vi ele por aqui, que o doutor delegado teve mesmo uma ilusão das vistas porque, pensando bem, como seria possível um sacizinho aparecer logo pro dr. Digital, o senhor não acha?”
“É verdade, Lenilda,” concordou Pedrinho. “Pensando bem, nada aconteceu e tudo não passou de imaginação e conversa fiada, uma lenga-longa sem pé nem cabeça inventada por Digital que pode ir se encerrando por aqui.”
“Uma ilusão de ótica do delegado,” disse Nanico.
“Uma ilusão idiótica, digna de Digital,” corrigiu Pedrinho, mudando de assunto.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)