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“Santa Luzia passou por aqui…”

O povo, por simpatia ou temor por fanatismo, devoção ou sei lá o que, costuma atribuir a certos santos da corte celestial, poderes miraculosos que abrandam tempestades, cortam doenças, curam ou fecham o corpo, favorecem uniões e casórios, defendem a casa ou o roçado, evitam perigos, facilitam o encontro de coisas ou amores perdidos, garantem a salvação eterna, e mil outros fins possíveis e impossíveis.

A fila desses padroeiros é infinita: Santa Clara e Santa Bárbara, São Jerônimo e São Romão, São Pedro e São Paulo, São João e Santo Antônio, o Santo Anjo da Guarda, São Longuinho e Santo Onofre, São Bento e São Gonçalo, Santa Iria, São Brás e Santa Polônia, São Cosme e São Damião, São Jorge Guerreiro, São Roque, o Padre Nosso Pequenino…

Contra os males dos olhos, nossa advogada é Santa Luzia. Nossa e de muita gente, daqui e d’além mar; pelo menos os portugueses, os espanhóis e os italianos a têm na conta de protetora contra as doenças da vista. Conheço esta copla andaluza que comprova tal devoção na Espanha:

“Porqué me diste vista,
Santa Lucía,
Si no veo lo que quiero
Todos los dias?”
(Cuentos y poesias andaluces, Fernan Caballero, p. 154)

Para o povo, esta santa foi quem lhe concedeu a graça de ver, e, por conseguinte, deve zelar pelos olhos e ter sobre eles altos e desmedidos poderes. Assim como os preserva e cura, pode arrancá-los até! É o que nos afirma esta trovinha lusa, cheia de cruel egoísmo feminino:

“Lindos olhos tem Antônio —
Santa Luzia, guardai-lhos.
Se não hão de ser pra mim —
Santa Luzia, tirai-lhos!”
(Cantares do Minho, Pires de Lima, I, n° 177).

Mas não é de quadrinhas populares que aqui viso tratar, mas, desta velha e conhecida reza, que pela primeira vez ouvi dos santos lábios maternos:

Santa Luzia
passou por aqui
com o seu cavalinho comendo capim…

A devoção a Santa Luzia como “advogada da vista” é das mais antigas. Os “registros” ou estampas bem como as imagens da santa costumam apresentar, numa de suas mãos, um prato no qual se vêem dois olhos. Conhecemos desenhos de Domenico Chirlandajo (século XV) e de Francisco Pacheco, este datado de 1612.

Em ambos, lá está o prato com os dois olhos. (Cfr. “Santos como auxiliares nas enfermidades”, por G. Francesco, in Actas Giba, abril-maio 943).

A Santa Luzia há uma referência, com relação a olhos, num dos autos vicentinos. Na: “Farsa” de Inês Pereira, diz um escudeiro, falando com relação à principal personagem da peça:

“Se esta senhora é tal
como os Judeus ma gabaram,
certo os anjos a pintaram,
e nan pode ser hi al.
Diz que os olhos com que via
foram de Santa Luzia.”
(Obras, vol. V, p. 243).

Também na Feira de Anexins, de Francisco Manoel de Melo, século XVII, no trecho final da “metáfora de olhos”, se lê: “Querem vocês uma cousa? Vamos a Santa Luzia, que eu fico lhe enchamos a igreja de ofertas, e a capela de olhos” (p. 60).

Mas, voltemos à oração de Santa Luzia.

Amadeu Amaral, nas suas Tradições populares (p. 397) dá a seguinte “receita para tirar um argueiro dos olhos: fecha-se o olho são e vai-se imprimindo com o dedo indicador um movimento rotativo à pálpebra do mesmo, dizendo contemporâneamente:

Santa Luzia passou por aqui
no seu cavalinho comendo capim;
perna de banco,
nariz de cupim
(ou de funi, funil)”

Também esta, recolheu-a o autor, em Santos:

“Santa Luzia passou por aqui,
em seu cavalinho comendo capim,
Sangue de Cristo caiu nos meus olhos,
não me fez mal .”

Entre a gente simples da terra capixaba, recolhemos algumas versões da mesma oração. Uma delas, da praia de Manguinhos, diz assim:

Santa Luzia andou por aqui,
com seu cavalinho comendo capim,
Perguntei se queria vinho —
disse que não.
Perguntei se queria pão —
disse que sim.
São Lourenço
tirai o cisco dos meus olhos
com a ponta do vosso lenço.

Como se vê, na reza se intromete outro santo — S. Lourenço — que, a meu ver nada tem com a invocação, nela surgindo apenas por força de rima: “lenço — Lourenço”

Em Araçatiba, outra versão (sem São Lourenço) reza assim:

Santa Luzia passou por aqui
com seu cavalinho comendo capim.
Diz que pedra, diz que não.
Pedra de sal, água do mar,
tira este cisco
botai no cisqueiro.

Com essa mesma “pedra de sal” vamos topar outra variante do mesmo ensalmo, recolhida em Santa Leopoldina:

Santa Luzia passou por aqui
com seus cavalinhos.
Uma ponta de pau,
Uma ponta de faca,
Uma pedra de sal
Escapou de me cegar. Amém.

Na cidade da Serra corre esta versão reduzida:

Santa Luzia passou por aqui
Com seu cavalinho comendo capim
Dei-lhe pão — disse que não,
Dei-lhe vinho — disse que sim.

De Cachoeiro de Itapemirim, numa variante breve, desaparece da reza o constante “cavalinho” de Santa Luzia:

Santa Luzia passou pra lá,
passou pra cá.
Vai dizer a Santa Luzia
pra emprestar um lencinho
pra eu tirar um cisco
do meu olhinho.

Pereira da Costa registrou também uma oração para igual fim, sem o “cavalinho” da Santa (op. cit. p. 128), mas com seu sagrado lencinho:

“Corre, corre, cavaleiro
Pela porta de São Pedro,
E dizei a Santa Luzia
Que me mande o seu lencinho,
Para tirar este argueiro.”

Em Nova Venécia, ao norte do Espírito Santo, conhece-se esta versão diferente:

Santa Luzia tem três filhos:
um que cose,
um que fia,
e um que tira cisco
dos olhos da Virgem Maria.

É evidente que tal ensalmo se mesclou com outra oração — a de Santa Sofia contra queimaduras. Confronte-se com esta reza recolhida em Afonso Cláudio:

Santa Sofia
tinha três fias:
uma lavava,
outra cosia,
e a outra abrandava
o fogo que fazia.

Ainda na Serra se usa outra fórmula para tirar o cisco dos olhos, mas sem a menor interferência de Santa Luzia:

o cisco caiu nos meus olhos — doeu.
O leite da Virgem caiu — e não doeu.

Aliás, o santo leite da Virgem Maria é também referido nesta outra reza, para o mesmo fim, ou vida ao velho Leonídio Ataíde, de Camboapina, neste Estado:

O leite de Nossa Senhora me caiu nos olhos,
quando foi dar de mamar ao seu bento Filho.

Esta oração deve ser rezada três vezes, “benzendo e encruziando com o dedo sobre o olho doente”. E acrescentou o velhinho: “O leite de Nossa Senhora é misterioso. Abasta só as palavras da reza para ser misterioso. São palavras aventurosas, valiosas.”

Crê o povo, piamente, que qualquer dessas “orações”, ensalmos ou fórmulas, vale mais, muito mais do que os colírios receitados pelos médicos e vendidos por aí pelas farmácias e boticas. E tem razão, com certeza…

Aliás, um médico francês, quase chega à mesma conclusão quando confessa, focalizando “Les saints guérisseurs de Basse-Bretagne”. Disse aí o Dr. Liégard:

“Médecin. je n’oublie pas que lorsque nos remèdes se révèlent impuissants il est heureux qu’il y ait encore le recours à la religion, éternelle chanson qui, depuis des siècles, a bercé la douleur humaine…” (Apud Paul-Yves Sébillot, Le folklore de la Bretagne, p. 31)

[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

2 Comments

  • Aparecida
    13/12/2016

    Lindo. Santa Luzia abencoainos

  • lua de cinzas
    30/07/2018

    Morávamos na zona rural; distante de tudo e sem meio de locomoção. Eramos 10 irmãos sobreviventes de 13 nascidos. Gêmeos nascituros não sobreviveram e um chegou aos sete anos quando faleceu vítima de vermes… Fomos tratados com ervas e benzimento. Era o que nos deram, o que tínhamos e sabíamos.
    A nossa oração à Santa Luzia era assim: "Santa Luzia passou por aqui, com seu cavalinho comendo capim; perna de banco e nariz de funi (funil). Caiu da porta do céu nos meus olhos, nadou e saiu. Sarou!" Fazíamos a oração com os dedos nos olhos esfregando levemente. Nunca falhou!!!

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