Desastrado engano foi o que cometi com Pedro, o escrivão da Chapot Presvot, 272. E cometi por um lapsus memoriae ou por qualquer outra gritante falha psicológica que talvez nem Freud e Jung expliquem.
Equívocos da velhice?
Quem sabe lá?
Mas será que Pedro há de entender dessa forma, e por assim entender retornar às boas com o autor que narra o que vos narra? Mais do que retornar às boas com o narrador, retornar de espírito desarmado e leve às funções de escrivão a que sempre se aplicou com exemplar seriedade na delegacia de polícia da Chapot Presvot, 272?
Não tenho respostas para essas perguntas, mas apelo à musa da Literatura para que, ao fim e ao cabo, tudo se ajeite, restabelecendo-se a harmonia que não deve faltar nunca entre um autor e o seu personagem principal, no interesse do texto.
E por que se deu o terrível mal-entendido?
Tudo porque, num impulso de sinceridade que me bateu na consciência, vindo não sei de que cafundós da alma, eu resolvi revelar a Pedro que o delegado Digital, o boçalíssimo manda-chuva da delegacia da Chapot Presvot onde Pedro trabalhava, era fã de Paulinho da Viola, tanto quanto o próprio Pedro. Uma igualdade de admiração artística que repugnou a Pedro, o qual, não se conformando com ela, exigiu de mim, num ultimato de queima roupa, que a suprimisse do texto que eu havia escrito.
Sucede, para mal dos meus pecados, que ao fazer a revelação que fiz – e eis aí o meu lapso de memória – confundi miseravelmente alhos com bugalhos tomando dois Paulinhos por um só: o da Viola, “que faz com a viola o que ninguém faz”, repetindo palavras de Pedro; e Paulinho do Berimbau, que Digital considera o maior mestre-capoeira do Brasil e de quem diz que “perereca o berimbau como ninguém”.
E para que ninguém pense que estou inventando uma desculpa esfarrapada para me safar da enrascada em que eu me meti por uma distração da memória, informo aos que quiserem conferir no Google que Paulinho do Berimbau é nativo do vilarejo de Nossa Senhora do Desamparo, no sul da Bahia, onde desde menino se dedicou a tocar o instrumento que veio a consagrá-lo nacionalmente. Aduzo ainda que sua composição mais famosa começa com os versos “berimbau abriu a roda, berimbau quebrou o pau”.
Foi, portanto, a minha desastrada confusão entre os dois Paulinhos, que reciprocamente tocam e pererecam instrumentos tão diferentes um do outro, que deu no que deu: o estremecimento da ligação de Pedro comigo, ou seja, do personagem com o autor, ocasionando sua reação (muito compreensível, aliás) de abandonar as funções de escrivão da Chapot Presvot.
Da minha parte, não posso negar que no lugar de Pedro eu fizesse o mesmo. Mas também, no lugar de Pedro, se me fosse dada a explicação que agora estou dando, eu me concederia um tempo de reflexão ao som de “Foi um rio que passou em minha vida”, dedilhado por Paulinho da Viola, enquanto saboreasse uma tapioca de coco com leite condensado (como é do gosto de Pedro), para rever a decisão tomada e retornar, de coração abrandado, ao batente da Chapot Presvot, como profetizou o poeta e amigo Fernando Achiamé.
O que quero dizer, em súmula, é que, se eu fosse Pedro, aceitaria as explicações do autor da Chapot Presvot, 272, que valeriam como um pedido de desculpas, e reassumiria, já no próximo texto, a função de escrivão da delegacia, fazendo-o como se nada tivesse acontecido no quartel de Abrantes. E ainda seria capaz de retornar cantando alegremente: “berimbau abriu a roda, berimbau quebrou o pau”.
É o que eu faria, se eu fosse Pedro.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)