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Segunda parte: O século XIX

Ilustração de Azambuja Suzano incluída no livro de sua autoria A baixa de Matias, ordenança do conde dos Arcos vice-rei do Rio de Janeiro. 3. ed. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1988 (Coleção Resgate; v. 7).
Ilustração de Azambuja Suzano incluída no livro de sua autoria A baixa de Matias, ordenança do conde dos Arcos vice-rei do Rio de Janeiro

e) Pré-romantismo

Marcelino Duarte (1788-1860), além de sacerdote, político e gramático (foi, como Andrade de Figueiredo, autor de um manual de alfabetização, a Arte de ler e de escrever em pouco tempo), incursionou pela literatura, tendo escrito peças de teatro (Drama; O Cônego e Inês) e poesia (Derrota de uma viagem feita para o Rio de Janeiro no ano de 1817, incluída na coletânea Jardim poético). Oscar Gama Filho classifica Marcelino como autor pré-romântico e analisa-lhe criteriosamente a obra em seu Razão do Brasil.[ 28 ]

Do que escreveram José Gonçalves Fraga (1793-1855) e o padre João Luís Fraga Loureiro (1805-1878) restam-nos os poemas incluídos nos dois volumes da coletânea Jardim poético. A ambos considera Oscar Gama Filho seguidores menores de Marcelino Duarte: neles ressurgem “seus [de Marcelino] recursos técnicos, seu sentimentalismo, seu nacionalismo, seu patriotismo e seus lugares-comuns de falso árcade”.[ 29 ] Dentre os poemas preponderantemente bajulatórios de Gonçalves Fraga — nove deles dedicados a aniversários do imperador Pedro II — talvez se salve a “Glosa” que fez, em homenagem a Nossa Senhora da Penha, a partir de uma trova popular. Já de Fraga Loureiro, famoso em sua época como improvisador, disse Afonso Cláudio que “o padre poeta merece a especial consignação de haver sido o primeiro que interpretou no verso a vida popular do seu tempo, no que ela tinha de mais interessante para nós — as tradições, os usos e costumes locais”.[ 30 ]

Falar no Jardim poético exige referência a José Marcelino Pereira de Vasconcelos (1821-1874). Na verdade, Vasconcelos merece registro menos por seu Ensaio sobre a história e estatística da província do Espírito Santo, de 1858, do que pelos dois volumes do Jardim poético (primeira série, 1856; segunda série, 1860), coletânea a que deu o subtítulo de Coleção de poesias antigas e modernas, compostas por naturais da província do Espírito Santo. Apesar de um sem-número de imperfeições editoriais, os dois volumes do Jardim poético são inestimáveis como fonte de pesquisa das manifestações literárias no Espírito Santo oitocentista, já que preservam material que, de outra forma, certamente se teria perdido.

O único poema que se conhece de Domingos José Martins (1781-1817), um soneto escrito às vésperas de sua execução como participante na revolução pernambucana de 1817, autoriza classificá-lo como poeta pré-romântico.[ 31 ] Afonso Cláudio, em nota de rodapé, contesta informação de João Ribeiro, que dava Martins como natural da Bahia, e cita-lhe os dados biográficos constantes da Historiografia da Província do Espírito Santo. Nem uma palavra é dita sobre Martins poeta.[ 32 ] Oscar Gama Filho nega-lhe lugar entre os autores capixabas, já que, embora nascido em Itapemirim, pouco tempo residiu no Espírito Santo.[ 33 ]

f) Romantismo

Oscar Gama Filho situa o movimento romântico no Espírito Santo entre 1840 e 1900, aproximadamente. Nesse período tiveram circulação na província nada menos que 143 periódicos que, embora grande parte deles tivesse duração efêmera, exerceram grande influência em termos culturais. “O aparecimento dos jornais tornar-se-ia decisivo para a boa acolhida que teve o romantismo, graças aos folhetins que, estampados em cada número, seriam acompanhados, como as novelas de hoje, avidamente pela população. Serviriam, ademais, de púlpito para as discussões político-filosóficas e estéticas dos intelectuais da província.”[ 34 ] Dentre os principais autores românticos da província figuram:

 SUSANO, Luís da Silva Alves de. A baixa de Matias. 3. ed. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1988 (Coleção Resgate; v. 7).
 SUSANO, Luís da Silva Alves de. A baixa de Matias.

— Luís da Silva Alves de Azambuja Susano (1791-1873). Nascido no Rio de Janeiro, radicou-se em Vitória em 1811 e aqui viveu até a sua morte. Uma tradução em prosa que fez do Orlando Furioso, de Ariosto, ficou, depois de sua morte, segundo Afonso Cláudio, em poder de um de seus genros, ainda inédita;[ 35 ] segundo o Dicionário Bibliográfico de Sacramento Blake, porém, foi impressa no Rio de Janeiro, em 1833, em quatro volumes.[ 36 ] Talvez essa tradução inédita a que se refere Afonso Cláudio fosse a das Odes de Anacreonte, também atribuída a Susano. Além de grande número de trabalhos didáticos e jurídicos, Susano publicou as obras de ficção Um roubo na Pavuna (1843), O capitão Silvestre e frei Veloso ou A plantação de café no Rio de Janeiro (1847) e A baixa de Matias, ordenança do conde dos Arcos, vice-rei do Rio de Janeiro (1858), todas impressas no Rio de Janeiro. Da primeira não se tem conhecimento da existência de nenhuma cópia. A segunda constitui uma espécie de tratado sobre as vantagens da cultura do café. Já A baixa de Matias, reeditada em 1988 pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes em parceria com o Instituto Nacional do Livro, é uma novela em que as falhas de estruturação não chegam a comprometer as suas qualidades, como o clima de romance de costumes, a linguagem coloquial, as narrativas vicárias. Oscar Gama Filho faz uma análise da obra literária de Azambuja Susano em seu Razão do Brasil.[ 37 ]

— Antônio Cláudio Soído (1822-1889). Fez carreira na marinha do Brasil, tendo participado da guerra do Paraguai e chegado ao posto de chefe de esquadra. Traduziu O Corsário, de Byron, e escreveu poesia, de que se conhecem “A menina oriental” e “O batel”. Está incluído no Jardim poético de Pereira de Vasconcelos com essas três obras. Oscar Gama Filho analisa ambos os poemas de Soído em seu Razão do Brasil, aí transcrevendo o segundo deles.[ 38 ]

— Francisco Antunes de Siqueira (1832-1897). Padre e filho de padre, Siqueira foi autor de peças de teatro (D. Minhoca, impressa em 1860), poeta (Poemeto descritivo sobre a Província do Espírito Santo, de 1884) e ensaísta (Esboço histórico dos costumes do povo espírito-santense, de 1893, reeditado em 1944). Fernando Achiamé demonstrou ser Siqueira também o autor das Memórias do passado: a Vitória através de meio século, texto publicado em folhetim no jornal A Província do Espírito Santo entre 22 de março e 7 de maio de 1885, de onde extrairia parte do material que utilizou na composição do Esboço histórico. Com edição de texto, estudo e notas de Fernando Achiamé, as Memórias do passado foram editadas em livro em 1999.

— Basílio Carvalho Daemon (1834-1893). Nascido no Rio de Janeiro, Daemon radicou-se ainda jovem no Espírito Santo, residindo primeiro em Cachoeiro de Itapemirim e depois em Vitória. Em ambas as cidades exerceu com afinco o jornalismo, defendendo o ideário conservador. É autor de um romance histórico, Arcanos (1877), e de Reminiscências (1888), trabalhos que, na visão de Afonso Cláudio, “nem uma recomendação lhe trazem ao nome; o romance é um preito à memória de José de Alencar, de quem Basílio Daemon foi fervoroso admirador. […] Seu último livro [Reminiscências] é, pois, mais um testemunho do seu temperamento de jornalista dominado pelo cansaço, do que uma nota capaz de interessar a quem o folheia”.[ 39 ] A obra mais significativa de Daemon é uma história do Espírito Santo em forma de anais, Província do Espírito Santo: sua descoberta, história cronológica, sinopse e estatística (1879).

— Aristides Freire (1849-1922) e Amâncio Pereira (1862-1918) foram os principais dramaturgos românticos do Espírito Santo. Escreveram vários dramas e comédias, alguns dos quais se encontram reproduzidos no Teatro romântico capixaba, de Oscar Gama Filho. Pereira, segundo Oscar Gama Filho, “foi o primeiro dramaturgo brasileiro a escrever peças destinadas especificamente ao público infantil (Ano Novo, escrita e encenada em 1915; e Vitória de relance, escrita e encenada em 1916)”.[ 40 ] Ambos foram poetas, deixando alguma coisa publicada em jornais. Amâncio Pereira foi também autor de novelas (Beatriz ou A cruz do juramento, Jorge ou Perdição de mulher, ambas de 1896), e contos (Folhas dispersas, 1896, Humorismos, 1897). Oscar Gama Filho estuda a obra de ambos em seu livro fundamental para o entendimento das manifestações literárias no Espírito Santo nos séculos XVI-XIX.[ 41 ]

— Manuel da Silva Borges (1851-1896). Afonso Cláudio diz ter conhecido este poeta “habitando uma casinha de palha, no caminho de Jacaraípe, desprotegido, ignorado, pouco acessível ao convívio social, por um motivo que lhe abonava os sentimentos: — o pudor da indigência”.[ 41 ] Era lavrador e fazia, ocasionalmente, biscates como encarregado da correspondência em pequenas casas comerciais. Afonso Cláudio preservou, em sua História da literatura espírito-santense, dois poemas desse autor, cognominado “poeta prata” pelo uso freqüente desse substantivo em seus textos. Dele diz Oscar Gama Filho: “Borges registra fatos do cotidiano de uma maneira espontânea, singela e quase realista, destoante da alienção, da artificialidade e do exagero de seus contemporâneos. Em um deles, lamenta o desaparecimento de seu gato de estimação.”[ 43 ]

— Manuel Jorge Rodrigues (1863-1886). Poeta, publicou Fugitivas e Manhãs de estio. Segundo Oscar Gama Filho, “temas como a ironia, o amor, a morte, a sensualidade e a melancolia permeiam a obra de Manuel Jorge Rodrigues, conferindo-lhe traços de um individualismo romântico diluído, ultrapassado e sem mais razão de ser”.[ 44 ]

— Adelina Tecla Correia Lírio (c. 1863-1938). A importância de Adelina Lírio está em que, sendo mulher, foi pioneira em publicar poemas de sua autoria em jornais, o que fez a partir de 1881. Esses poemas não foram reunidos em livro, mas Adelina Lírio é objeto de estudo de Letícia Nassar Matos Mesquita.[ 45 ]

Baía de Vitória, 1910.
Baía de Vitória, 1910.

g) Parnasianismo e simbolismo

Dentre os autores espírito-santenses representativos do parnasianismo estão Virgílio Vidigal (1866-1907), autor de Cantos e prantos e Irídeas, e Ulisses Sarmento (1875-1923), autor de Clâmides, Torturas do ideal, Contemplações e Ode aos franceses. Afonso Cláudio comenta a obra de um e de outro em sua História da literatura.[ 46 ]

Dentre os simbolistas destacam-se Colatino Barroso (1873-1931) e Narciso Araújo (1877-1944), que participaram, ambos, de grupos simbolistas no Rio de Janeiro. Barroso colaborou ali nos periódicos Rosa-Cruz e Revista Contemporânea e dirigiu a revista Tebaida; publicou Anátemas (1895), contos, e Jerusa (1896), poemas em prosa.[ 47 ] Araújo colaborou também em periódicos do Rio mas ficou inédito em formato de livro até 1942. Escolhido como “príncipe dos poetas capixabas” em concurso promovido por A Tribuna em 1941, Araújo teve como prêmio a edição de seu livro, Poesias, pela José Olympio em 1942.

Neo-simbolista foi Maria Antonieta Tatagiba (1895-1928); publicou, em 1927, seu único livro, Frauta agreste, que se destaca, pelo domínio tanto da técnica como da emoção, entre os livros de poesia escritos no Espírito Santo na primeira metade do século. Mendes Fradique escreveu sobre Maria Antonieta e seu livro uma crônica em que, no estilo derramado da época, lamenta que Frauta agreste tenha passado inteiramente despercebido à crítica nacional. Diz ele:

Maria Antonieta morreu num recanto de província, longe do cartaz da livraria, longe do bracejamento dos “après-midi”, longe da intriga dos grupinhos literários; morreu para as bandas da terra simples, entre a paisagem que tão bem cantou em sua Frauta agreste, entre as cores ameníssimas das aquarelas do campo, que tão magistralmente esbateu, nos seus poemas, nas suas baladas, nos seus sonetos. E não pudera morrer em melhor sítio. Ela que fez da natureza o seu manancial de emoções estéticas; ela que teve nas coisas de seu torrão natal outros tantos motivos de arte sua; ela que sorria à luz louçã das manhãs serranas, e tanta vez chorou a melancolia das tardes chuvosas; ela que hauria no oxigênio quente dos arvoredos a fragrância de seu estro encantador; ela que viveu a poesia dos vales sertanejos e pulsou com a natureza aos mesmos latejos da mesma seiva — não poderia, morrendo, ser mais feliz do que foi, pois morreu dentro da mesma vida, entre tudo quanto na vida mais havia amado.[ 48 ]

 TATAGIBA, Maria Antonieta, 'Frauta Agreste', Rio de Janeiro: Liv. Ed. Leite Ribeiro Freitas Bastos, 1927 (capa de Raul Pederneiras).
 TATAGIBA, Maria Antonieta, Frauta Agreste. Capa de Raul Pederneiras.

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NOTAS

[ 28 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 57-69.
[ 29 ] Idem, ibidem, p. 70.
[ 30 ] Afonso Cláudio [1912], p. 125.
[ 31 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 70 n.
[ 32 ] Afonso Cláudio [1912], p. xxvii.
[ 33 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 70 n.
[ 34 ] Idem, ibidem, p. 44.
[ 35 ] Afonso Cláudio [1912], p. 140.
[ 36 ] Sacramento Blake [1970].
[ 37 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 76-83.
[ 38 ] Idem, ibidem, p. 83-8.
[ 39 ] Afonso Cláudio [1912], p. 208.
[ 40 ] Oscar Gama Filho [1990], p. 558.
[ 41 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 90-6.
[ 42 ] Afonso Cláudio [1912], p. 258.
[ 43 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 97.
[ 44 ] Idem, ibidem, p. 99.
[ 45 ] A produção literária feminina nos jornais capixabas na segunda metade do século XIX: a revelação de Adelina Lírio. Vitória: Programa de Pós-Graduação em Letras da Ufes/Academia Espírito-santense de Letras/Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1999.
[ 46 ] Afonso Cláudio [1912], p. 325-38 (Vidigal) e 339-59 (Sarmento).
[ 47 ] Idem, ibidem, p. 361-72.
[ 48 ] Mendes Fradique [1928], p. 276.

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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