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Ser ou não ser, ou um assassinato em insensato grau

8,00 da manhã

Gosto de ler o jornal antes do café da manhã. Meu tio Henrique, casado com minha tia Inês, diria desjejum, com sua apregoada formação britânica. Mas, para mim, é café da manhã mesmo: pão com manteiga, uma fatia de queijo, e café com leite. E o jornal dobrado em colunas sobre a mesa, para facilitar a leitura das próprias.

Quarta-feira, porém, isso não foi possível. Mal acabei de acertar as páginas, depois de passar a vista nas manchetes, a campainha tocou.

“Pois não…” – disse eu, abrindo a porta do apartamento.

O homem gordo e mal trajado quase não me deu tempo de observá-lo direito. Num gesto rápido, enfiou sob meus olhos uma carteirinha plastificada, cortada por uma tarja azul-e-rosa.

“Sou delegado de polícia e o senhor está preso. Vista-se e acompanhe-me até a delegacia.”

“Como é que é? Deve haver um engano,” exclamei, surpreendido.

“Engano nenhum. Ande logo,” respondeu-me, irritado.

“E posso saber do que sou acusado?”

“Assassinato!”

“O QUÊ?”

“Isso mesmo: assassinato, com todos os esses. O senhor matou o Mosca.”

“Que Mosca?”

“O Mosca Azul, meu chapa. Aliás, Mosca só existe um. Isto é…, existia…”

“Impossível,” balbuciei, mal acreditando no que ouvia.

“E por que impossível?” indagou o delegado com maus bofes. “Acha que eu estou aqui para brincadeira?”

“Impossível, doutor, porque o Mosca sou eu,” expliquei, procurando dar ênfase à afirmativa.

“O Mosca Azul?” foi a vez dele perguntar, mecanicamente.

Não me atrevi a repetir que Mosca só existia um para não enervá-lo mais ainda. Preferi ser persuasivo e criteriosamente claro:

“Sim e…não, ou seja… eu sou o Moscazul, mas tudo pegado.”

“Quer brincar comigo, meu chapa?”

Brincar naquelas circunstâncias era o que eu menos desejava.

“Olha, seu delegado, na verdade meu nome era para ser Moscatel, palavra que minha mãe leu e gostou num rótulo de vinho tinto. Acho até que era um tinto gaúcho. Mas meu pai preferiu Moscazul, que ele tirou não sei de onde…”

O delegado não deixou que eu completasse minha história de batistério. Com uma agilidade impensável em tanta gordura, sacou um par de algemas do bolso do paletó e me acorrentou os pulsos, quase arrebentando o meu Classic de ponteiros luminosos.

“Vamos,” disse, puxando-me para fora de casa. “E vai de roupão mesmo, porque me encheu o saco com tanta conversa mole.”

Ainda bem que eu estou de cueca, pensei, ao ser arrastado de chinelo.

* * *

8,30 da manhã

Oito e trinta marcava o meu relógio de pulso, quando fui arrancado pela porta de trás do camburão.

“Saia!” berrou o delegado.

Saí, claro.

A delegacia ficava numa antiga casa térrea, na Rua Chapot Presvot. Através de uma pequena varanda, com entrada em forma de arco, tinha-se acesso ao que antes servira de sala de jantar da residência. Paredes contra as quais estavam colocados bancos de madeira apresentavam marcas do roçar das muitas cabeças que nelas se apoiavam, na expectativa das demoradas autuações. Uma porta à esquerda dava para uma segunda sala, onde eram tomados os depoimentos, e outra, entreaberta, deixava ver a cozinha, na parte posterior da casa.

Uma terceira porta, obscenamente escancarada, mostrava o banheiro da delegacia, com piso de ladrilhos com rosáceas vermelhas, parecendo sangue seco, onde o que mais chamava a atenção era uma banheira de esmalte branco, com pés que imitavam patas de dragão.

Um homem de costas para a sala onde eu acabara de chegar sacudia-se ligeiramente e não custei a perceber que terminara de mijar dentro da banheira. Quando saiu para a sala, brindou-me com um riso sarcástico e disse:

“Quando for fazer o seu pipi, mije ali na vovozinha, que o vaso está entupido,” e sumiu pela porta da cozinha.

“Pedro, ó Pedro, venha tomar o depoimento deste puto que está aqui,” berrou o delegado quase no meu ouvido.

Não havia dúvida de que o puto era eu e de que o delegado chamava o escrivão do dia.

Pedro apareceu na porta, ereto e seco, com um cigarro no beiço.

“Vem cá, ó puto!” emendou ele, e lá me fui para a outra sala, atendendo ao seu chamado.

“Sente-se aí nesta cadeira, diante da Dindinha,” e apontou-me, num gesto único, a cadeira de encosto descascado e a Remington a que chamava de Dindinha.

“A banheira é vovozinha; Dindinha é a máquina de escrever… Em que antro familiar vim dar com os meus costados!” pensei, atônito.

“Nome?”

A voz de Pedro cortou meus pensamentos.

“Vamos, nome…”

Respirei fundo, tomei coragem e respondi:

“Moscazul…”

“Como disse…?”

“É, meu nome é este: Moscazul…”

O escrivão não me deixou terminar.

“Vê se me erra, ó pessoinha… Você está querendo aprontar alguma pra cima de moi?”

“Mas meu nome é este mesmo,” tentei explicar ao escrivão.

“Impossível, meu caro. Mosca Azul no máximo é apelido, ou vulgo, ou cognome. Não existe ninguém no mundo com o nome, preste bem atenção, com o nome de Mosca Azul!”

“Então, por que o senhor delegado está me acusando de ter assassinado o Mosca Azul?” lancei para o escrivão a pergunta que minha racionalidade ousou arquitetar.

“Ele o está acusando de ter matado o Mosca Azul?” inquiriu o escrivão erguendo-se da cadeira e crescendo para mim, por sobre a Remington. Depois, concluiu incrédulo: “Isso é impossível!”

“Impossível por quê, senhor escrivão?” arrisquei a pergunta, meio timidamente.

“Impossível porque Mosca Azul é um personagem de um conto meu. Meu, está entendendo! E o delegado sabe disso. Portanto, não vou admitir que meu personagem seja transformado num ser humano, numa criatura de carne e osso, ainda mais vítima de um assassinato ou autor do mesmo. Isso eu não aceito!”

“E como é que eu fico nesta história?” perguntei, começando a me fazer argumentador.

“Por quê?”

“O senhor ainda pergunta por quê?”

“É, por quê?”

“Ora, porque eu fui trazido para esta chefatura sob a absurda acusação de ter assassinado o Mosca Azul, quando o Moscazul sou eu. Moscazul da Silva e Souza, nome que minha mãe me deu, sendo ela Silva e meu pai Souza. Eu tentei esclarecer isso ao delegado, mas não adiantou. Aí, chego aqui, o senhor me afirma que Mosca Azul não existe, o que não é verdade, porque eu sou o Moscazul, embora o delegado tivesse dito que Mosca Azul foi assassinado por mim, Moscazul. Não bastasse toda esta confusão, o senhor vem me dizer que Mosca Azul é um personagem de um conto seu. Não é para perguntar como é que eu fico nesta história?”

“Calma, companheiro, vamos esclarecer direitinho esta confusão,” falou Pedro, o escrivão, dando-me a impressão de que tinha se tornado meu aliado em todo aquele imbróglio. Em seguida, berrou para a sala de espera:

“Ô Digital, que diabo de novidade é esta que você está arrumando?”

O delegado apareceu na porta.

“Como é que é?”

“Pô, o amigo aqui, trazido debaixo de vara, em roupão e de chinelo, está dizendo que se chama Moscazul, e no entanto você o acusa de ter matado ele próprio, quando você sabe muito bem que nenhum Mosca Azul pode ter sido morto porque Mosca Azul é um personagem meu, está num conto que eu estou escrevendo aqui na delegacia, já li até para você, lembra? Aquele que você disse que era maluquice de quem não tem o que fazer.”

O delegado não deu a menor importância à arenga do escrivão, limitando-se a retrucar: “Não enche o saco, Pedro… Faz o seu serviço, que eu faço o meu. Toma o depoimento do aprisionado aí, depois tira a digital dele pro arquivo. Não esqueça, a digital, que é o melhor meio de identificar um elemento.”

Dito o quê, Digital sumiu de novo na sala de onde saíra.

“Não liga pra este bosta,” disse-me Pedro, falando em tom de cumplicidade conciliatória. “Vou tirar suas digitais só pro forma. Depois, quando terminar o turno dele,” – referia-se ao bosta -, “libero você e nunca mais ninguém vai saber deste processo. Fica frio.”

“Sim, eu fico frio, mas minha folha pregressa, como fica?” indaguei a Pedro, preocupado com o meu futuro.

“Não fica, ô cara, não fica!” explodiu Pedro. “Simplesmente não haverá ficha pregressa, nem digital, nem Moscazul junto ou separado, morto ou vivo, real ou irreal, com passagem nesta delegacia. Dou sumiço em tudo, assim, ó…” Imitou um peido com a boca, enquanto sujava meus dedos na graxa da prancheta e imprimia as impressões em uma ficha. “Isso aqui é só teatro, só teatro, não se preocupe.” E arrematou, citando filosoficamente Shakespeare: “Ser e não ser, esta é a questão.”

* * *

11,00 da manhã

Chego em casa de táxi. Peço ao motorista que espere um minuto enquanto vou pegar o dinheiro para pagar a corrida. Já havia lhe explicado, quando o parei em frente à delegacia, o motivo por que estava de roupão e de chinelo. No caminho para o meu apartamento, localizado num antigo prédio da Rua Graciano Neves, contei-lhe o que me havia acontecido. “Com a polícia não se bobeia,” disse ele, com espírito solidário. “É isso mesmo,” concordei, embora sem saber onde eu tinha bobeado com a polícia.

Subi e desci correndo a escada que levava ao segundo andar do velho prédio, dispensando-me da espera do elevador com porta pantográfica. Paguei a corrida e o motorista me entregou as cópias do conto de Pedro, o escrivão, que eu havia esquecido no banco do carona. Fora uma gentileza de Pedro para comigo. “Leia, se quiser,” disse-me ele.

As cópias tinham sido tiradas no fax da delegacia que, aliás, só servia para tirar cópias porque o sistema de transmissão estava com defeito. Era preciso fazer uma licitação para consertá-lo, como me explicou Pedro, que havia se tornado meu amigo a ponto de me confidenciar as mazelas burocráticas do seu ofício.

Peguei as folhas de qualquer maneira e voltei para casa. Tivera uma manhã cansativa e inusitada, o mínimo que podia me proporcionar, para compensar as aporrinhações vividas, era um banho relaxante, na banheira do meu velho apartamento (à qual passei a chamar de vovozinha).

Imerso até as orelhas na água tépida com espuma de xampu, peguei as cópias do conto de Pedro, o escrivão, e dei início à leitura, mais por distração do que por qualquer outro motivo. O que li, porém, me fez mergulhar na banheira com papel e tudo:

“Ser e não ser, ou um assassinato em insensato grau

8,00 da manhã

Gosto de ler o jornal antes do café da manhã. Meu tio Henrique, casado com minha tia Inês, diria desjejum, com sua apregoada formação britânica. Mas, para mim,…”

[PS. Este conto, de vaguezas de fim de ano, é dedicado a Fernando Achiamé, pela contribuição da porta pantográfica.]

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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