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Folclore capixaba

Situado entre a Bahia (ao norte), o Estado do Rio (ao sul), Minas Gerais (a oeste) e o Atlântico (a leste), possui o Espírito Santo variado e opulento acervo de tradições populares.

Esses fatos folclóricos, ele os recebeu e adaptou: do contingente colonizador português; da contribuição negra que da África lhe veio; da presença nativa de seus índios; do convívio com imigrantes que se fixaram em suas terras: açorianos, italianos, alemães, poloneses; do contato com gentes dos estados limítrofes; do intercâmbio, maior ou menor, com elementos de outras regiões brasileiras.

A maior parcela do folclore capixaba tem suas raízes nas tradições de Portugal: costumes, crenças, devoções, festas, lendas, histórias, ditos, provérbios, juras, xingamentos, parlendas e adivinhas como quase todo o seu cancioneiro musicado ou não. Do que o povo português cantava, então, grande parte ainda ecoa nos dias de hoje em terras do Espírito Santo — eco ligeiramente alterado (como todos os ecos), afeiçoado à fisionomia étnica, ecológica, psicológica da gente e do ambiente capixabas. Tudo isso lembra evidentemente aspectos do folclore luso, trazido para o Espírito Santo desde o início da colonização. No teatro popular capixaba (Lapinhas, Reis-de-boi…) deve de haver algo do teatro jesuítico. As Cantigas do Divino, de Anchieta, cânticos “que os meninos e as moças cantavam pelas ruas” (conforme depôs a capixaba Catarina Afonso, no Processo Apostólico do Rio de Janeiro, em 1627), ou aquelas “cantigas pias de José”, que se cantavam à noite, como o refere Simão de Vasconcelos na Vida do venerável padre José de Anchieta — essas cantigas talvez se desgarrassem de lapinhas anchietanas que, então, em toda a parte se representavam. E é bem possível que, nos “cânticos de Reis”, que ainda hoje o povo capixaba entoa durante o ciclo do Natal, se intercalem versos daqueles pequenos dramas de Anchieta, versos de exaltação e de louvor à Virgem e ao Menino Jesus.

Os negros — como ocorre em quase todo o Brasil — deixaram vincante registro de sua permanência em terras do Espírito Santo: nos batuques, nos “tambores” (região norte), e nos jongos e caxambus (especialmente no sul, vale do Itapemirim, Cachoeiro de Itapemirim, Alegre, Guaçuí…); na cabula e outros aspectos do folclore mágico (Conceição da Barra e São Mateus); na música e no ritmo das Bandas de Congos (litoral e interior); na culinária doméstica; na fala popular; nas crendices e superstições etc.

Dos indígenas, velhas técnicas de trabalho, artesanato rústico: cerâmica utilitária, fabrico de cestas, esteiras, redes, material para caça e pesca (pios, armadilhas, fojos, jiquiás, covos, camboas, os fachos para pegar lagostas…) e, tudo o indica, o típico instrumento musical das Bandas de Congos: as casacas ou casacos, reco-reco de cabeça esculpida.

Resultante do contato com elementos imigrantes e seus descendentes, grande cópia de fatos folclóricos se fixou no Espírito Santo. Os açorianos — cuja imigração começou com a chegada de cinqüenta casais, em 1812, localizando-se, principalmente, na área onde hoje está o município de Viana —, aí deixaram hábitos, crenças, modismos de linguagem, trovas, cantigas (como a “moda” ou “balho” da Velha), romances velhos (o da Barca nova, o da Nau Catarineta, por exemplo), talvez o uso amiudado da viola e versos a ele referentes. Da colonização italiana, alemã e polonesa (municípios de Afonso Cláudio, Domingos Martins, Santa Leopoldina, Santa Teresa, Ibiraçu…) há vestígios na fala da região, na culinária, em algumas técnicas de trabalho, em vários “ritos de passagem” (nascimento, noivado, casamento, morte…), no canto e na música, nos jogos e folguedos, nos costumes epocais (Natal, Páscoa, Finados…).

Também há no folclore capixaba — não decorrente de colonização — alguma coisa do cancioneiro popular francês (rondas e jogos infantis: Passa a ponte da Linhaça; Onde está a Margarida? Eu sou pobre, pobre, pobre; Teresinha de Jesus; Vamos passear no bosque…), cuja presença no folclore menineiro talvez se deva às professoras francesas (irmãs do São Vicente de Paulo) que se instalaram no Colégio do Carmo (Vitória), a partir de 1900.

Quanto aos contatos com gentes das regiões limítrofes, releva acentuar a influência do folclore baiano, de maior presença. De fato: a região localizada ao norte do Espírito Santo, a que compreende, principalmente, os municípios de Conceição da Barra e São Mateus, além da área do vale do rio Doce, zona cacaueira — recebeu forte e perdurável influência da Bahia, sobretudo nos hábitos e costumes populares mantidos através dos tempos pela população miscigenada, onde é notória a presença do elemento negro. Dentro do chamado “folclore mágico”, essa região capixaba repete a Bahia, com o seu culto a vários “orixás” e, entre estes, invocado nos “terreiros” — Ogun (“Ogun / eu sô vaquêro de minha morada / Ogun é vaquêro das encruzilhada / Saravá é quem disse / Saravá é quem disse…”). Em algumas localidades de Conceição da Barra e São Mateus, ainda perdura o estranho ritual afro-brasileiro da Cabula, cuja presença foi verificada e pesquisada, na região, por D. João Batista Corrêa Nery, primeiro bispo do Espírito Santo, quando de sua visita pastoral em 1900, pesquisa que se encontra relatada na Carta Pastoral de D. João Nery (Campinas, São Paulo, 1901), meticuloso trabalho a que Nina Rodrigues e Arthur Ramos se referiam elogiosamente em suas obras sobre o negro brasileiro.

Ainda de procedência baiana, grande parte de sua culinária tradicional persiste nessa região norte do Estado: o vatapás, as moquecas; os muxás, a papa, a canjica, a pamonha (todas de milho verde); o arroz de forno, os beijus de coco (inclusive os beijus de “fate”), a farinha de coco, os manués, a baba-de-moça, os papos-de-anjo, a ambrosia,, os quindins, as queijadinhas (possivelmente preparadas segundo a mesma receita com que se fizeram aquelas “queijadinhas d’açúcar”, oferecidas em Ilhéus ao padre Anchieta, quando de sua visita à “aldeia de São Mateus”, em 1583 (cf. Tratado da terra e gente do Brasil, 2. ed, Fernão Cardim, São Paulo: Brasiliana, 1938, p.262-4).

De Minas Gerais, dramatizações como os Cabocleiros (“dança ou brinquedo de Caboclos”) se fixaram nos municípios de Mantenópolis e Barra de São Francisco (noroeste do Estado) e no município de Itaguaçu (centro oeste). No campo da fala popular, termos e expressões diversas, muitos deles trazidos ao povo capixaba pelos tropeiros de Minas Gerais. Convém também referir a participação ou influência mineira em certos aspectos dos jongos capixabas (referências a localidades de Minas ou aos mineiros), sabendo-se da penetração dessa “dança” em Guaçuí, por exemplo, via Minas Gerais, com o café que se deslocara do vale do Paraíba para a região sul do Estado.

Do Estado do Rio (influência da cultura canavieira), certa presença do populário fluminense, inclusive no setor lúdico (cantos e danças, como por exemplo a Mana Chica) e, particularmente, dentro do ciclo do Natal, a constância das Folias de Reis em vários municípios sulinos: Guaçuí, Mimoso do Sul, Muqui, Cachoeiro de Itapemirim, Calçado, Apiacá…

Marujada São Paulo. Foto Guilherme Santos Neves.
Marujada São Paulo. Foto Guilherme Santos Neves.

Interessante é notar que, mesmo de regiões mais distantes, especialmente do nordeste, há presença acentuada no folclore capixaba. De fato são numerosos os elementos folk de procedência nordestina, que enriquecem o patrimônio tradicional capixaba: os Reis-de-boi (réplica dos Bumbas-meu-boi), as Marujadas (de Conceição da Barra e São Mateus); a Marujada “São Paulo” (do morro dos Alagoanos, em Vitória); o Alardo — luta de cristãos e mouros — de Conceição da Barra; as “gestas” de cangaceiros (Cirino, Rio Preto, Vilela…) correntes em Conceição da Barra, no rio Doce, também em Alfredo Chaves; alguma coisa do “ciclo do gado”; romance da Vaca Formosa (Vila Velha); estórias versificadas de bichos: Glosa do tatu (Camboapina); Toada da lagartixa (Manguinhos, Serra); Cavalo de Juerana (Manguinhos, Jacaraípe, Serra); “quadras com martelo” (Conceição da Barra); Calangos vários (Nova Venécia, Acióli, Muniz Freire, Muqui…); versos de fumadores de maconha (Vitória) — tudo isso (e muito mais do que isso) se infiltrou no folclore capixaba — material caracteristicamente do nordeste — graças, principalmente, aos vários núcleos nordestinos (cearenses, alagoanos, pernambucanos, baianos…) que no Espírito Santo se estabeleceram desde muito tempo.

Tudo isso constitui o folclore no Espírito Santo.

Há, porém, dois aspectos populares que (parece) — sem correspondentes hoje em outras regiões do Brasil — representam o folclore do Espírito Santo: as Festas do Mastro e as Bandas de Congos.

Mastros de santos houve ou há em vários Estados. Grupos musicais populares, também. Mas a Festa do Mastro e as Bandas de Congos capixabas são diferentes.

Por quase todos os recantos do Espírito Santo, principalmente nas áreas que compreendem os municípios de Vitória, Cariacica, Serra, Aracruz, Fundão, Timbuí, Acióli, Ibiraçu, Alfredo Chaves, Guarapari, Colatina, São Mateus, Conceição da Barra… — se realizam as duas fases em que se divide a Festa: a cortada e a puxada do mastro.

Um mês, mais ou menos, antes da festa do Santo (São Pedro, São Sebastião, São Benedito…) procede-se à cortada do mastro. Um tronco, previamente escolhido, é abatido, esgalhado e depois arrastado por juntas de bois, enfeitados, canga e chifres, com guirlandas de flores e folhagens. À festa comparece o festeiro, os integrantes da Banda de Congos, devotos do santo e povo. Conduzindo festivamente, ao som das toadas da Banda, à casa do festeiro, aí permanecerá o tempo necessário ao seu preparo — lixamento e pintura —, até o dia da puxada. Há mastros trabalhados com arte, roliços ou facetados, pintados de uma ou de várias cores e desenhos; outros, porém, são toscos e ásperos, quase da grossura natural, menos na ponta ou “grimpa”, onde será colocada a bandeira — pintura do Santo em tela ou pano, encaixada na armação ou “guarda” de madeira. Quer o mastro quer a bandeira se renovam anualmente, competindo aos festeiros, eleitos ou espontaneamente apresentados, o encargo de prepará-los, como à barca, para a Festa, fato que constitui, geralmente, honraria das mais disputadas.

A puxada do mastro se realiza, via de regra, nas vésperas ou no dia do Santo padroeiro da localidade. Posto o mastro sobre o barco ou navio, começa a puxada. A festa é uma procissão, mas procissão diferente, sem santo nem andor, a não ser a bandeira do santo, conduzida por moças ou crianças, na frente do cortejo. A barca, armada sobre um carro de bois de duas rodas (carro de bois sem os bois), toda enfeitada de bandeirolas de papel de seda, conduz, deitado no “convés”, o mastro consagrado ao santo. Na “canga” do carro, à frente da barca ou navio, apinham-se seis, oito ou dez devotos, a cumprir promessa. Estes é que, de fato, puxam e conduzem o grande ou pequeno barco. Amarrada à “canga” se espicha uma corda de longo comprimento — 50, 100, 200 metros — a que se apega o resto imenso dos devotos: centenas de homens mulheres, velhos, moços e crianças, em grande parte penitentemente descalços, vela acesa numa das mãos, sérios, calados, contritos, a cumprirem a sua parte na festiva puxada do mastro.. Atrás e ao lado do barco, segurando-o com as mãos, outros fiéis acompanham o cortejo. Na “esteira” da embarcação, uma ou mais Bandas de Congos entoam, sem descanso, suas velhas toadas, ao som das quais dançam, durante todo o percurso, grupos de homens e mulheres. O cortejo percorre as ruas da cidade ou vila, dirigindo-se, afinal, à igreja. Retira-se, então, do barco o mastro, dança-se com ele, jogando-o ao alto e aparando-o nos braços, num entusiasmo esfuziante cortado de “vivas”. A cena final é a cravação do mastro, em frente ou ao lado da igreja. Na “grimpa”, a bandeira do santo. Fincado o mastro, os mesmos vivas, o foguetório, o bimbalhar do sino e o baticum frenético dos congos ou tambores da banda. Está finda a festa.

Não há puxada de mastro (grande festa ou pequena festa sem barca, conduzindo o mastro aos ombros dos devotos) sem Bandas de Congos. Estas são grupos de homens rudes com rude instrumental sonoro, por eles mesmos feitos de pau oco, de barricas, de taquara, de pele de cabra ou de cavalo, de folha de flandres, de ferro torcido: tambores, bombos, cuíca, chocalhos, “casacas”, ferrinhos ou “triângulos”, pandeiros. Ao som desses instrumentos, as vozes, finas e grossas, claras ou fanhosas, vozes de homem e de mulher, cantam velhas e tradicionais toadas, em que há referências a coisas e fatos da escravidão, Guerra do Paraguai, aos santos da devoção popular, às sereias do mar, ao amor e à morte. Essas toadas são em geral tristes, e concorre para fazê-las mais dolentes a maneira de cantá-las, alongando-se demasiadamente as vogais finais no fecho dos versos, que parecem, assim, lamentos e gemidos em aaaaa, em êêêêê, em ôôôôô e aaaaaii

As Bandas de Congos persistem no Espírito Santo. Delas há notícias que datam do século XIX: 1858, François Biard (Deux années au Brésil, Paris, 1862, p.197); 1860, Pedro II (Viagem de D. Pedro II ao Espírito Santo, Levy Rocha, Rio, 1960, p.97); 1880 e 1886, D. Pedro Maria de Lacerda (cadernos manuscritos);[ 1 ] Padre Antunes de Siqueira (Esboço histórico dos costumes do povo espírito-santense, Rio, 1893, p.43).

Tocador de casaca. Foto Guilherme Santos Neves.
Tocador de casaca. Foto Guilherme Santos Neves.

Do instrumental desses conjuntos típicos do folclore capixaba faz parte uma espécie de reco-reco — a casaca, casaco, cassaca, cassaco, canzaco (desenhado por Biard e por D. Pedro) — um cilindro de pau, de 50 a 70 centímetros de comprimento, escavado numa das faces em que se prega uma lasca de bambu ou taquara com talhos transversais, sobre os quais se atrita uma vareta. Na extremidade superior desse reco-reco se esculpe, na própria madeira, uma cabeça grotesca, de pescoço comprido, por onde se segura o instrumento. No lugar dos olhos põem, por vezes, tentos ou sementes de cor, ou pequenas esferas ou partículas de chumbo. Pintam-se-lhe os olhos, boca e faces, ou toda a “casaca”com tinta comum ou de frutas do matos. Algumas trazem inscrições ou letras indicativas de frases ou do nome de seu possuidor. O formato da peça ora é cilíndrico, da mesma largura em toda a extensão, ora apresenta ligeiro alargamento na parte inferior, como um leque entreaberto.

Se há festas do mastro em outros pontos do Brasil — e as há, especialmente no ciclo junino — nem uma só delas se assemelha às festas capixabas com a cortada, a puxada e a fincada do mastro, dentro do ritual profano-religioso que as distingue, com o barco, o mastro e a bandeira do santo, e com o vibrante aparato poético-musical das Bandas de Congos.

Através desta síntese do folclore no e do Espírito Santo, pode-se conhecer algo de suas origens remotas ou próximas, pode-se avaliar, talvez, a sua opulência e os traços mais vincantes de sua fisionomia: pode-se, também, sentir como ele é inteiriçamente Brasil.

Sob este aspecto, o nosso folclore é poderoso elo que (este sim!) integra a nossa terra e a nossa gente à gente e à terra de toda a imensa vastidão nacional.

(Artigo publicado em A Gazeta, Vitória-ES, de 23 de maio de 1968)

NOTA

[ 1 ] Nota da Estação Capixaba: os apontamentos do bispo D. Pedro Maria de Lacerda foram publicados integralmente em livro intitulado Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à província do Espírito Santo [Vitória: Phoenix Cultura, 2012].

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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