Alto, magro, olhos claros, andar desengonçado, cronologia na casa dos 60. Chegou na delegacia à procura de Pedro. Portava uma intimação para depor que o escrivão lhe havia remetido.
Pedro o introduziu na sala dos depoimentos, pediu que se sentasse, e se preparou para ouvi-lo, de Olivetti em punho, o que, obviamente, é força de expressão.
“Mandamos chamá-lo, seu Alfredo Pais, porque houve uma queixa contra o senhor. Foi feita por um fiscal da Prefeitura que se disse atacado de propósito por dois cachorros em sua casa. A queixa procede?”
“Absolutamente,” disse o depoente.
“Absolutamente sim ou não?” perguntou o escrivão. Desde que pusera os olhos no sujeito, não simpatizara com seu ar de inglês aposentado, acentuado pela resposta que lhe dera.
“Absolutamente sim,” disse o outro, cruzando bruscamente as pernas, os pés enfiados em nikes quarenta e quatro bico largo que quase chutaram a mesinha da Olivetti.
“Sabe que com este gesto inconseqüente (o escrivão se referia ao ataque dos cachorros e não ao chute no vazio) o senhor pode ser enquadrado em crime de agressão corporal?” pontificou Pedro como se fosse o próprio Código Penal abrindo a boca e cuspindo fogo.
“Agressão corporal praticada por dois vira-latas?” divertiu-se Alfredo Pais, para quem a ameaça parecia um despropósito.
“Se houve a intenção de agredir, como o senhor parece não negar, seus mastins foram o instrumento do delito. Entre eles, o senhor e a vítima há um evidente nexo causal na consecução do ato,” desdobrou Pedro um discurso inspirado na doutrina e na jurisprudência criminal.
O depoente desenhou nos lábios finos um risinho de quem achou empolada a explicação, deu um peteleco para tirar um cisco invisível da perna da sua calça e esclareceu: “Mas eu tenho razões de sobra para a minha defesa.”
“Pois é bom apresentá-las,” recomendou Pedro, dispondo-se a datilografá-las.
Alfredo Pais esticou o pescoço da esquerda para a direita, à moda do velho leão da Metro, petelecou outro cisquinho inexistente em sua calça, e explicou.
“É uma história aborrecida… Eu moro em Santa Lúcia e atrás da minha casa tem uma pedreira. Explicando melhor, a maior parte dessa pedreira fica no meu terreno.”
“Quer dizer que o senhor é dono de um pedaço da pedreira?” interrogou Pedro ao interrogando.
“Sou e não sou, ou melhor… era, até que a Prefeitura teve a infeliz idéia de transformá-la em reserva ecológica do município de Vitória.”
“Infeliz por quê?” aguçou-se Pedro.
“O senhor ainda pergunta?”
“Pergunto porque minha função nesta delegacia é fazer perguntas e anotar respostas,” disse o escrivão, revelando, pelo tom da voz, sua crescente antipatia em relação ao depoente.
“Infeliz, meu amigo, porque, ao ser transformada em reserva paisagística, a pedreira não pode sofrer nenhum dano e eu ainda sou obrigado a conservá-la e protegê-la, sob pena de multa e o diabo a quatro… Não é uma situação do capeta?” perguntou Alfredo Pais, externando seu aborrecimento pela força de mais um peteleco sobre a calça.
“Concordo que é uma situação incomum…” disse o escrivão.
“E sabe de outra?” voltou a se defender Alfredo Pais. “Todo ano eu tenho de reunir plantas, laudos ambientais e até fotografias da pedreira, para mostrar que continua preservada, e requerer à Prefeitura a isenção do IPTU e das taxas municipais. Se não fizer isso no prazo, meu imposto vai às nuvens porque a pedreira foi avaliada pelo município em mais de um milhão de reais. Não é de encher o saco?”
Pedro não pôde deixar de associar o drama do depoente, a quem começava a ver com olhos menos antipáticos, ao de Sísifo e sua pedra sacana.
“E foi por causa dos impostos que o senhor se desentendeu com o fiscal?” perguntou Pedro.
“Não, meu caro! Foi porque um engraçadinho qualquer, durante a Semana Santa, pintou no alto da pedreira a frase Abaixo Bush. O fiscal passou em Santa Lúcia, viu a frase que até eu aprovo porque Bush é realmente um filho da puta, e foi na minha casa me multar por eu não ter vigiado a pedra como devia. Quem agüenta um troço deste?”
“Aí o senhor soltou os cachorros em cima dele?”
“Soltei, não, isquei. E isquei depois de lhe dizer muitas e boas pela aporrinhação que a pedreira está me causando. Disse até que se ele quisesse podia carregá-la para a Prefeitura e sentar em cima dela, junto com o prefeito e toda a câmara de vereadores, que me faria um grandíssimo favor. Como apesar disso o bosta quis me convencer da importância da pedreira como patrimônio da cidade, perdi a cabeça e isquei Dick e Buck em cima dele. E quando isquei Buck ainda disse Bush. Mesmo assim o vira-lata entendeu… Tenho ou não tenho razão?”
Pedro fingiu não ouvir a pergunta, muito embora, por um brando sentimento de solidariedade, estivesse mudando sua impressão sobre o infeliz Alfredo Pais. Mas o máximo que se permitiu fazer, por conta desta solidariedade nascente, foi dar um peteleco na perna da própria calça, para informar em seguida: “O seu depoimento está tomado, faça o favor de assiná-lo.”
Alfredo Pais assinou e devolveu a caneta a Pedro. Mas, antes de se levantar, perguntou:
“O senhor acha que eu posso sofrer alguma pena?”
No embalo da solidariedade, Pedro quis tranqüilizá-lo:
“Talvez, no máximo, a de prestar serviços à comunidade.”
“É coisa complicada?”
“Geralmente é uma pena compatível com a situação das pessoas. Tem juiz que decreta o fornecimento de cestas básicas para associações de caridade… Nestes dias de Fome Zero chega a ser motivo de orgulho patriótico…”
“Neste caso, fico mais descansado…”
“A não ser que…” começou Pedro, já se arrependendo do que ia dizer.
“A não ser… o quê?”
“A não ser que a condenação seja para montar guarda na pedreira em todo fim de semana…”
Alfredo Pais levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta da sala com seu andar desengonçado, avaliando com seriedade a maldade que escapulira da boca do escrivão. Na porta, voltou-se para Pedro, balançou o pescoço da esquerda para a direita, e disse: “Do jeito que aquela pedra está grudada nas minhas costas, não duvido nada…”
O escrivão já não o achava tão britânico. Passou até a estimá-lo.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)