“Que sorte peluda a sua, Pedrinho,” disse o escrivão Nanico para o escrivão Pedro que chegava para substituí-lo na delegacia.
“Qual foi o causo?”
“Se você tivesse chegado mais cedo ia ter de levar o cacique Jurupiã até Aracruz. Levar no seu carro…”
“Que conversa é essa?” quis saber Pedro tirando um cigarro do maço e oferecendo outro a Nanico que não se fez de rogado.
“É verdade. O cacique, que em português se chama Ubiratan da Silva, apareceu aqui de bermuda, cocar na cabeça e com a cara e a barriga pintadas com listas vermelhas e negras.”
“Ele é flamenguista?” gozou Pedrinho.
“Estava em trajes de guerra, cara! Só não trouxe o arco e as flechas, mas sua disposição era belicosa, pronto para arrasar quarteirão,” informou Nanico tirando do beiço uma talisca de fumo com a unha comprida do dedo mindinho.
“E veio por quê?” quis saber Pedro.
“Por causa de uns boias-frias que ele contratou para catar o café da aldeia e os contratados fugiram com o café e com o dinheiro do pagamento”.
“Ai o cacique virou uma onça e veio se queixar na delegacia?” indagou Pedro rindo.
“Virou uma onça daquelas que havia antigamente em Aracruz, quando ali só tinha matas. Mas Jurupiã, ou Ubirtatan da Silva, tanto faz, não veio apresentar queixa nenhuma. Queixa ele já tinha apresentado no INCRA, na FUNAI, no IBAMA, na Secretaria do Cidadão e dos Direitos Humanos, na Casa Civil do Governo do Estado, na Defensoria Pública e na Assembléia Legislativa. O que ele queria era condução para voltar para a aldeia!” disse Nanico competindo com o risinho anterior de Pedro.
“E veio procurar aqui na delegacia?” estranhou Pedro que se mostrava visivelmente interessado pela narrativa de Nanico.
“É que ele trouxe um cartão do deputado Ribeirinho, para o delegado Digital…”
“Estou começando a pescar o lelelê dessa cantiga. E Digital resolveu o problema?”
“Com muita má vontade, mas resolveu. Primeiro, ele quis atender o cacique na varandinha aí na frente. Mas o cacique foi logo perguntando, como quem não quer nada: ‘Delegado não vai mandar índio entrar?’ Digital não teve outro jeito senão levá-lo até o gabinete, apertando entre os dedos o cartão de Ribeirinho.”
“Que devia queimar como brasa…” observou Pedro.
“Que devia, devia. O fato é que quando Digital soube da pretensão do cacique, mandou ver se você já tinha chegado para levá-lo a Aracruz no seu carro….”
“Aqui pra ele”, disse Pedro, arietando o dedo médio no espaço sideral da delegacia da Chapot Presvot, 272, em gesto pra lá de fálico.
“Sua sorte foi você se atrasar”, disse Nanico. “Mesmo assim, Digital insistiu para o cacique esperar. Ainda quis convencê-lo de que você é um funcionário exemplar (veja que hipócrita!), que nunca se atrasa, que não deveria demorar.”
“Por que Digital não mandou o cacique na RP da delegacia?”
“Ele bem que tentou. Mas sabe o que o espertalhão do cacique disse? Que em carro de polícia ele não entrava nem morto, porque se chegasse a Aracruz numa viatura policial iam dizer que ele tinha sido preso…” respondeu Nanico se deliciando com a cena a que assistira.
“Jurupiã disse viatura policial?” perguntou Pedro.
“Disse… Esses índios estão por dentro das coisas…”
“E eu é que ia entrar de gaiato?”
“Gaiatíssimo. Só que o cacique não quis saber de esperar o funcionário exemplar que você é (segundo ele, veja bem!) e começou a falar alto, dizendo que tinha uma reunião marcada na Prefeitura de Aracruz com uma ONG internacional para discutir a defesa da mata atlântica para os índios, um encontro que ele não podia faltar porque ia reunir os caciques das aldeias tupiniquins e guaranis contra a exploração das terras que pertencem aos índios desde que Cabral descobriu o Brasil e patati, patatá, culminando sabe com o quê, Pedrinho…?”
“Fala porque não sou entendido em índio…”
“… culminando por tirar do bolso da bermuda um celular do tamanho de uma caixa de fósforos e ligar para o deputado Ribeirinho…”
“Um celular?! ”
“Juruna não um tinha gravador? Jurupiã carrega um celular no bolso. Pegou o aparelhinho ultramoderno, ligou direto para o deputado, esculhambou com meio mundo, principalmente com Digital na cara dele, e ainda passou o celular para o delegado, depois de dizer ao deputado que esperava que ele resolvesse o caso diretamente com quem de direito…”
“E aí?”
“Bem, as abobrinhas que o deputado cuspiu para o delegado eu não ouvi. Só vi Digital se desmanchar numa sucessão de ‘claro, meu grande amigo, seus interesses junto da ONG e dos índios não serão prejudicados… vou dar toda a cobertura ao cacique, não precisa me axingalhar…’”
“Axingalhar?” indagou Pedro.
“Axingalhar,” confirmou Nanico, soltando uma gargalhada. “Era o nosso Digital em carne e poço de besteira falando no celular… Mas a história não acabou aí.”
“Teve mais?” E Pedro já estava no seu segundo cigarro e Nanico a acompanhá-lo.
“Teve. Depois de desligar o celular, Digital chamou o nosso motorista Simão e disse pra ele, na frente de Jurupiã: ‘vê se consegue outra viatura pra levar o nosso amigo até Aracruz, o mais depressa possível’. Foi quando o caldo entornou de vez porque a besta do Simão perguntou, ‘Outra viaatura? Que viaatura? Só se for no seu carro, delegado…’, e o cacique disse mais que depressa, ‘serve!”
“Como Digital saiu da enrascada?”, perguntou Pedro botando os dentes de fora ao imaginar a apertura em que Digital ficou.
“Teve que ceder o carro para Simão levar o cacique.”
“O Honda azul-turqueza?”
“Hiii, Pedro, você está por fora: o Honda já era. Digital agora está de carro novo, um utilitário Mitsubishi L 200 Diesel, de quatro portas, cinzaprateado que é um estouro de tecnologia automobilística! E quando Jurupiã se encaixou no banco do carona, com imponência de cacique em vitrine de shopping center, ainda fez o sinal de positivo para Digital, que o havia acompanhado até a saída da delegacia.”
“Jurupiã foi no Mitsu L200 de cocar na cabeça?” indagou a risível curiosidade de Pedro.
“Com as penas em pé, a cara pintada, o peito e a barriga lambuzados, recendendo a urucum como um legítimo chefe indígena. E sabe o que Digital disse?
!?
“‘Pícolas! Agora vou gastar uma nota para limpar meu carro novo com detergente.”
“Fala pra ele mandar a conta pra Ribeirinho…”
“Você quer ver minha caveira, Pedro?”
“Não, Nanico. Como Digital é capaz de seguir o seu conselho, quero ver a caveira dele diante do novo esporro que vai tomar de Ribeirinho…”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)