Pedro, o escrivão, entrou pela porta lateral da Delegacia da Praia do Canto com a mão cheia de perinho. Nos galhos mais baixos do perinheiro, localizado em frente à janela da sala do delegado, abastecera-se como nos tempos de menino.
Sentada à sua espera, a jovem levantou-se e perguntou: “Você é o escrivão?”
Pedro cuspiu na mão vazia o caroço de um dos perinhos que acabara de comer e respondeu afirmativamente.
“O Dr. Digital mandou que eu o procurasse.”
“Venha para a minha sala,” disse Pedro. “Aceita um perinho?”
A moça recusou, e Pedro colocou as frutas dentro de um copo de plástico sobre a mesa. “Um instantinho que vou lavar as mãos.”
Quando retornou, concluiu o exame da pássara pousada em sua sala. Além de morena esbelta, tinha olhos vivos e testa altiva. Nada em sua fisionomia denotava embaraço ou timidez. Os braços, que se projetavam da blusa justa e sem mangas, eram longos e roliços, combinando com as pernas, à mostra, sob a saia curta.
“Sou todo ouvidos,” ofereceu-se o escrivão com simpatia.
“Eu vim dar uma queixa contra a Farpráticas.”
“O que é isso?” perguntou Pedro.
“É a Faculdade de Artes Práticas de Curta Duração.”
“Onde fica esta faculdade?”
“No Morro do Romão, pertinho da minha casa,” respondeu a jovem.
“E você é…”
“Sou Letícia, formada pela faculdade.”
“Sim, Letícia, e a Farpráticas pertence a quem?”
“Ao pastor Zezinho e ao Waltinho Gomes, o dono da Lanternagem Automotiva, do Morro do Romão.”
“Tudo no Romão?”
“É. A faculdade funciona em cima da Lanternagem. No hall de entrada tem os retratos dos dois fundadores, com terno e gravata. Eles são donos e patronos, ao mesmo tempo.”
“E qual a razão da sua queixa?”
“É que até agora não consegui o meu diploma de conclusão de curso. Estou tentando há mais de seis meses, e nada. Começo a desconfiar que fui vítima de uma enganação.”
“Em que curso você se formou?”
“No de paneleira.”
“Paneleira?!”
“É um dos mais procurados da faculdade.”
“Quantos se formaram na sua turma?”
“Somos em quinze.”
“Quinze paneleiras?”
“Na verdade somos quatorze. O décimo quinto é o Maurinho.”
“Já vi que é um boiola…”, insinuou Pedro, esperando a confirmação de Letícia.
“Mas é uma excelente criatura e um paneleiro de mão cheia.”
“Eles são sempre grandes profissionais.”
“Você tem preconceito contra eles?”
“Em absoluto. No caso do Maurinho, acho até que ele está na profissão certa.”
“Não entendi,” disse Letícia.
“Você sabia que paneleiro em Portugal é sinônimo de boiola?”
“Nunca soube disso.”
“Mas é. Agora me diga, Letícia, que outros cursos a faculdade oferece?”
“São muitos, todos práticos. Tem o de Iniciação ao Tarô; o de Formação de Orador Evangélico; o de Artesanato de Vassoura de Piaçava… Não me lembro da relação completa, mas já criaram até o Curso de Preparação de Candidato a Big Brother.”
“Sempre de curta duração?”
“Sempre. Duram seis meses. No início, é dada a parte teórica; depois, a prática. Pelo menos no de paneleiras foi assim.”
“E quem dá esses cursos?”
“Ih, rapaz, professor é o que não falta! No de paneleiras, a parte de campo foi dada por uma ex-professora de Arquitetura da Ufes e a de iniciação teórica, por uma doutora em pedagogia, também aposentada pela Ufes.”
“Mas uma pedagoga dando aula de panela de barro?”
“Você talvez não saiba, mas essas pedagogas entendem de tudo. Eu não tenho do que reclamar das professoras. Minha birra é com a Farpráticas, que está prendendo meu diploma. Meu e o das minhas colegas. O Maurinho está tão aborrecido que disse que vai acabar tendo um filho. Ele, coitado, está cheio de idéias. Nós vamos abrir juntos uma micro-empresa para fabricar panelas e queremos pendurar os diplomas na parede. Maurinho diz que é o único meio de encarar o selo de qualidade das paneleiras de Goiabeiras.”
“Você acha que este negócio vai dar certo?”, indagou Pedro, olhando Letícia por cima dos óculos de lentes claras e redondas.
“Por que não? Já procuramos o Sebrae para nos orientar sobre o funcionamento de uma micro e estamos pensando em levantar um empréstimo no Bandes. Vou até lhe confessar uma coisa, porque sei que você não é nosso concorrente: o Maurinho está fazendo testes para fabricar panelas brancas em vez de pretas.” “Panelas brancas?!”
“Ele diz que serão panelas de barro ecológicas, porque não vamos usar o tanino do mangue na impermeabilização.”
“E torno, vocês vão usar?” indagou Pedro, que já havia lido uma pesquisa do professor Renato Pacheco sobre as paneleiras.
“Este é que é o problema. O bom seria que não precisássemos. Mas não vai dar. Por isso pensamos no empréstimo.”
“E por que não vai dar?”
“Porque o Maurinho, apesar de ótimo paneleiro, já disse que entra no negócio mas não mete a mão no barro. Ele sente gastura com aquela massa pegajosa grudando nos seus dedos.”
“E você, também sente gastura?” sondou Pedro com um travesso sorriso de través. “Meu caso é diferente. Eu sou alérgica ao barro e sou obrigada a usar luva de borracha para fazer as panelas. Tanto que minha graduação pela Farpráticas foi como paneleira júnior, em vez de sênior.”
“Quer dizer que a Farpráticas forma paneleira júnior e paneleira sênior?” espantou-se o escrivão.
“Isso mesmo. A paneleira júnior é a que emprega o torno para dar forma às panelas e a sênior a que usa apenas as mãos, o método tradicional. A Farpráticas valoriza a tradição. Maurinho, por exemplo, é paneleiro sênior.
“Tudo isso no Romão?”
“Pertinho da minha casa.”
“Em cima da Lanternagem Automotiva?”
“Com certeza.”
“E o barro que vocês vão utilizar é o do vale do Mulembá?”
“De lá mesmo.”
“Você acha que a Associação das Paneleiras vai concordar com isso? Pelo que sei, é uma associação atuante. Dobrou até a Cesan quando quis botar no Mulembá uma estação de tratamento de esgoto.”
“É atuante mesmo, mas já está tudo resolvido. O Maurinho tem um cola dele que vai conseguir o barro pra nós na base do amor. O que está faltando é o nosso diploma. Por isso vim aqui fazer a minha queixa.”
O escrivão fez uma pausa na conversa a fim de estudar uma saída para o caso de Letícia. Abriu o maço de cigarros e ofereceu-lhe um.
“Não tem ali um aviso que não pode fumar neste recinto?” perguntou a moça, estranhando o oferecimento.
“Que tem, tem,” confirmou Pedro, “mas, como você está vendo, isto aqui é uma delegacia de polícia, onde às vezes pode o que não pode. É assim que o sistema funciona. Nosso delegado, o Digital, aquele que encaminhou você para falar comigo, costuma dizer que as leis e as normas no Brasil têm inexplicações que ninguém explica. Esta proibição aí é uma delas.”
“Se é assim, quero um,” disse Letícia.
Pedro levou a chama do isqueiro até o cigarro levemente preso nos lábios finos e úmidos da jovem. No retorno do gesto, acendeu também o seu. Duas nuvens de fumaça se casaram no ar antes de se dissiparem na sala, sob a aragem que entrava pela janela.
“Bem, Letícia, você viu que até agora eu não fiz nenhum registro sobre sua queixa. E foi muito bom porque acho melhor você procurar o Procon. Seu caso é mais de consumidora prejudicada do que de polícia. Não que não se possa tentar alguma providência por aqui. Mas eu sei no que vai dar, tendo um pastor metido na história. O nosso delegado é muito chegado a um deputado estadual — o Dr. Ribeirinho — que é crente de carteirinha. Percebeu o que eu estou querendo dizer?”
“Com certeza, e fico agradecida pela sua franqueza,” disse Letícia, apagando o cigarro com força num cinzeiro em forma de panela de barro. “Mas pelo menos você podia me dar, como compensação, o perinho que me ofereceu antes?”
“O perinho, não,” corrigiu Pedro. “Todos os perinhos.”
E deu-lhe de presente o copo com as frutas.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)