Embora pareça estranho, a verdade é que muita semelhança existe entre o modo de falar criolo, gaúcho e capixaba. Vocábulos, expressões, ditos e frases feitas são correntes aqui, e lá nos longínquos pampas.
Tal o que facilmente se poderá comprovar folheando, por exemplo, o Vocábulário y refranero criollo, de Tito Saubidet (Buenos Aires, 1943) e o Vocabulário Gaúcho, de Roque Callage (Porto Alegre, 1928).
Nossa velha expressão Matar o bicho lá está registrada, à página 40, do Vocabulário y refranero criollo: “matar al bicho — beber alcool, tomar la copa”, Mata-bicho é, segundo o Vocabulário Gaúcho (pág. 87), “a cachaça servida em copo; trago, cana, caninha; quando o campeiro pede um mata-bicho já se sabe o que é: um cálice de aguardente”. Tal como aqui.
Para o mesmo ato de beber, ou matar o bicho, aqui se usa a expressão, “molhar a goela ou a garganta” — idêntica a mojar el garguero, do falar criolo (pág. 246).
Êse es otro cantar — frase feita conhecida entre: nós, com o sentido de isto é outra coisa!, também é comum nos pampas argentinos (pág. 150) com a mesma significação: “es una cosa muy diferente”.
Arranca-rabo diz-se, por aqui, do frege, do fusuê, do rolo bravo, da discussão desbocada e violenta. No sul é, da mesma forma, o bate-boca, a discussão acalorada (Vocabulário Gaúcho, página 18).
As crianças e à gente rude do Espírito Santo, temos ouvido a forma: gomitar, em vez de vomitar, lançar. Também assim se estropia o vocábulo na Argentina, segundo consta do Vocabulário y refranero criollo, página 180.
Xereta é a pessoa metidiça, intrometida, que “mete o bedelho onde não é chamada”; tal qual lá no sul (Vocabulário Gaúcho, página 40). Ao garoto pequeno, chama-se, entre nós, guri. No Rio Grande do Sul gury é a criança, o menino piásinho (Vocabulário Gaúcho, pág. 72). Também na Argentina, guri é “muchachito chico, gurisito, nene” (Vocabulário y refranero criollo, página 186).
Cutuba é velho termo nosso que, parece, vai desaparecendo do uso vivo da língua. Significa: bom, gostoso, apetitoso. Lá no sul, cutuba ou cotuba quer dizer: forte, temível, respeitado e “o mesmo que pessoa generosa, boa” (Vocabulário Gaúcho, página 49).
Velha expressão de nossa gente proverbialmente hospitaleira e prestativa é dar uma mãozinha. “Dê uma mãozinha aqui, moço!”, isto é, ajude um pouco aqui. Também no falar criolo se usa a mesma expressão: dar una mano, ou una manito (Vocabulário y refranero criollo, pág. 232).
Estar perrengue é, cá entre nós, estar doente, alquebrado, moído. No Rio Grande do Sul perrengue significa: ordinário, ruim, e se aplica ao cavalo que não presta para o serviço (Vocabulário Gaúcho, pág. 103).
Quando, cá em terras capixabas, se quer dizer que um lugar está muito escuro, usa-se a comparação escuro como breu ou escuro como boca de lobo. Esta última expressão é corrente na fala criola e com o mesmo sentido escuro como boca de lobo (Vocabulário criollo, pág. 266).
Taludo, diz-se, aqui, do sujeito grande, crescido na idade ou no tamanho. Também no Vocabulário Gaúcho está registada a palavra, com semelhança significação (pág. 125).
Olhar com o rabo de olho é olhar alguém disfarçadamente, de lado, de viés, obliquamente, como a Capitu, do Machado de Assis. Tal expressão é, igualmente, conhecida na Argentina: “Rabo de ojo — mirar de rabo de ojo. Forma de mirar disimuladamente, al sesgo, de costado” (Vocabulário y refranero criollo, pág. 321).
As nossas juras — quer dos garotos, quer dos adultos — são, muitas vezes, idênticas as formulas criadas: “Lo juro por esta luz que nos alumbra!” “Por esta cruz”, “Por el sol que nos alumbra!” (Vocabulário y refranero criollo, página 387).
Outra expressão corriqueira em terras capixabas é aquela que diz no fritar dos ovos é que eu quero ver! — isto é, no momento exato, no instante preciso, na hora H. A frase-feita é usual na Argentina. Lá está ela no Vocabulário y refranero criollo, pág, 12 “Al freir los huevos veremos”.
Negro retinto — diz-se do preto, bem preto entre nós. Ora, retinto na fala criolla, é “color muy oscuro” (Vocabulário y refranero criollo, página 342).
De um indivíduo que não se submete nem a gancho, teimoso, incapaz de se dar por vencido, diz-se que quebra mas não se dobra. Tal qual no linguajar criolo: “Se quiebra pero no se dobla” (Vocabulário y refranero criollo, página 368).
Tirar uma tora é frase-feita com o sentido de tirar uma soneca; dormitar um pouco, durante o dia; cochilar. Não tem outro sentido a expressão lá nos pampas (Vocabulário Gaúcho, página 130).
Do sujeito zangado, fulo da vida, tiririca, furioso com alguém — costuma-se dizer que esta picado. Estar picado é maneira de falar criola, com a significação de “estar ofendido” e “picarse” é “dar-se por ofendido” (Vocabulário y refranero criollo, página 155).
Quem há por aí que ignore a velha expressão pagar o pato? Pois o mesmo “pagar el pato” diz-se na Argentina, com o sentido de “cargar con responsabilidades ajenas” (Vocabulário y refranero criollo, pág. 269).
O confronto poderia prosseguir, infindável e pitoresco, pois o material é bem copioso. Basta, porém, o que acima, de ligeiro, desfilamos, para se perceber a identidade ou semelhança de palavras, ditos e fórmulas frisantemente comuns na fala criola, na fala gaúcha e na fala da nossa gente capixaba.
[Artigo publicado em Folclore, Vitória-ES, n. 18, de maio-junho de 1952]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)