Um dos mais velhos brincos infantis, conhecido de todo garoto que mora nas praias ou à beira de lagoas e rios, é o de tirar tainhas.
Consiste em atirar horizontalmente, à flor das águas, pequenas pedras em forma de discos, para que elas ricocheteiem sobre a superfície líquida.
O nome é deveras expressivo. Os rápidos e numerosos saltos da pedra tocando as águas fazem lembrar os da tainha (Mugil liza, M. brasiliensis) — de cujos saltos escreveu, espantado, Manoel Guedes Aranha, lá pelo ano de 1865: “…passando qualquer canoa de noite acendendo luz, é tal a nuvem de tainhas que a cerca, e acompanha saltando, como fazendo floreio de verem entre si aquela novidade, que do muito que se enganam no salto e caem dentro da canoa é necessário retirar dela com brevidade apagando a luz, para não meter a canoa no fundo…” (apud José Veríssimo, A pesca na Amazônia, Rio, 1895, p. 136).
Para o jogo escolhem-se as pedras bem chatas, ovais ou redondas, preparadas à mão, ou naturalmente polidas pelo embate das ondas. Tais seixos são os melhores e de mais fácil manejo. Ao lançar sua pedra, o jogador encurva o corpo quase até o chão, para que ela deslize logo, bem rente à superfície. Assim, mais fácil será a contagem das tainhas.
Geralmente não se estipula o número de jogadas. Cada concorrente as repetirá, na sua hora, várias vezes, tentando ultrapassar o maior número de tainhas já conseguido pelos seus competidores.
Em certos pontos do Estado, e aqui mesmo, em Vitória, tal brinquedo se transforma em mera verificação ou prognóstico de quantos filhos terá, mais tarde, o jogador: tantos quantas forem as tainhas que tirar…
Gustavo Barroso, em seu livro Através dos Folclores, faz interessante estudo acerca desse jogo infantil, por ele observado, certa feita, praia do Flamengo, e costumeiramente praticado “nas praias do Ceará e mesmo em lagoas, ipueiras e açudes do sertão”, onde, “se acredita (como aqui entre nós) que o jogador terá tantos filhos quantas vezes o projetil que atirou toque a flor d’água” (p. 81).
Nesse estudo, o consagrado autor de Terra de Sol, cita, com apoio em outros folcloristas, os nomes que o jogo tem em vários países: Sôpas, nas costas das Astúrias; olhos de boi, na alta Bretanha; Ducks and Drakes, nas praias inglesas. Infelizmente, não refere por que nome é o brinquedo conhecido lá no Ceará. Em compensação nos informa que é ele de remotíssima antigüidade, conforme se pode comprovar pela descrição que dele faz o escritor latino Minutius Felix:
Avistamos algumas crianças que se divertiam em apanhar uma concha polida pelo roçar e pela agitação das ondas, colocá-la entre os dedos e lançá-la à água de maneira tal que, de tempos em tempos, ela tocasse as vagas, como sobrenadando sobre elas. Era considerado vencedor do jogo aquele cuja concha tivesse alcançado mais longe e tocado a água mais vezes. |
E acrescenta Gustavo Barroso: “É o próprio Minutius Felix quem, depois dessa descrição, nos aponta, acidentalmente, maior antiguidade ainda do inocente folguedo infantil.” Conclui desta forma sua excelente descrição: Esse jogo chama-se epostracismo. “O nome que aí está é, positivamente, grego de origem, o que equivale a dizer que, antes dos romanos, já os helenos faziam ricochetear conchas ou seixos, sobre as onduladas faces do Mediterrâneo”.
Eis até onde nos pode levar o velho, prosaico e divertido folguedo infantil, — o epostracismo dos gregos e romanos, entre nós, capixabas, conhecido pelo expressivo nome de tirar tainhas…
[Artigo publicado em Folclore, Vitória-ES, n. 11-12, de março-junho de 1951]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)