Se alguém se desse ao trabalho de recolher, na colorida seara dos versos populares, o que aí se diz a respeito da cor morena, certamente o acervo coletado seria impressionante e vasto, e, através do mesmo, não seria difícil sentir que a preferência amorosa (deles e delas) é para a cor trigueira.
No Cancioneiro capixaba de trovas populares, onde reunimos mil quadrinhas do povo, em 39 delas se fala na cor morena, se exalta em predileção a essa cor feiticeira. Por vezes, o poeta justifica a sua opção, diz o porquê da sua preferência:
“Fui na horta panhá côve,
Esqueci, panhei serraia.
Eu gosto da cor morena
Que é firme e não desmaia.”
(Cancioneiro capixaba, n° 377)
“Moreno pintam á Cristo,
Morena á la Magdalena,
Moreno es el bien que adoro,
Viva la gente morena!”
(Cuentos y poesias andaluces, Fernan Caballero, p. 157)
Outras vezes, não sabe bem porque ela o encanta:
“Atirei com uma azeitona,
Nos ares virou sucena.
Não sei o que têm meus olhos
Que só ama a cor morena”.
(Cancioneiro capixaba, n° 136)
No confronto com outras cores, vale mais a cor morena:
“Vale más lo moreno
De mi morena
Que toda la blancura
De la azucena”..
(Cuentos y poesias andaluces, p. 150)
Por vezes, entre os vários matizes da cor predileta, ressalta-se a que mais agrada:
“Eu perguntei a Cupido
Qual era a morena bela —
Cupido me respondeu:
— Morena cor de canela!”
(Cancioneiro capixaba, n° 322)
Duas quadrinhas sobre os “encantos da morena”, freqüentemente ouvíamos à saudosa e querida informante. Todas as vezes que, amoravelmente, lhe chamávamos de “moreninha”, lá dizia ela, prontamente, cantarolando:
Morena, morena,
Dos olhos castanhos,
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?
Encantos tamanhos,
Nunca vi assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim…[ 21 ]
Esses versinhos, de exaltação singela à cor morena, aprendera-os quando mocinha, lá em Leça da Palmeira.
Note-se que o último verso da primeira quadra é retomado no começo da segunda, o que lembra o velho tipo medieval do leixa-pren. Aliás, segundo Leite de Vasconcelos, em Castro Verde, região alentejana de Portugal, é costume o emprego desse tipo de cantigas que lá se denominam “cantigas dobradas”, e cita o seguinte exemplo, na mesma medida — cinco sílabas ou redondilha menor — das quadrinhas de Leça da Palmeira:
“já te tenho dito
Que não vás ao poço:
Toma lá dinheiro,
Ajusta um moço.
Ajusta um moço,
Ajusta um rapaz:
Já te tenho dito
Que ao poço não vás!”
(Opúsculos, p. 1.211)
Recentemente, Fernando topes Graça, estudando A canção popular portuguesa, dá outra amostra dessas cantigas dobradas:
“Ó minha amora madura,
Diz-me quem te amadurou;
Foi o sol e a geada
E o calor que ela apanhou
E o calor que ela apanhou
Debaixo da silveirinha;
O minha amora madura,
Minha amora madurinha.”
Em Caçaroca, neste Estado, recolhemos, também, exemplo atual dessas cantigas dobradas, de sabor tão popular:
Alecrim da beira d’água,
Cresce o pé, estende a rama;
Isto é tolícia minha
Amar a quem não me ama.
Amar a quem não me ama
Não é amar, é cegueira;
Querê bem a quem me qué
Que é justiça verdadêra.
A terceira trovinha popular, ouvida à mesma saudosa fonte maternal, é a seguinte, que a Mãezinha ouviu cantar, certa vez, em sua terra natal, a um pobre diabo, o “Re-pi-piu”, figura popular em Leça da Palmeira:
De onde estou, eu bem vejo
Duas meninas iguais:
Se eu quiser dizer bem posso
Qual delas me agrada mais.[ 22 ]
Dessa quadrinha — parece que sem mais reflexos no Brasil — pudemos localizar duas versões lusitanas. Uma é a quadra n° 223 da coletânea Mil trovas, de Agostinho de Campos e Alberto d’Oliveira:
“De aqui donde estou bem vejo
Duas meninas iguais;
Se quiser dizer, bem posso
De qual delas gosto mais.”
A outra, figura no Cancioneiro de Viana do Castelo, de Afonso do Paço, (quadra n° 311), idêntica na forma, com breve alteração apenas na contração prepositiva do primeiro verso, assim redigido: “Daqui donde estou bem vejo”.
Como se nota, trata-se de três versões da mesma trova portuguesa, com ligeiríssima divergência, quase despercebida.
Com o mesmo pé-de-verso, Leite de Vasconcelos recolheu esta outra quadra, verdadeiro “poema em quatro versos” — como diz — e citada nos seus Opúsculos, página 40:
“Daqui donde estou, bem vejo
Olhos que me estão matando.
Matai-me devagarinho…
Que eu quero morrer penando!”
O mesmo pé-de-verso vamos encontrar nesta copia da Galícia, referida no Cancioneiro popular gallego, de José Pérez Ballesteros (tomo I, p. 129):
“N’aqui donde estóu ben vexo
a altura que ten o mar,
Tamén vexo os meus amores
e non lhes podo falar.”
Em breve nota a esse verso, se lê, à página 159: “N’aqui: frase notable por nueva. El colector tiene oído: d’aqui, que es la más corriente.”
NOTAS
[ 21 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[ 22 ] Idem.
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)