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Tuberculose – A musa branca

Jorge Elias Neto
Fanarás poeticamente…
Todas as tuas tosses serão líricas,
Todas as tuas hemoptises serão românticas…
[Jamil Almansur Haddad]

A fim de imaginarmos, de forma aproximadamente precisa, determinada pessoa, temos antes de mais nada de estudar a sua época, fase em que podemos até mesmo ignorá-la, para depois, a ela retornando, encontrar o maior agrado na sua contemplação. [Carta de Goethe a Karl Friedrich Zelter (1758-1832)]

“Não há exagero na afirmação de que ‘a história da tuberculose é a história da civilização.’.”Com essa citação de John B. Haweso, o escritor capixaba Tulo Hostílio Montenegro (1916-96) começa o livro Tuberculose e literatura – Notas de pesquisa, publicado em 1949 (2ª ed. ampliada, 1971).

Aos mais jovens, pode ocasionar certo estranhamento que durante bastante tempo, não só em nosso país como em todo o Mundo, a tuberculose tenha sido a doença mais fatal que, por circunstâncias que discutiremos, tomando como pilar central a obra de Tulo Hostílio, tenha inspirado a produção de poetas e escritores. Apenas como exemplo, listamos alguns dos principais autores da literatura universal que foram acometidas por essa doença: Milton, Pope, Walt Whitman, Goethe, Descartes, Locke, Kant, Spinoza, Jane Austen, Balzac, Rousseau, Emerson, Novalis, Tchekov, Gorki, Dostoievsky, Schiller, Shelley, Cícero, Poe, Leopardi, Becquer, Musset e Camus.

Nascido em Vitória, Tulo Hostílio foi estatístico, primeiro no IBGE, depois na Organização dos Estados Americanos, em Washington, onde se radicou com a família. Foi membro de várias instituições científicas americanas (como a American Academy of Political and Social Science) e mereceu obituário no jornal Washington Post. Seu livro dedicado à Dama Branca (a tuberculose) foi acolhido com entusiasmo pela crítica brasileira. Dela disse Sérgio Milliet em O Estado de São Paulo: “Nossa literatura crítica carece de obras do gênero da que escreveu Montenegro. Elas ajudam a compreender melhor a criação artística.” E Érico Veríssimo, em carta ao autor: “Li com grande prazer o seu livro. […]. Muito obrigado em nome dos tuberculosos dos meus romances!” A reedição de 1971 inclui dez páginas de “Apreciações críticas”.

À parte o esmero técnico e o significado literário e artístico da obra, Tulo parte de uma assombrosa revisão bibliográfica (522 referências) e da coleta de um número impressionante de artistas, 713 deles portadores de tuberculose. Mas o que chama  a atenção é o conteúdo humano que aflora de suas páginas. A dedicatória do livro – “À memória de minha mãe, meu pai e Nilo –, também tuberculosos”, Carlos Burlamaqui considera “a mais honesta, franciscana e bela dedicatória de que a literatura brasileira pode orgulhar-se”.

O livro está dividido em três partes: a trajetória da tuberculose desde a pré-história; a “Tuberculose na primeira pessoa do singular”, examinando poetas (por escolas literárias) e prosadores; e a “Tuberculose transferida”, abordando “a representação literária e artística da enfermidade”, ou seja, os personagens tísicos na poesia e na prosa de ficção.

“Todas as doenças têm história”, disse Jacques Le Goff. A tuberculose acompanha a raça humana desde a pré-história e dela se acharam vestígios em múmias egípcias 5.000 anos a.C. Assírios e persas já se referiam a ela. Quanto aos hebreus, as opiniões se dividem. Alguns acham que a doença era desconhecida na Judeia e outros alegam que os hebreus a adquiriram dos egípcios, tendo-lhes o contato prolongado garantido imunidade superior à de qualquer outro povo. Neste caso, teriam significado especial várias passagens do Antigo Testamento, entre as quais as do Deuteronômio e do Levítico: “Porei sobre vós o terror, a tísica e a febre, que consomem os olhos e esgotam a vida.”

Hipócrates acreditava, erroneamente, em seu caráter hereditário: “um tísico nasce de outro tísico”. Já Areteu da Capadócia dá um passo à frente, descrevendo acuradamente a enfermidade sob o aspecto clínico.

Na Idade Média, “os séculos das trevas”, nada se acrescentou de substancial ao conhecimento da enfermidade. Entra-se em “um deserto de quinze séculos, durante os quais não se avança um passo no estudo da tuberculose. […] A opinião volta a contentar-se com a primitiva explicação do castigo divino e as preces que devemos levantar ao céu para libertar-nos da enfermidade contraída. […] É como se a Medicina tivesse retrocedido, no rumo dos espíritos malignos e dos encantamentos”.

Chega-se então ao Renascimento, e a investigação não mais se interrompe. Morton (que morreu de tuberculose) em seu tratado sobre Phtisiologia, cunha a expressão “tuberculose pulmonar”; Laennec, também vitimado pela tuberculose, descobre a auscultação pulmonar; Villemin demonstra tratar-se de doença contagiosa; Pasteur desenvolve a doutrina bacteriana; e Robert Koch isola o bacilo transmissor da doença.

No século XIX, a tuberculose se firmou como grave problema social, ocasionando a morte de 1,5 milhão de pessoas por ano, além de deixar em inúmeros sobreviventes um rastro de sequelas físicas, psicológicas e sociais de difícil solução. Em seu estudo, Tulo priorizou a literatura produzida nessa época, que é a da escola romântica. Chamava-se a tísica então de doença da escrita. Theniers-Puget descreve-a como “causadora de vida mental mais intensa, elevando a iluminação interior ou mesmo determinando-a”. Como diz Tulo, “é como se as belas-artes atraíssem o bacilo, ou o bacilo, junto com a febre e as pontadas, desencadeasse o amor das artes, mormente o das letras”. E, como exemplo,  ouçamos o conselho dado pela mãe ao poeta Rodrigues de Abreu e transformado em verso: “Meu filho, deixa de fazer versos;/ Ouvi dizer que todo poeta morre tísico…”

Com base no culto do eu, os poetas expressavam, segundo o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés, extremo pessimismo, sensação de perda de suporte, apatia moral, melancolia difusa, tristeza, culto do mistério, do sonho, da inquietude mórbida, tédio irremissível, sem causa, sofrimento cósmico, ausência da alegria de viver, fantasia desmesurada, atração pelo infinito, desencanto em face do cotidiano, desilusão amorosa, nostalgia, falta de sentimento vital, depressão profunda, abulia, resultando em males físicos, mentais ou imaginários que levam à morte precoce ou ao suicídio.

Como veremos quando tratarmos da poesia romântica, “época houve em que, por desconcertante sortilégio, a tuberculose chegou a fazer-se querida, veículo de morte nobre e desejada para homens que encontraram, no lento aniquilamento que ela proporcionava, sua libertação de um mundo que não os satisfazia”. De raízes na Idade Média, esta cresça de ser a tuberculose “tema de amor e de inspiração poética” fomentadora da lenda “poética e sexual” dos bardos e musas atingidos pelo “extremado amor” veiculado pela doença. Essa idealização, através de um processo gradual, determinou não só sua aceitação, mas também o “embelezamento do triste e até do repugnante” – golfadas de sangue equivaliam à “espuma de color de rosa”.

Uma apaixonada romântica, “saltando de alegria”, oferece ao amado o lenço manchado de sangue golfado do peito, dizendo-lhe, feliz:

… Ven
Y mira! Gracias al cielo,
Estoy tísica también!

Diante de tantas posturas e raciocínios extremados da intelectualidade, não é de causar maior espanto que Frederic Chopin, tuberculoso famoso, tenha ditado moda de vestimenta e de postura com suas maneiras delicadas, sorriso triste e notória palidez cutânea. O mesmo ocorrendo com o violinista Paganini que viu todas as vestimentas da época serem usadas “à Paganini”. Este período, nos conta Tulo, foi denominado da “poitrinaire” (tuberculoso, em português), que “invadiu” a arte, o sentimento, o amor e a vida. Uma verdadeira “neurose coletiva”. Mais uma vez o ontem, nos dizendo de hoje …

Essa motivação rendeu frutos, embora viesse a se tornar um anacronismo após as primeiras décadas do século XX. A tuberculose como estilo só se justificava, quantitativamente, no século XIX, o “século de ouro da tísica”, e no começo do século XX.

Mas foi Afonso Arinos, no ensaio de crítica psicológica sobre Bandeira, quem estabeleceu uma diferenciação definitiva entre esses dois períodos quando afirmou que “a diferença entre os poetas antigos e os poetas modernos está em que os primeiros morriam e os segundos se curam de tuberculose”.

Não foi possível a Tulo Hostílio uma análise sociológica dessa disparidade entre o comportamento dos literatos no final do século XIX, particularmente dos românticos, em contraposição ao tísico-modelo do modernismo, Manuel Bandeira. Isso certamente se deve ao fato de que, quando da leitura e busca de fontes bibliográficas pelo autor, ainda existisse uma carência de textos que abordassem a sociologia da saúde e a psicologia social, textos estes que só vieram a ser apresentados no início da década de 50, em particular as publicações do sociólogo norte-americano Talcott Parsons.

Um traço característico da tuberculose foi que os indivíduos que a adquiriam se associavam como numa verdadeira “sociedade secreta”, com estatutos e hierarquia próprias. Basta uma leitura do clássico de Thomas Mann, A montanha mágica, para nos certificarmos dessa particularidade. Esse aspecto era tão claro que, já na década de 50, Koestler, estudioso das minorias, incluiu os sanatórios tísicos entre os “guetos que não são judeus”, junto com os cárceres, os campos de concentração, os mosteiros, as colônias de artistas, as minorias étnicas, os grupos homossexuais, as seitas religiosas e as agremiações políticas.

Outra questão preponderante no final do século XIX é que se acreditava que a tuberculose estava intrinsecamente ligada à hereditariedade (conceito hipocrático) e às condições de vida, como habitação e trabalho. A noção da doença implicava a noção de herança de morte. A moléstia era herdada enquanto constituição e, na época, a morte sobrevinha porque a cura inexistia. Embora abrandado na Europa a partir da segunda metade do século XIX, esse traço se manteve forte no Brasil, sendo defendido por muitos médicos, mesmo no início do Estado Novo.

Quatro dos mais significativos poetas românticos brasileiros pagaram tributo à tuberculose: Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Castro Alves.

Vejamos o que nos diz Álvares de Azevedo, autor de Lira dos vinte anos, sobre a musa branca: “Coração, por que tremes? Vejo a morte, / Ali vem lazarenta e desdentada… / Que noiva!… E devo então dormir com ela? / Se ela ao menos dormisse mascarada!”

Casimiro de Abreu foi o poeta do “Amor e medo”, que chegou a dizer que “queria a tísica com todas as suas peripécias, queria ir definhando liricamente, soltando sempre os últimos cantos da vida e depois expirar no meio de perfumes debaixo do céu azulado da Itália, ou no meio dessa natureza sublime que rodeia o Queimado”. E assim foi… A tuberculose arrebatou-lhe a vida aos 23 anos de idade. E em seu poema “No leito”, Casimiro nos diz novamente da Musa: “A febre me queima a fronte / E dos túmulos a aragem / Roçou-me a pálida face; / Mas no delírio e na febre / Sempre teu rosto contemplo…”

Castro Alves, autor de poemas que se eternizaram por sua potência e beleza, em seu poema “Adeus”, desabafa: “Quis te odiar, não pude. – Quis na terra / Encontrar outro amor – foi-me impossível. / Então bendisse a Deus que no meu peito / Pôs o germe cruel de um mal terrível”. E é no poema “O tísico” – que teve o título alterado para “Mocidade e morte” – que colhemos esta estrofe definitiva: “Morrer – é ver extinto dentre as névoas / O fanal que nos guia na tormenta; / Condenado – escutar dobres de sino / – Voz da morte, que a morte lhe lamenta – / Ah! Morrer – é trocar astros por círios, / Leito macio por esquife imundo; / Trocar os beijos da mulher – no visco / Da larva errante do sepulcro fundo. / Ver tudo findo… Só na lousa um nome, / Que o viandante a perpassar consome. […] Adeus!… Arrasta-me uma voz sombria, / Já me foge a razão na noite fria!…”

Os parnasianos foram mais longevos. Vários trataram o tema (às vezes em tom de escárnio), mas poucos sucumbiram à doença. A tuberculose era um traço anacrônico e descabido, findo o romantismo. Como deixou claro Carvalho Filho : “Odeio as virgens pálidas, cloróticas, / Beleza de missal que o romantismo / Hidrófobo apregoa em peças góticas, / Escritas nuns acessos de histerismo.”

Mas a tuberculose, “pulando” a escola da impassibilidade, “foi tornar-se íntima dos simbolistas”. A inclusão de Augusto dos Anjos entre os simbolistas já se fazia motivo de debate quando da publicação do livro de Tulo Hostílio. Afinal, como situar o insituável autor de Eu? Poeta mórbido-pessimista, Augusto dos Anjos, embora erroneamente tenha sua morte atribuída à tuberculose (morreu em decorrência de uma pneumonia), em duas quadras de longa poesia externou sua percepção sobre esse mal: “Falar somente uma linguagem rouca, / Um português cansado e incompreensível, / Vomitar o pulmão na noite horrível / Em que se deita sangue pela boca! / Expulsar, aos bocados, a existência / Numa bacia autômata de barro /Alucinado, vendo em cada escarro / O retrato da própria consciência…”

Ainda dentro do movimento simbolista, Tulo Hostílio destacou a poetisa Auta de Souza, “a mais espiritual das poetisas brasileiras”, que, mesmo morta, continuou sendo invocada pelos espíritas, que lhe psicografaram versos. Dela selecionamos os versos retirados do poema “Dolores”: “Dentro de minh’alma doída, chorosa, / De pobre moça tuberculosa, /  Cheio de medo, tremulo, incerto/ Bate com força meu coração. // E assim morrendo, coitada, aos poucos, / Convulsa e fria, louca de espanto, / Solto suspiros, gemidos roucos, / Olhando as cruzes do Campo Santo, // Porque me lembro que muito breve / Leva-me a ele tanta dor física, / E dentro em pouco, branco de neve, / Verão o esquife da pobre tísica”.

Outro simbolista tuberculoso foi Cruz e Souza. Poeta discreto, que pouco tratou da tuberculose como tema, em seu poema “Assim seja!” nos passou a ideia que a indesejada teria sido recebida com serenidade e coragem: “Fecha os olhos e morre calmamente! / Morre sereno do Dever cumprido! / Nem o mais leve, nem um só gemido / Traia, sequer, o teu Sentir latente. // Morre com a alma leal, clarividente, / Da Crença errando no Vergel florido / E o pensamento pelos céus brandido / Como um gládio soberbo e refulgente. // Vai abrindo sacrário por sacrário / Do teu Sonho no templo imaginário, / Na hora glacial da negra Morte imensa… // Morre com teu Dever! Na alta confiança / De quem triunfou e sabe que descansa, / Desdenhando de toda a Recompensa!

Simbolista pouco conhecido nos nossos dias, Max Vasconcelos resumiu com os seguintes versos o impacto dos poetas coetâneos: “Dos que ficaram como eu: tossindo… / Monjas brancas e poetas simbolistas. / Curtindo o mesmo mal que eu vou curtindo… // Dos que morreram desejando, ver / O Pôr do Sol com as derradeiras vistas / Dos que morreram como eu vou morrer…”

Já no século XX começa a declinar a associação entre tuberculose e criação artística, passando a identificar-se a doença como grave problema de saúde por sua persistência e propagação. De mal romântico passa a mal social, o que contribuiu para a estigmatização social do enfermo.

No Brasil, a falta de interferência efetiva do poder público levou ao surgimento de Ligas (sendo a principal encabeçada pelo médico carioca, radicado em São Paulo, Clemente Ferreira) que propagaram os métodos de profilaxia vigente e criaram sanatórios. Osvaldo Cruz implementou a assistência pública à doença. Nos anos 1920 ocorreram a Reforma Carlos Chagas e a vacinação dos recém-nascidos com BCG. Em 1936 Manoel Dias de Abreu desenvolveu a abreugrafia, otimizando o acesso à investigação radiológica da população. Por fim, em 1943, dá-se a descoberta da estreptomicina pelo americano Selman Waksman (Prêmio Nobel de Medicina), possibilitando o tratamento e o controle efetivos da tuberculose. Enumerando-se assim, passam despercebidos uma série de atropelos, retrocessos e embates existentes dentro da classe médica e entre esta e os órgãos oficiais (seja da Velha República ou do governo Vargas), mas não foi esse o objetivo principal do ensaio elaborado por Tulo Hostílio.

Manuel Bandeira, ressalta Tulo, é o personagem “mais importante da literatura brasileira, se se considera a influência da tísica sobre a gênese e o desenvolvimento de uma vocação literária. Em nenhum outro intelectual patrício teve a identificação com a doença tão permanente caráter”.

Destaque-se um comentário de Ribeiro Couto dirigido a Bandeira ao recebê-lo na Academia Brasileira de Letras: “Não fora o acidente da enfermidade, não teríeis talvez escrito a vossa obra, isto é, a mesma obra, com os seus motivos fundamentais, vividos por experiência direta. Faltaria o tormento de olhar a vida pela janela sem poder tomar parte no voluptuoso tumulto; dessarte, não viríeis a descobrir depois dos quarenta anos o reino de Pasárgada – país dos recalques em liberdade, dos antigos desejos compensados, das alegrias enfim permitidas.”

“Eu faço verso como quem morre”, nos sussurra Bandeira. E a Ribeiro Couto responde: “Se não for isso, não farei mais nada, porque em mim o poeta é a tuberculose. Eu sou Manuel Bandeira, o poeta tísico”. E disse mais: “A moléstia não chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu […] de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu”.

A morte anunciada, numa época sem penicilina, assombrou o imaginário do poeta condenado, tecendo o tempo que se esvai na tediosa espera do fim. Bandeira passou a vida esperando a morte e morreu aos 82 anos. “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.

Em um dos poemas de Carnaval,“A Dama Branca”, a morte e a tuberculose se mostram inteiras:

A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Era sorriso de compaixão?
Era sorriso de zombaria?
Não era mofa nem dó. Senão,
Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também
A cada júbilo interior.
Sorria como querendo bem.
E todavia não era amor.

Era desejo? – Credo! de tísicos?
Por histeria… quem sabe lá?
A Dama tinha caprichos físicos:
Era uma estranha vulgívaga.

Era… era o gênio da corrupção.
Tábua de vícios adulterinos.
Tivera amantes: uma porção.
Até mulheres. Até meninos.

Ao pobre amante que lhe queria,
Se lhe furtava sarcástica.
Com uns perjura, com outros fria,
Com outros má.

– A Dama Branca que eu encontrei,
Há tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Essa constância de anos a fio,
Sutil, captara-me. E imaginai!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.

Quem seria a Dama Branca: a tuberculose – Musa Branca – ou a morte? Diz-nos Emanuel de Moraes tratar-se de “uma transposição de conceitos, mas não de sentimentos em relação à morte”, sendo então a Dama Branca “a mulher representativa do seu erotismo exacerbado. […] a união de temas num só corpo – numa só Musa – sem aquele horror do poeta romântico”. A Dama Branca seria, “criatura luminosa e ao mesmo tempo corrupta”, sendo simplesmente “a personificação da tísica na sua concepção poética”.

A tuberculose entre os prosadores, nos diz Tulo, teve seu recenseamento comprometido ao longo dos tempos devido à carência de dados. O que aconteceu de notório é que o preconceito contra os prosadores tísicos foi muito maior que com os poetas. Como se a tísica fosse, como já sinalizamos anteriormente, lugar-comum e desejável para os jovens lívidos bardos veneradores da Musa Branca. Estes se situavam “confortavelmente”, aos olhos da sociedade novecentista e do início do século XX, em sua relação com Thánatos. Mas não podemos nos furtar da relembrar o romancista Graciliano Ramos, que contraiu tuberculose nas prisões do governo, durante o Estado Novo. Em Memórias do cárcere Graciliano retratou, de forma clara e irretocável, se mantendo como documento histórico, o “lado sinistro de uma ditadura frequentemente considerada suave”. Outro notório tuberculoso foi nosso dramaturgo maior Nelson Rodrigues, que teve sua primeira peça ensaiada durante sua internação no sanatório de Campos de Jordão, quando se encontrava internado para tratamento da tisica.

Tuberculose e literatura é um marco na literatura brasileira. Foram poucos os autores que se dispuseram a realizar um trabalho profundo e definitivo, capaz de demonstrar que a tuberculose, em todas as suas fases clínicas, em diversos momentos históricos e circunstâncias evolutivas da sociedade humana, é uma doença capaz de influenciar criador e criatura, “dessemelhante nas características individuais, mas homogênea nas reações perante o bacilo de Koch. Porque, como dizia Stênio sobre João Alphonsus: “Um tuberculoso é um elemento sem pátria, nem fronteiras […] Um ladrão chinês é um ladrão chinês, diferentíssimo do ladrão turco, brasileiro, norte-americano, a começar pelas coisas que furta, como furta, etc. Um sujeito honesto é também diferente em cada país, como o gigolô, o político, o funcionário público, o vendedor ambulante. Mas um tuberculoso é o mesmo em qualquer parte do mundo, internacionalizado pelo mesmíssimo bacilo…”

Ouçamos, por fim, o que nos diz o poeta Barbosa de Freitas, de muitos desconhecido e, pelo autor capixaba, resgatado em seu leito de morte na Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza:

Sombras da noite eterna, horríveis sombras,
O que buscais em torno do meu leito?!
Vireis trazer-me o bálsamo da vida,
……………………………………………

Ou alertar a esperança no meu peito?
Sombras da noite eterna, horríveis sombras!

Deixai, deixai-me em plácido sossego!
Inda lobrigo, à tênue luz dos sonhos,
Nos meus vergéis as gramas viridentes,
Meus perfumosos lírios tão risonhos!
Deixai-me, deixai-me em plácido sossego.

Sinto saudades das manhãs de moço,
De ti. Maria – inocentinha hebreia,
Mas… qual da noite a luz do fogo errante,
De minha vida a lâmpada bruxuleia,
Sinto saudades das manhãs de moço,
…………………………………………..

Sombras da noite eterna, horríveis sombras!
Não me oculteis da vida a claridade…
Não me lanceis tão cedo, oh! Impiedosas!
Na enxovia fatal da eternidade!
 Sombras da noite eterna, horríveis sombras!
…………………………………………

É cedo ainda, oh! pálidos coveiros!
Ainda quero beber venturas, enganos…
Quero cantar a minha doce aurora,
Que me sorri aos meus vinte e dois anos!
É cedo ainda, oh! pálidos coveiros!
………………………………………..

Tenho nojo do esquife, odeio as nênias!
Causa-me tédio o sino que retumba.
Maldigo o seco crepitar dos círios,
Prostra-me a ideia da sombra tumba.
Tenho nojo do esquife, odeio as nênias!

Sabei agora, oh! lívidos fantasmas!
Quando meu ser cair na dura estrada
Como a lua que se apaga à ventania
Voltarei ao temor, ao grande nada!
Sabei agora, oh! lívidos fantasmas!

Bibliografia consultada:

MONTENEGRO Tulo Hostílio. Tuberbulose e Literatura – Notas de pesquisa – Segunda edição revista e aumentada, 1971. Rio: A Casa do Livro.
CASTELLANOS Marcelo E. P. e NUNES Verardo Duarte. A Sociologia da Saúde: Análise de um Manual. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):353-371, 2005.
ADAM, Philippe & HERZLICH, Claudine. Sociologia da doença e da medicina. Tradução de Laureano Pelegrin. Bauru: Edusc, 2001.
MACIEL M. S., MENDES, P. D., GOMES, A. P. e SIQUEIRA-BATISTA, R. A história da tuberculose no Brasil: os muitos tons (de cinza) da miséria. Revista Brasileira de Clínica Médica. São Paulo,10(3):226-30,2012.
OLIVEIRA Rafael Soares. O último tísico: A imagem tuberculosa na poesia de Manuel Bandeira. Caligrama. Belo Horizonte, 11:93-100,2006.
ANTUNES J. L. F., WALDMAN, E. A., MORAES, M. A tuberculose através do século: ícones canônicos e signos do combate à enfermidade.Ciência & Saúde Coletiva, 5(2):367-379, 2000.
GONÇALVES, Helen. Peste branca; um estudo antropológico sobre a tuberculose. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
BERTOLLI FILHO, Claudio. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.

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Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, cardiologista e poeta residente em Vitória – ES. Tem vários livros publicados é colaborador em vários blogs e revistas literárias. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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