Em 1997 recebi do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo o Prêmio Almeida Cousin por conjunto de obra. Na ocasião Renato Pacheco, que bem me conhece, tranquilizou-me: “Não precisa fazer discurso.” Com efeito, no dia da entrega do prêmio, entrei mudo e saí calado – mas com cheque no bolso. Aí, querendo anestesiar a minha consciência, acabei prometendo a Renato, para a revista do Instituto, um texto sobre meu premiado conjunto de obra. E, como promessa é dívida, aqui estou pagando, bem ou mal, a minha promessa.
Sempre digo e repito, e raramente sou acreditado, que não sei teorizar sobre qualquer trabalho literário, inclusive o meu. As pessoas parecem achar que de um escritor (ainda mais formado em Letras, como é o meu caso) têm o direito de esperar qualquer coisa que seja feita de palavras, o que vai desde um discurso em público até um ensaio literário. Ora, não se espera de um clarinetista que ele toque também contrabaixo, nem de um contrabaixista que toque também clarinete. No meu caso específico, então, minhas limitações com as palavras são legião. Sei, ou me esforço por saber, usá-las em determinados contextos, para tratar de determinados assuntos ou contar determinadas histórias; mas em outros contextos menos a ver comigo dá-se um branco e não sai uma só linha que preste. Lembro aqui o caso de José Carlos Oliveira, autor de algumas das mais bem escritas crônicas jamais bem escritas em língua portuguesa; talvez seja sacanagem minha trazer esse caso à baila, mas preciso de argumentos fortes para defender o que digo, e por isso lá vai: encomendaram a José Carlos uma crônica necrológica sobre um jogador de futebol, que tinha sido até amigo de infância dele na velha Jucutuquara dos tempos do bonde e da vala. Saiu, mas saiu uma merda. José Carlos estava tão preparado para escrever aquilo como para escrever um arrazoado jurídico sobre verificação de paternidade.
Dito isso, vamos ver o que dá pra dizer sobre o tema que eu mesmo encomendei a mim próprio. Não posso deixar em branco o papel que meu pai e meus dois irmãos representaram na minha descoberta da literatura. Nasci numa casa de livros. Sim, a casa da rua Afonso Brás, que lá está até hoje, tinha cheiro de livro, e foi esse o cheiro que mamei desde a infância. Filho temporão, criei-me entre pessoas adultas que estavam sempre com um livro diante do nariz, ou com um lápis ou caneta na mão; sempre conversando, à mesa de jantar, sobre este autor ou aquele. Tanto que comecei cedo, lá pelos seis anos, a imitá-las, por um lado lendo as histórias de Monteiro Lobato, por outro escrevendo, com lápis de ponta rombuda, em compridas tiras de papel, alguns textos do tipo que hoje se convencionou chamar de mini-contos.
As leituras continuaram, que livro é o que não faltava, como continuaram as produções literárias também. Mergulhei na Coleção Terramarear, cujos livros tinham capas de encher os olhos de qualquer guri, como a da Ilha do Tesouro, de Stevenson, que mostrava um bando de piratas ameaçadores avançando ameaçadores sobre o leitor. Comecei, paralelamente, a ir ao cinema – em especial o São Luiz, a um passo de casa, na rua 23 de Maio. Descobri o mundo da aventura, do crime e do faroeste. Vieram histórias com um elenco de gangsters sarcásticos, e que, curiosamente, eram apresentadas como de autoria de um certo detetive Wells – criei, assim, um narrador para essas histórias, num ensaio infantil de metalinguagem. Vieram histórias de cowboys e índios, vieram histórias de piratas. Em contraponto a todo esse universo ostensivamente estrangeiro, escrevi algumas histórias – de óbvia inspiração na série Taquara-Póca, de Francisco Marins – ambientadas numa Manguinhos redimensionada, numa Manguinhos-do-Fim-do-Mundo, tendo como personagem principal meu avô Ceciliano. Eram as preferidas de minha mãe.
Lógico que era tudo uma merda, em que só se salva a própria puerilidade criativa ou criatividade pueril dos textos. Mas o enxame de informações não parava de voejar à minha cabeça. Fiz, como ouvinte, todo um curso de literatura à mesa do jantar. A literatura estava sempre renascendo na véspera, e o pessoal lá de casa acompanhava as novidades na medida do possível. De repente passei a ouvir nomes de poderosa sonoridade como Faulkner, Hemingway, Steinbeck e Graham Greene. Não tinha lido nada deles, é claro, mas, só pelo que ouvia à mesa, já me sentia capaz de imitá-los. Dei um passo ambicioso tentando um romance. Chamei-o de Os Fanáticos. Nessa época, já adolescente, achava o máximo virar as costas a Deus. O romance, ambientado numa pequena cidade fictícia dos Estados Unidos – ainda era um colonizado cultural –, tinha dúzias de personagens, dentre os quais alguns jovens rebeldes que cultivam uma sociedade secreta. A morte da esposa de um deles leva-o à obsessão da vingança contra Deus, a quem atribui a culpa daquela morte. Valendo-se de sua influência na sociedade, consegue induzir os companheiros ao assassinato do pastor local. Dostoiévski em Yoknapatawpha, certamente.
Não creio que tenha ficado satisfeito com o resultado do romance, porque logo a seguir voltei ao gênero mais curto. Só que, agora, com a missão quase sagrada de ser original, de ter um estilo próprio. Nasceram daí três ou quatro longos contos, o primeiro dos quais se chamava “Chuva no dia da morte de Théo”. Que a linguagem é original, é, mas quanta forçação de barra e, em paralelo, quanta angústia expressa no vazio dos personagens. Meu pai, lendo aquelas coisas, ficava todo coruja do filho. Tanto que impingiu a sua leitura ao amigo Eugênio Sette, que me escreveu uma carta memorável, com o título “Carta a um jovem contista” – muito mais memorável do que qualquer dos textos do próprio jovem contista.
Pois foram esses contos existencialistóides que abriram o meu caminho de volta ao romance. No Reino dos Medas, meu livro de estréia, que costumo chamar de romance em desuso, tresanda o mesmo miasma dos contos, e a mesma chatice narrativa. Só a linguagem, depurada dos excessos das tentativas prévias, não me envergonha hoje.
O resto faz parte do meu currículo oficial. Veio o romance medievalesco, A crônica de Malemort, inspirado em O Eleito, de Thomas Mann; a esse seguiu-se o romance intertextual, As mãos no fogo, em que é grande a influência de um autor inglês chamado Richard Hughes. Concomitantemente saiu, na revista Letra, o Poema Graciano, atribuído ao personagem principal desse romance. Um longo hiato de cinco anos fechou com a publicação do romance metalingüístico, Sueli. Segue-se mais um longo hiato improdutivo, em que Joca Simonetti me transformou numa espécie de jornalista, como co-piloto da revista Você, da Ufes. Virei editorialista; escrevi muita coisa por encomenda. Nesse meio tempo, saiu a coletânea de contos inspirados no romanceiro tradicional, Má notícia para o pai da criança, publicada como encarte do jornal A Gazeta, publicação que tem o mérito de me ter valido uns trocados de direitos autorais.
1998 começa com a minha presença, como cronista serial, na Gazeta On Line e na revista Você. Essas crônicas pingadas mês a mês tratam das peripécias de um certo Garibaldi, fanático por jazz, mulher e poesia – parece alguém que eu conheço. Paulo Sodré diz – e é verdade – que esses textos deixam claro o prazer que me dá escrevê-los. São, pra usar o termo de Graham Greene, os meus entretenimentos. E agora sai meu primeiro livro de poemas, Muito soneto por nada, via Lei Rubem Braga.
Projetos? Muitos: tantos que nem vale a pena enumerá-los, inclusive pra não dar azar. Quem foi mesmo que disse que se você conta uma história que pretende escrever você não consegue escrevê-la?
Disse a Renato que faria minha profissão de fé como escritor. Acabei foi traçando em retrospecto meu itinerário pessoal pela literatura. Minha profissão de fé está em tudo que escrevi. O amor pela língua portuguesa, a identificação visceral com as coisas capixabas, a sublime tentação representada pela mulher, donde o alto teor de erotismo dos textos, a obsessão estética pela Igreja Católica – o que, aliás, extraiu de mim A confissão, um conto comprido, ainda inédito, que costumo chamar de conto católico, meu momento de Graham Greene. Em termos, mais especificamente, de técnica, o gosto por recursos como intertexto e metalinguagem, por brincar à vera com essa tão amada última flor do Lácio, e por essa coisa misteriosa que é o drama. E quando digo drama não me refiro a teatro – gênero que me deixa redondamente indiferente –, mas sim ao pathos mesmo de um texto literário, aquele conteúdo dramático que pode estar presente até numa frase como “Bom dia”, que, se inserida na trama no ponto exato de interação com tudo o mais, pode até equivaler a “Te vejo no inferno” – como diziam os saudosos personagens dos contos escritos em criança.
[Transcrito da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, n. 51, Vitória, 1999.]