Antigamente, bem antigamente – setenta anos atrás – crianças cantavam nas ruas de Vitória e no interior do Estado: Eu vi uma pastora, lá-lá, lá-lá, larito. Eu vi uma pastora, Lá no morro de São Francisco; e cantavam, antigamente: O que é de Valentim, Valentim trás, trás. O que é de Valentim, é um bom rapaz. O que é de Valentim? Valentim sou eu, linda moreninha que este páreo é meu; e emendavam, na roda das cirandas que parecia não querer parar nunca: Era um rochedo tão alto, que ninguém pode alcançar. Sentou-se a pobre viúva, sentou-se e pôs-se a chorar, a chorar, a chorar.
Assim era a setenta anos atrás, quando o professor Guilherme Santos Neves, que lecionava português no Colégio do Carmo, em Vitória, já interessado nas coisas do folclore capixaba – de que as cantigas de roda são um mínimo exemplo – decidiu recolher, por intermédio de suas alunas, tudo, tudo o que elas sabiam ou o que elas pudessem coletar de terceiros, sobre o riquíssimo acervo da oralidade folclórica do nosso Estado.
Incentivadas pelo professor, levas, levas de alunas do Carmo entre 1940 e 60 passaram às mãos do mestre páginas e páginas de cadernos com um manancial: de adágios; adivinhas; cantigas de roda e cantigas de ninar; superstições; crendices; provérbios; frases feitas; orações; benzimentos; trovas populares; romances versificados; receitas da tradicional culinária capixaba e para cura de doenças; lendas e contos – enfim, um repertório vastíssimo que vinha das informações manuscritas pelas alunas do internato e externato do Carmo.
Esse filão farto, que estava à volta do professor e folclorista, foi assim convertido, pelas alunas a quem ele chamava carinhosamente manducas ou manduquinhas, em registros lançados em folhas de caderno que o tempo amarelou, mas não destruiu, permitindo que todo esse material, guardado quase por milagre, fosse reunido, selecionado, digitalizado e inventariado para divulgação no site ESTAÇÃO CAPIXABA, objetivo do projeto realizado pelo Instituto Phoenix Cultura, com recursos da LEI RUBEM BRAGA, da Prefeitura de Vitória, e apoio da SPASSU TECNOLOGIA.
Com a lucidez e percepção que lhe é peculiar, escreveu o historiador Fernando Achiamé, em sua obra sobre Guilherme Santos Neves, que integrou a Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo, organizada por Antônio de Pádua Rangel:
“valer-se de quem estava ao seu redor ou a sua volta era uma usança sábia e singela empregada por Mestre Guilherme”, nas pesquisas do folclore capixaba.
Prova disso, digo eu, foi a experiência ímpar por ele vivida junto às alunas do Carmo, da qual resultou a massa documental que compõe o projeto ora lançado à divulgação.
Já tive oportunidade de aludir, em outra ocasião, – e repito agora – a minha recuada lembrança da relação de meu pai com as alunas do Carmo, marcando uma das etapas iniciais de sua carreira de folclorista.
O velho colégio era então assistido pelas irmãs vicentinas, educadoras aplicadas que vieram para o Espírito Santo no apagar do século 19, trazidas por D.João Nery, primeiro bispo do Estado. O colégio tinha internato e externato para moças, cujas famílias espalhavam-se por todos os cantos do Espírito Santo.
Naquele viveiro de discípulas, o professor Guilherme encontrou a seara benfazeja em que (posso assegurar sem medo de errar), recolheu os primeiros informes orais que iriam embasar um acervo precioso de conhecimentos sobre o folclore capixaba. Mais do que isso: com muitas dessas alunas, reunidas em grupo, realizou excursões a diversos lugares para interessá-las na pesquisa do folclore, o que potencializava a dedicação e o entusiasmo de todas pelo incipiente trabalho de campo em que se aventuravam com seriedade e prazer.
A escritora Marilena Soneghet, que estudou no Carmo, foi uma das centenas de alunas que contribuíram para alimentar a arca de folclore do professor Guilherme, graças a quem, descobriu o impensável:
“Tudo o que vinha da boca do povo tinha valor: a cantoria esganiçada nas rodas de ciranda, a toada da lavadeira à beira-rio, o aboio do peão, os jongos do tambor… até o versinho canhestro de escolher pegador no pique “o nani, o nani napolitano, o navio que passou pela Espanha” – tinha o pomposo nome de parlenda – e era folclore! De repente, a gente se sentia importante, donos de uma sabedoria insólita de que jamais suspeitávamos.” (apud ACHIAMÉ).
Lecionando num educandário onde imperava um modelo de forte conservadorismo pedagógico e religioso, é de se crer que atuação do professor Guilherme tivesse a força impactante de uma inflexão inovadora, estabelecendo entre ele e as alunas um estreito laço de empatia, numa quebra de rotina que se convertia em momentos de feliz e descontraída convivência, na esteira das oportunidades propiciadas pelas pesquisas do folclore.
A notável escritora Bernadette Lyra, que também estudou no Carmo e figura dentre as colaboradoras do inventário ora divulgado (documento 928, v.g.), relembrando essa época, escreveu sobre o seu querido professor e com base no trabalho singular por ele realizado:
“Havia uma paixão temporânea, uma dor e uma alegria de vida em tudo que ele dizia e fazia. Do divino ao escatológico, da mente ao corpo, nada do que era humano lhe parecia desprezível ou estranho. Eu nunca tive lição de liberdade maior”. (apud ACHIAMÉ).
O projeto ora apresentado no espaço desta prestigiosa Biblioteca – sempre escancarada a promover a cultura e sua divulgação entre os capixabas e não capixabas -, não visa a valorizar domesticamente algo que seja de validade discutível, como falsa prata familiar desprovida de importância cultural.
Uma simples navegação pelo inventário, realizada por quem tenha olho de gajeiro para divisar outros horizontes além do seu conteúdo estritamente folclórico, captará um retrato socioeconômico de um Espírito Santo ainda ensimesmadamente rural do tempo do mata-burro, do fogão de barro, das casas de estuque, em que o grosso da população se dispersava pelo interior e a grande expansão urbana e industrial estava por eclodir.
Um Espírito Santo em que, se cabiam os icônicos mata-burros, fogões de barro e casas de estuque, cabiam também o jogo das pedrinhas, (tão recuadamente romano); o mamãe-pode, quantos passos?; ou o pular de corda das meninas – e estou apenas tirando exemplos ao acaso do velho samburá do folclore capixaba.
Um Espírito Santo, pois, em que crianças que cantarolavam nas rodas das cirandas o lá-lá, lá-lá, larito da pastora que matou o seu marido e foi se confessar ao padre com quem ela queria se casar, não destoava em nada do panorama geral em que a oralidade folclórica diligentemente recolhida por Guilherme Santos Neves, por meio das alunas do Carmo, iluminava e completava, com emanações poéticas, esse cenário de antigamente.
Cenário característico de uma época que vai ficando cada vez mais distante do nosso vertiginoso e tresloucado mundo moderno, e que pode ser definido, com base no inventário folclórico de que estamos tratando, como sendo cenário representativo de um Espírito Santo lá, lá-lá, larito que eu acredito que continue intacto na saudade daqueles que estávamos lá e continuamos aqui, e daqui cultuando esse torrão farto de uma leveza memorial imponderável.
[Texto lido por Luiz Guilherme Santos Neves no evento de lançamento do Projeto PRESERVAÇÃO E DIVULGAÇÃO DE REGISTROS DO FOLCLORE CAPIXABA, ocorrido no dia 28 de janeiro de 2016, no auditório da Biblioteca Pública do Espírito Santo]
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)