A primeira vez que li Poética de romance: matéria de carpintaria, de Autran Dourado, fiquei surpreso com a possibilidade de se debruçar sobre a própria obra, sem que isso parecesse um banal exercício de umbiguismo. Isso foi em 1983. Quase dez anos mais tarde, encontro Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira, e Memórias das palavras ou o gosto de falar de mim, de José Gomes Ferreira, duas deliciosas crônicas das atividades biográfico-literárias. Menos preocupado com o narcisismo ou não desse observar a própria obra, aceito hoje a chance de mirar publicamente meu trabalho. Não esperem uma bela crônica, nem Dourado, Bandeira nem Ferreira. Meu umbigo é estreito.
Para melhor organizar essa aproximação, preferi dividi-la em três partes, em cada uma tratarei de uma década, a de 70, a do pré-início; a de 80, a do início, e a de 90, ainda a do início.
Primeira Parte
(Quando só os desenhos me enchiam os olhos, ainda não míopes)
Não foi sob mangueiras, nem no sótão, nem na sala de minha avó que deparei a leitura das palavras. Numa biblioteca do antigo Colégio Oliveira Castro, em Itaquari, perto do qual até hoje soam os apitos do trem, fiquei impressionado com as ilustrações, as cores aquareladas de um livro. As letras e as palavras eram as caixinhas onde se escondiam as claridades daqueles desenhos. Para eu entendê-las melhor, tinha de abrir cada caixa, centenas delas. Então, a menina com sombrinha colorida, o leão e sua empáfia, o garoto no fundo do mar e o portão aberto de uma casa ganhavam porquês, quandos, ondes.
A televisão em preto e branco, logo depois a cores, e seus programas na TV Educativa me conduziam também para o cultivo das imagens: Disney e Pinóquio, Hanna e Barbera e Zé Colméia, a mimosa Betty Boop. O belo Príncipe Valente e o Capitão América, Pateta e Clarabela, nos quadrinhos, são alguns dos outros traços que me chegavam pelas palavras. Estas, contudo, eram apenas lanternas para os desenhos bem feitos.
No Colégio Americano Batista de Vitória, entrei em contato com minha adolescência intimidada; com a urbe (até então só conhecia as ruas e quintais de meu bairro, Alto Laje, e vizinhança, no subúrbio, ou as praias de Nova Almeida e Jacaraípe, onde corriam os dias de férias de janeiro); com meus desejos na contramão, com a produção mais intensa de desenhos. Numa tarde qualquer, numa sala de aula de português, no primeiro grau, lemos um trecho de Os cangaceiros, de Lins do Rego. Havia as ilustrações, mas o texto verbal e seu poder de criação de homens, cenários e dramas começaram a acordar minhas perguntas sobre o mundo. Dessa experiência vieram outras tardes, em casa, com a leitura de Menino do engenho, Fogo morto; depois, Clarissa, Música ao longe, o telúrico Ana terra, de Veríssimo. Numa manhã de segundo grau, minha atenção não conseguia deixar de lado um vaso grego, num soneto talvez de Alberto de Oliveira, e as brancuras sonoras de Cruz e Souza. Não sabia se tentava desenhar o vaso ou se tentava vasculhar palavras que cantassem tão bem. Pela primeira vez, a poesia me interrompia a indiferença e a desatenção.
Nesse momento, minha inclinação para a produção literária tem sua gênese, seu embaraço, sua marca. Os parnasianos (e eu nem imaginava que eles pudessem ter sido vaiados em 22), me interessavam pela fotografia, claro, pelo desenho verbal. Os simbolistas me arderam pelas palavras de água, nuvem, poalha de sol e plenilúnio.
Mas no começo, sim, no começo, era o Desenho.
Segunda Parte
(Quando percebi que se destoava com rimas em ão e osa)
Alguns anos mais tarde, com essas influências (quem me dera traçar as escolhas!), já universitário de Letras-Inglês, participei da primeira Oficina Literária de Vitória. Melting pot de olhos, pensamentos, palavras, leituras e estilos. Pasmo. Não sabia se reduzia ao esquecimento absoluto meus poemas ou se me deixava marcar, a ferro e susto, por tantas possibilidades de formas, temas, personalidades. Bandeira me soava coaxado; Cabral me tocava metais (para mim, que adoro oboés); os irmãos Campos me lembravam ásperos pedreiros. Acabaram, contudo, por me seduzir. Saí (creio eu) do século XIX.
Lendo ou relendo a prosa de James Baldwin, Virginia Woolf, Autran Dourado, Lins do Rego, Marguerite Yourcenar e André Gide, comecei a escrever contos como forma de me esquecer da poesia. Não consegui, todavia, vencer a vontade petulante de escrever poemas, especialmente quando via as reproduções dos nenúfares de Monet e das ninfas de Burne-Jones, ou lia as gravuras verbais de Bashô e as canções de Garcia Lorca. “Poeta, sim, poeta”, como escreveu simplesmente Miguel Torga.
Meus poemas, os que sobreviveram ao poemicídio, vieram desses esbarros e pasmos e encantamentos. As imagens evanescentes, predominantemente fotografadas em gerúndio, os adjetivos, os neologismos, os versos arrogantes pelo hermetismo ou pelo arrevesado das ideias (devo confessar que os labirintos barrocos sempre me pareceram charmosos), tudo isso foi produzido com um intuito que hoje compreendo melhor: diluir o receio de transformar em versos as reflexões, os sentimentos e o desejo por rapazes botticcelianos.
Se Interiores, de 84, pode ser observado como um livro em que se deflagra a paixão pela língua portuguesa e pelas possibilidades de linguagem — daí a exploração excessiva principalmente dos neologismos, da pontuação e dos hipérbatos; por sua vez, Lhecídio: gravuras de sherazade na penúltima noite, de 89, pode ser uma ilustração da paixão pela literatura e pela arte, daí ser uma obra pedante, exageradamente intertextualista, feita num momento em que a única referência digna de nota era a da cultura elitista, para apreciadores da arte e de seus variados discursos.
Nesse meio tempo, experimento uma conciliação, escrevo e ilustro Ominho, de 86. Costumo dizer, a quem me pergunta sobre os desenhos, que me considero um traidor em relação a minha vontade de desenhar. Deixei-a em função das letras. Melhor escolha? Até hoje não saberia responder. De todo modo, com Ominho, diplomaticamente, fiz desenho e palavra se juntarem.
Se na década de 70 o que me interessava mais era o desenho, na de 80 predominou a produção literária, incentivada especialmente pelos amigos e pelos colegas de ofício, com quem comecei a ter longas conversas com café, pizzas e passeios pelo campus da UFES, dentre eles Francisco Grijó Filho, com quem aprendi a ouvir João Cabral e as rimas toantes; Marcos Stulzer, que me ajudou a repensar o hermetismo dos poemas; Cristina Siqueira, com quem comecei a apreciar os poemas menos cerebrais; Oscar Gama Filho, que me orientou na percepção do meu próprio trabalho e me apresentou Souzândrade e Pound; Valdo Mota, cujo talento e escracho me favoreceram no desbaste de meus acanhamentos, e, sobretudo, Reinaldo Santos Neves, que acabou por se tornar para mim um norte precioso por sua sobriedade, elegância e consequência na criação literária.
Terceira Parte
(Quando o início parece estar pronto para começar)
Em 1992, publico Dos olhos, das mãos, dos dentes, livro que me parece ser o desvelo de um tema apenas esboçado em Interiores e Lhecídio, o do homoerotismo. Nesse trabalho, também, começo a perceber melhor a concepção de um livro como um todo: sua unidade ou sua homogeneidade temática. Continuam os aspectos que considero defeitos: o excesso de imagens que dificulta o “fôlego” dos versos, a falta de leveza de algumas soluções métricas, uma certa tendência para o hermetismo. A experiência com formas tradicionais, como o canto da andorinha, as janeiras e as redondilhas; com o reagrupamento estrófico e rímico dos catorze versos do soneto (que transformo em sete dísticos com rimas toantes em variada posição); com o haikai; com os detalhes concretistas (já ensaiados em Interiores) e a experiência com o tom paródico, jocoso e satírico, entre outras, dinamizam o livro monotemático.
Nesse livro, há os “Madrigais secos”, poemas em que começo a me aproximar, levemente, do que pretendo literariamente: uma linguagem mais precisa, imagens contidas, versos e estrofes mais breves, temas mais abertos, para além da região dos desejos e ideias especificamente homossexuais. Aqui cabe uma nota: claro está que escrever sobre a homossexualidade e tentar poetizar esse tema até hoje constrangedor para muitos e sensíveis leitores foi e é imprescindível; por outro lado, escrever sobre isso de modo predominante me preocupa. Receio restringir demais meus poemas.
Poemas do desconcerto, livro inédito, reúne textos ainda voltados para uma visão e uma vivência homossexuais, mas tratando já de matizes até então não tentados: a dúvida quanto ao não desejo pelo outro sexo, a experiência mística e a apreensão da morte, temas que constituem o desconcerto humano, seja qual for sua condição racial, religiosa, sexual e social.
Todos esses livros, devo talvez repisar o óbvio, se pautam pela experiência pessoal, sim. Mas tão transfigurada pela criação literária que dificilmente reconheço nos poemas os episódios que o engendraram, senão sua sombra ínfima, a nódoa em que se detecta o que Amylton de Almeida afirmava quase afetuosamente: não falamos senão de nós mesmos. Somos falados pelos poemas, sim. Mas na medida em que todos os homens, que se expressam, o são, em sua vivência sempre hesitante, entre um céu e outro, entre uma geografia e outra, entre uma ideia e outra, entre um corpo e outro corpo, mesmo ou díspar, amável, de todo modo.
[In Revista Você, SPDC/Ufes, n. 45, maio de 1997. Reprodução autorizada pelo autor e pelos editores da Revista.]
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Paulo Roberto Sodré, nascido em Vitória em 1962, é poeta, escritor, pesquisador e professor universitário de Literatura na Ufes, com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)