A loura entrou na delegacia num terninho de tecido metalizado, cor de azeitona, as sandálias de saltos pontiagudos percutindo no assoalho de tacos de peroba, toque-toque-toque. Tinha um rebolado pro lado, minha nossa Senhora, meu senhor São José, que o escrivão viu e não pôde fingir que não vira, pois lhe entrara pelos olhos que a terra haveria de comer.
“Você é Pedro?”, perguntou ela.
“Sente-se, por favor,” respondeu Pedro fazendo-se samaritano em carne e osso, mais carne do que osso.
Ela sentou e cruzou as pernas, deixando suspenso o pé de unhas bem feitas, pintadas de vermelho-rubro, oscilando na sandália de tiras prateadas.
Pedro acompanhou o movimento displicente do pé que ia e vinha e pensou, “minha Nossa Senhora, meu senhor São José, que pé!”
Pé de mulher era um dos fracos do escrivão. Especialista na matéria, sabia o quanto era difícil encontrar um pé de mulher primoroso. Vivia a contemplar discretamente os pés femininos, ou às vezes até abertamente quando a oportunidade favorecia a observação direta e tátil, com manipulações cosquentas. Tinha criado uma tabela de classificação para os pés femininos que ia do grosseiro-mal-acabado até o formoso-impecável, o FI cinco estrelas de sua classificação pessoal. Mas, pela primeira vez em sua vida, via diante de si, oscilando sob seus olhos em vaivens e vens-e-vais, no inadequado ambiente da delegacia da Chapot Presvot, o cinco-estrelas que até então lhe parecera um vago e idealizado objeto de desejo, mas que existia de fato, e que chegara na delegacia anunciando o próprio advento, toque-toque-toque, nos tacos de peroba do assoalho antigo.
Toque-toque, bateu Pedro com os dedos na mesa para se despregar do sonambulismo erótico em que flutuava, acordai que estais dormindo, neste sono em que estais, “pois não?”
“Venho apresentar uma queixa contra a minha manicure,” falou o pé, quase inaudível.
“Vamos a ele,” disse o escrivão com os olhos ainda cravados na perfeição oscilante.
“A ele?!…”, estranhou a loura, arregalando os olhos de mansinho.
“Quero dizer, à sua queixa,” corrigiu-se apressadamente quem apressadamente teve de se corrigir.
“Posso tirar a sandália?” perguntou ela.
Pedro não acreditou no que ouvira, ou será que não ouvira direito e estava ainda a navegar em vaguezas eróticas? Bateu de novo na mesa, toque e retoque, “como disse?”
“Para apresentar minha queixa eu preciso tirar a sandália e lhe mostrar o pé,” justificou-se a loura, na maior candura do mundo.
Não é possível que isso esteja acontecendo comigo, tornou a pensar o escrivão, mas o que respondeu foi “por favor, não faça cerimônia…!”
A loura inclinou então o corpo para frente, desafivelou com a mão bem cuidada a alça superior da sandália que envolvia o tornozelo do pé suspenso no ar e, com refinada elegância, puxou-a pelo salto pontiagudo.
“Posso colocar sobre a mesa?”
“Claro que pode,” respondeu Pedro, crendo que ela se referisse à sandália, mas ela ergueu com acrobática leveza a perna treinada nos malabarismos da academia de malhação e colocou o pé descalço bem diante dos óculos do escrivão.
Pedro passou a mão pelo queixo, olhou por cima dos óculos para um lado e o outro da sala, tranquilizou-se porque viu que estavam sozinhos, ele, ela e o pé agora desnudo sobre a sua mesa, pé ligeiramente cheiroso e ainda por cima coroado com uma correntinha de ouro no entorno da canela formosa, um FI inigualável de pele acetinada onde não se notava a menor variação de nuance da parte inferior ao calcanhar, do calcanhar ao tornozelo, pé irretocável em seu formato e tamanho, os dedos certinhos e belos convivendo em harmoniosa vizinhança comunitária, do pequeno polegar ao mindinho, do mindinho ao pequeno polegar – um, dois, três, quatro, cinco dedinhos iluminando a mesa de Pedro, as unhas ruborizadas e nobres que só faltavam sorrir.
O escrivão sabia que aquele nirvana não ia durar para sempre, logo a incrível miragem iria se esfumar de sua retina para ser apenas uma memória saudosa ao longo da vida. A custo dominou a respiração acelerada, assaltado por uma alucinante vontade de dizer para o pé parnasiano, mais do que parnasiano, pé bilaqueano que ele, Pedro, e a dona do pé irretorquível tinham tudo para iniciar um caso ali mesmo – o caso dos dez dedinhos –, os que estavam sobre a mesa e os que estavam na sandália do pé calçado, eram dez dedinhos formosos e palatáveis, daria Pedro, oh se daria!, o tangolomango neles com prazer datilofágico, primeiro um, e ficariam nove, depois outro, e ficariam oito, e assim um de cada vez e à sua vez cada um iria sendo tangolomangado pela gula e luxúria de Pedro, o Diabo que não se espantasse com esta gulodice refinada!
“Agora, observe a marquinha perto da unha do dedo mindinho,” disse a loura, chamando Pedro à realidade da Chapot Presvot, 272.
“Marquinha, que marquinha?” agitou-se o escrivão aproximando o máximo que pôde os olhos, e toda a cara incontida e ávida daquele pé sem igual.
“Não está conseguindo ver?” indagou a loura decepcionada.
A pergunta era uma provocação que punha em jogo a virilidade visual de Pedro, era um decifra-me ou me perdes para sempre se ele não visse o que a loura esperava que ele visse. Mas Pedro não via nada.
“Você não tem uma lente?” veio da senhora do pé impecável a frase em socorro de Pedro.
“Oh, meu Deus, claro que tenho,” lembrou-se o escrivão, abrindo açodadamente a gaveta da mesa e de lá tirando uma pequena lupa de filatelia que aproximou, numa abordagem de oculista, do dedo mindinho do pé exposto ao seu exame. Sentia-se um verdadeiro espião – e era.
“Consegue ver agora?” perguntou, provocativa, a senhora do pé formoso.
“Uma marca…?” indagou Pedro, com cacófato e tudo, ganhando fôlego e tempo enquanto escancarava as pupilas na busca desesperada do que fora desafiado a achar.
“É uma marquinha branquinha como se fosse um tracinho – um tracinho fininho,” orientou a loura, navegando em diminutivos.
Mas nem marquinha, nem tracinho fininho Pedro conseguia enxergar, apesar de limpar várias vezes, na franja da camisa já fora das calças, a lupa encardida.
“Você tem uma lupa maior?” insistiu a loura, risonha e sedutora.
“Digital tem!” quase gritou Pedro. “Digital é o nosso delegado. Eu vou na sala dele pegar mas, por favor, não saia daí, não saia em hipótese alguma!”
“Vai que eu espero,” garantiu a loura, sedutora e risonha.
Pedro já foi, já voltou, armado de uma lupa gigante.
“Puxa, esta é das grandes…” comentou a loura, assim meio que impressionada e maldosa.
“É tão grande que Digital a chama de lupanar,” concordou Pedro, o olho agrandalhado por de trás da lente espessa, a averiguar o que ainda não conseguira averiguar, ‘a marquinha branquinha’, onde está o diabo desta marquinha fininha como se fosse um tracinho, Satanás me acuda!… Ah, aqui está!”disse realizado e jubiloso.
“Viu?”
“Vi.”
“Ainda bem,” foi o comentário dela, e ambos riram em comemoração à vitória de Pedro, à demorada descoberta de Pedro, enquanto a loura mexia em cadência de marionetes os cinco dedinhos do pé sobre a mesa do escrivão, felizes e pianíssimos.
“E o que foi isso?” indagou Pedro, recuperando a formalidade de escrivão de polícia, depois que loura voltou a calçar a sandália pondo fim as amenidades da hora passada.
“Isso é o que me trás aqui. Ou seja: isso foi um corte que minha manicure deu no meu dedinho com o aparador de cutículas, razão da queixa que quero dar,” explicou num queixume a queixosa.
“Mas quase não se nota o cortinho…Você viu que eu tive muita dificuldade em achar.”
“Quase não se nota agora, mas, na época, deu uma baita infecção que me deixou três dias de cama. Tive até de tomar antibiótico,” defendeu-se a loura.
“Mas você tinha que ter dado queixa durante a infecção, para fazer a prova do fato, o corpo do delito. Agora não dá mais…”
“Eu pensei que pudesse esperar para ficar boazinha…”
“Infelizmente as coisas não se passam desse jeito. Nosso delegado, o dono da lupanar, costuma dizer que queixa tem hora certa, se não a razão vai embora, o que, segundo ele, é o princípio da perca de oportunidade.”
“Quer dizer que vou ficar no prejuízo?” perguntou a loura, fazendo-se tristonha.
“Você pode ingressar com uma ação de danos morais num juizado especial. Essas ações estão em moda, eu acho que você tem chance de conseguir uma reparação razoável pelo sofrimento que a manicure, ou melhor, a pedicure lhe causou. Mas não se esqueça de levar algumas testemunhas.”
“É a sua opinião…?”
“Sinceramente é.”
“Então vou seguir seu conselho,” disse a loura, despedindo-se do escrivão e retirando-se da delegacia no mesmo toque-toque da chegada, os dedinhos do pé jovialmente hospedados na sandália sexy, o terninho metalizado cor de azeitona vibrando em torno do corpo de obelisco, o rebolado pro lado, minha Nossa Senhora, meu senhor São José.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)