O Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa diz que puã é a fêmea dos siris. Acho muito luxo haver um nome para fêmea de siri. Na Bahia, segundo Von Ihering, puã é o nome de uma certa espécie de siri, o chamado siri-puã; mas aqui pelas costas do Estado do Rio e do Espírito Santo, puã quer dizer mesmo o que aprendi em minha infância: é a pinça do siri, ou do caranguejo, ou do camarão. Palavra certamente tupi, usada em minha terra, de brincadeira, até mesmo em relação a gente: “tira essa puã daí, que isso é meu”.
Lendo agora essa novela A oferta e o altar, de Renato Pacheco, que é uma espécie de retrato vivo de uma aldeia praieira capixaba na fronteira baiana, vejo que ali também puã é puã mesmo. Por sinal que aquela gente é fina no comer. Já tinham me contado em Conceição da Barra (da Barra do Rio São Mateus, no Espírito Santo) que ninguém se dava ao trabalho de comer siris ou caranguejos: só comia as puãs, aquela carninha limpa, feita só de músculos, que vem dentro das pinças. Aqui no livro fico sabendo que “dona Cecê é perita em puã de caranguejo” e a certa altura passa um menino que “vendia pastéis com recheio de puã de caranguejo esfiapado”.
A oferta e o altar, que apareceu este ano nas Edições GRD, é, creio eu, o primeiro romance capixaba escrito por um capixaba (antes tivemos Canaã, de Graça Aranha, e Cabocla, de Ribeiro Couto). Bacharel em Direito como os dois, Renato Pacheco é juiz, como foi o primeiro (o segundo, que morreu embaixador, na carreira jurídica não foi além de promotor), e além disso estudou Sociologia e Antropologia em São Paulo. A leitura de seu livro não apaixona mais porque ele não se prende bem a um caso individual; através das pessoas é a pequena Ponta d’Areia que vive sua vida humilde, amorosamente contada. Amorosamente, mas com um olho de sociólogo ou de repórter social.
A nossa modesta literatura capixaba se engrandece muito com este livro de excelente qualidade. E depois dele — francamente, mestre Aurélio! — não venham me dizer que puã é fêmea de siri…
[In Jornal do Brasil, 30/12/1964.]
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Rubem Braga, natural de Cachoeiro do Itapemirim, ES, nasceu em 1913. Iniciou seus estudos em sua cidade natal e mudou-se para Niterói, Rio de Janeiro, onde concluiu o ginásio no Colégio Salesiano. Foi escritor e jornalista, tornando-se famoso como cronista de jornais e revistas de grande circulação no país. Foi correspondente de guerra na Itália e Embaixador do Brasil em Marrocos. Faleceu em 1990.