Pedro chegou à delegacia p da vida, e bota p da vida nisso.
Dona Lenilda, que o viu entrar bufando até pelos tornozelos, seguiu-lhe caninamente os bufantes magros.
“Que que houve seu Pedrinho?” perguntou ao amigo.
“Uma melada nojenta,” respondeu o escrivão.
“Melada… por quê?”
“Porque o seu amigo aqui é um idiota sem tamanho. Comigo acontecem coisas que contadas ninguém acredita. Veja só. Eu saltei do meu carro com um convite para um lançamento de um livro que ocorreu na semana passada. Então, rasguei o convite em pedacinhos para jogar educadamente na lixeira pendurada no poste aí na frente da delegacia. Só que com os pedaços do convite joguei também a chave do carro.”
“Mas não é razão para o senhor ficar aborrecido, seu Pedrinho. Eu vou lá e tiro pro senhor. Basta enfiar a mão pelo buraco da lixeira e apanhar a chave”, disse Lenilda consolativa.
“Foi o que eu fiz, Lenilda, foi o que eu fiz! Mas para meu azar a chave caiu sobre um bagaço de pizza encharcado de ketchup. Veja como ficaram a minha mão e a chave do carro.” E Pedro estendeu para a faxineira a mão e a chave besuntadas de uma gosma pegajosa e avermelhada. “Não é para ficar p da vida?”
“O senhor tem razão, seu Pedrinho. Ainda mais porque quem jogou a pizza no lixo foi o doutor Digital.”
“DIGITAL?!” exclamou Pedro como se tivesse escorregado num tapete de tomate.
“Pelo menos foi o que ele contou, antes do senhor chegar,” esclareceu Lenilda. “Ele estava comendo um pedaço de pizza, comprado no boteco da esquina, aí desconfiou que não estava boa e jogou na lixeira.”
“Não acredito que isso tenha acontecido comigo!” lamentou-se Pedro, contemplando com asco redobrado a mão emporcalhada.
Antes que a prostração do escrivão se agravasse, Lenilda o conduziu até a cozinha da delegacia onde, samaritana, lavou as chaves do carro e lavou e enxaguou a mão do amigo com sabão de coco e álcool concentrado a 12°.
“Pronto, seu Pedrinho. Pode esquecer o caso. Nem parece que o senhor pegou a gosma que pegou. Sua mão está limpinha como sempre. E sabe que o senhor tem mãos bonitas, com dedos finos e unhas grandes?”
‘É pra te pegar, Lenilda!”, disse o escrivão ameaçando a amiga com as mãos em garra.
“Quem dera, seu Pedrinho, quem dera”, respondeu Lenilda embarcando na galhofa.
“Brincadeira à parte, obrigado, minha amiga, pela lavação e louvação das minhas mãos. Tinha que ser você para resolver as minhas trapalhadas.” E Pedro já estava se preparando para pegar no batente quando Lenilda o deteve.
“Não me leve a mal, seu Pedrinho, mas eu queria lhe fazer um pedido. Será que o senhor me atende antes de começar a trabalhar?”
“Minha querida, um pedido seu é uma ordem, sobretudo depois do favor que você me prestou, lavando a minha mão e a minha alma. Peça o que quiser.”
“Eu queria, seu Pedrinho, que o senhor fizesse um requerimento para eu entregar a um dentista,” disse a faxineira meio encabulada.
“O que você quer requerer?” indagou Pedro surpreso com o pedido.
“Vou requerer pra mim ser uma voluntária no teste das escovas…” disse Lenilda mais encabulada ainda.
“Que história é esta de teste das escovas?” estranhou o escrivão.
“É o seguinte, seu Pedrinho… Mas o senhor não vai rir do que eu vou dizer. Eu fiquei sabendo, no posto de saúde do meu bairro, que a faculdade de Odontologia está aceitando voluntárias para um teste de três meses pra ver se as escovas elétricas escovam melhor do que as escovas comuns… e eu quero entrar no teste,” explicou Lenilda.
“Qual a vantagem de participar do teste?” perguntou Pedro começando a se interessar pelo interesse da faxineira.
“Porque junto com as escovas a gente ganha de graça uma limpeza geral nos dentes.”
“Só isso?”
“Já é muito, seu Pedrinho, pra quem tem dificuldade de cuidar dos dentes no dentista.”
“Até aí deu para eu entender, minha amiga. Mas por que precisa do requerimento?” perguntou o escrivão que ainda não dispunha de todos os dados para aquilatar a profundidade do problema de Lenilda.
“É porque só pode ser voluntária quem tem mais de 60 anos, como eu tenho, mas tem que ter pelo menos doze dentes, e eu só tenho onze… Então achei que com um requerimento bem escrito, feito pelo senhor, eu podia ter uma chance de entrar no teste…”
Para disfarçar a vontade de dar uma risada Pedro sacou do maço o primeiro cigarro que lhe veio aos dedos e prontamente o enfiou na boca, o que redundou numa tragada cavernosa. Feito o quê, falou:
“Não seja por isso, Lenilda. Faço o seu requerimento com a maior satisfação. Mas não posso garantir que vai dar certo.”
“Se não der, não tem importância porque eu estou sabendo que no ano que vem a faculdade vai repetir o teste com quem tem pelo menos dez dentes. Aí eu entro nele. Só que eu queria fazer logo agora.”
“Então vamos ao nosso requerimento,” disse Pedro encaminhando-se com Lenilda para a sua sala de trabalho.
“Por falar em nosso requerimento, por que o senhor não aproveita e faz também o teste? Seus dentes estão precisando de uma boa limpeza, de tanto que o senhor fuma… E banguela como eu o senhor não é…” disse a faxineira querendo convencer o escrivão a imitá-la.
“Obrigado pela sugestão, minha querida. Mas prefiro ficar no seu requerimento,” frisou Pedro rindo.
“Está bem, seu Pedrinho. Mas tem outra coisa que preciso lhe dizer: eu não quero que o senhor pense que estou trocando o pedido de limpeza dos meus dentes pela limpeza que eu fiz da sua mão,” advertiu Lenilda cheia de dignidade.
“Fique descansada, minha cara, porque eu jamais pensaria uma coisa dessas,” disse Pedro vendo brotar na boca da faxineira um sorriso de felicidade que escancarou seus onze dentes remanescentes aos olhos do escrivão, ou, se preferirem a informação em numeração odontológica, escancarou os dentes 13, 12, 11, 21, 22 e 23, da arcada superior, e os 43, 42, 31, 32 e 33, da arcada debaixo. Que, aliás, aos olhos de Pedro não pareceram necessitados de escovas comuns ou elétricas… Mas isso ele não disse, só pensou, enquanto começava a digitar no computador:
“Eu, Lenilda do Amaral e Souza, abaixo assinada, tendo tido conhecimento de que…”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)