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Uruguai

Uma das vantagens de uma visita ao Uruguai é que a dor pela perda da Copa do Mundo de 50 passa a doer menos. Aqui de longe, do Brasil, mesmo patrícios que não eram nascidos naquele tempo também sofrem pela “tragédia de julho” e exibem idéias pouco amistosas quanto aos vizinhos da velha Cisplatina. Locutores esportivos costumam também alimentar a rixa. Uruguaios? Jogadores catimbeiros, cheios de más intenções contra nossos corretíssimos rapazes. Uruguai? Sei não, povo meio introspectivo, um tanto agressivo, criador de gado e de casos. Enfim, todas as generalizações que se costumam fazer quando existe má-vontade prévia.

Mas agora é ele que está chegando ao Uruguai. Esse aqui é o aeroporto principal do país? Humm. Esse táxi velho com jeito do tempo do gasogênio… Sei não. Apesar de tudo, depois de triques e troques ele chega ao hotel. Pela janela, vê a praça com a estátua do indefectível “libertador”, presente em todas as plazas de Latino América, devidamente montado num cavalo, espada em riste, trinchando um inimigo invisível. “Libertador de quê?” — rumina o velho frustrado da Copa de 50. “Grandes coisas.” Quem não tem seu “libertador”? Resta saber quem “libertou” mais. Mas é melhor não ir por aí porque podem começar novas frustrações. Vamos descer para sentir o clima da cidade de Montevidéu.

E então, logo ao descer do hotel, o primeiro estabelecimento que encontra é uma grande “lechería”. Na época, lugar indispensável para confortar sua úlcera.

Antigamente, no Rio, havia as “leitarias”. Não leiterias mas leitarias. O detalhe é que as leitarias cariocas pareciam habitadas também pelas senhoras vacas e suas circunstâncias. Devido a uma desagradável coincidência, em quase todo o tempo em que ficava nelas para tomar seu copo de leite havia um exército de empregados jogando toneladas de água pelo chão, escovas e escovões sendo acionados em meio a gritarias expressas num dialeto vacum que lhe era desconhecido. Bem, mas a que vem toda essa conversa sobre o leite e seus estabelecimentos cariocas? Em primeiro lugar pela aura de estupidez que afeta alguns viajantes em seu contato inicial com a cidade desconhecida e, depois, pelo choque que a “lechería” lhe produziu. Um choque a favor. As vacas pareciam ter ficado no lugar que lhes competia, o pasto, porque o estabelecimento leiteiro era limpíssimo, pintado de nuvens brancas. As mocinhas que vieram servi-lo, todas de branquinho, trouxeram um leite bom que fez sua úlcera urrar de prazer. Em seguida, para seu alívio, a úlcera caiu no sono. Saiu do estabelecimento leiteiro com a alma cheia de expectativas.

Percebeu que o táxi que o trouxe do aeroporto estava longe de ser uma exceção. Muitos carros velhos pelas ruas. Remendados e quase todos com remendos, digamos, prendados, tentando esconder a crua realidade que os anos cavavam em suas carroçarias. Andavam devagar mas — e aqui a primeira surpresa — quando o viram na calçada, adivinharam que ele queria passar para o outro lado e, sem que existisse faixa ou sinal, pararam para que ele atravessasse a rua. Isso foi também um choque. Agora as coisas melhoraram um pouco por aqui mas, naquele tempo, quando alguém se atrevia a cruzar uma rua desse jeito, se o carro não conseguisse faturar mais uma vítima, ou melhor, mais uma estrela cravada na lataria, seria brindado com a expressão clássica “Sai da frente fdp”.

Lembrou do gasogênio? Certo. Pura atmosfera Segunda Guerra Mundial e isso já tornava Montevidéu uma cidade contemporânea de um tempo que, para os de sua geração, produzia a capa de uma adolescência marcada por uma traumática experiência comum. Para dar consistência ao quadro: estava agora num bar, na praia de Pocitos, conversando com um casal de uruguaios. Tomavam uma cerveja quente, à inglesa, e a claridade das águas do rio da Prata os ofuscava. O uruguaio apontou para um lugar impreciso do estuário e disse que os destroços do Graf Spee estavam afundados por ali.

Graf Spee?

Além da participação da FEB no próprio teatro de operações, do afundamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães semeados desde o Caribe até o Atlântico Sul, e da base de Natal, existe a tendência de ver-se a Segunda Guerra como algo distante. Portanto, essa ideia do afundamento do Graf Spee surgida nessa tarde platina, com alguém apontando um dedo e dizendo “ali”, foi uma surpresa. E vão surgindo outros nomes como os dos cruzadores Exeter, Ajax e Achilles, do hábil comodoro inglês Harwood, participantes da Batalha do Rio da Prata e, afinal, o suicídio do derrotado capitão alemão Langsdorff.

Os de sua geração sabem como esses acontecimentos pavimentam o chão de lembranças de dias sombrios agora embrulhados num pacote com a etiqueta “história” mas que, naquele momento, se projetavam na tarde que caía na praia de Pocitos. Enfim, só o fato de estar próximo de um vero “teatro de operações” da Segunda Guerra, o que então lhe acontecia pela primeira vez, já dava ao Uruguai uma dimensão que passava bem longe de país dos jogadores catimbeiros. E a mulher do amigo uruguaio relembra detalhes: depois do primeiro dia de batalha, o Spee, ferido, veio até o porto de Montevidéu. Quatro dias depois, seguindo ordens do próprio Hitler, o Graf Spee tentou fugir para se abrigar em Buenos Aires. Os navios ingleses à espreita. Poucas horas após sair do porto de Montevidéu, o próprio Langsdorff ordenou sua destruição.

De repente, é noite em Pocitos. Logo depois, a luz se apaga e o amigo diz que hoje é dia de racionamento de luz naquele trecho da capital. Surgem velas e lampiões e o clima de guerra, de blecaute, se instala de vez no bar. Eles parecem fantasmas de si próprios e, por isso, falam de coisas muito antigas. Ninguém menos que Xenofonte apareceu numa citação do amigo uruguaio tirada do Anábase.

No meio da conversa, misturado com as figuras estranhas e as brasas dos cigarros que povoavam a penumbra, apareceu um garoto com um carrinho de rolimã. Ele o colocou num local apropriado e dali despencou por uma ladeira cujo final não se podia ver por causa da escuridão. O garotinho repetiu a proeza por algumas vezes No fim, ofegante, balbuciou palavras misteriosas :”Dios e infierno” e, misterioso como chegou, colocou o carrinho de rolimã debaixo do braço e se foi. Também eles resolveram ir embora.

No dia seguinte, um convite irrecusável. Pediam que fizesse a gentileza de comparecer a um almoço numa escola de enologia. Como? Sim, uma escola que funciona nos arredores de Montevidéu. Gentileza? Com todo e o máximo prazer — pensou.

Durante o almoço, confirma-se o dito: “vinho não gosta de viajar, é sedentário”. Confirma-se. Ali, posto em calma, vindo diretamente dos barris de carvalho das adegas da escola para a mesa de almoço, pode ser que o Luiz Flores ou o primo Máximo não concordem, mas ficou a impressão que mesmo o lendário Amarone não seria páreo para aquele generoso vinho que entrou no coração da alma e o fez erguer um brinde a esta sugestiva e surpreendentemente agradável cidade de Montevidéu. Um brinde a sua gente civilizada, à capital de um país que é mais, muito mais que a pátria do Obdúlio Varela, nosso pretenso carrasco naquele campeonato do mundo de 50. Um país que exibe cicatrizes da Segunda Guerra e, por isso, é contemporâneo dessa dor universal, mas que também sabe construir um clima de elegância em meio a dificuldades. Por essas e outras boas razões, salute Uruguai.

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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