Vasco Fernandes Coutinho (pai) veio como fidalgo da Corte Portuguesa. Era ele um herói lusitano, senhor dos mares e bravo soldado do Rei nas conquistas da África e da Ásia, pelo que recebeu título de fidalguia com direito a brasão, tensa, casa em Alenquer (Portugal) e merecedor de uma das 15 capitanias hereditárias nas terras do Brasil. A décima primeira foi a que lhe deu o Rei D. João III através do Foral assinado em 1534. Vasco Coutinho além de herói revelou-se competente navegador quando saiu de Lisboa com cerca de sessenta homens a bordo de sua caravela, atravessou o grande oceano e aqui chegou sem ter formado frota. Poucos anos depois, praticamente só, com a mesma nau voltou ao reino em busca de ajuda ou a procura de um sócio disposto a compartilhar do projeto de conquista do solo da América.
Quis o destino escolhe-lo como viga mestra da complicada estratégia de colonização do Brasil pois, coube a ele trazer para os ermos do Novo Mundo cerca de sessenta homens em degredo para que aqui ajudassem na colonização do solo e morressem de morte natural. Esses eram na maioria vagabundos, ladrões e marginais que perambulavam nas ruas de Lisboa, entre os quais Dom João III incluiu dois nobres; Dom Jorge de Menezes e Dom Simão Castelo Branco.
Situação semelhante à de Vasco Coutinho sofreu Pero de Góis quando veio em 1549 com o Primeiro Governador Geral Thomé de Souza. Ao assumir seu lote localizado no norte fluminense viu-se numa planície totalmente ocupada pelas tribos Goitacás, citada depois como região de Campos dos Goitacás, (hoje cidade Campos), que lhe coube colonizar com um bando de homens, também destinados ao degredo. Vendo-se só e sem recursos suficientes, abdicou de tudo e retirou-se para Lisboa. Afirma Basílio Carvalho Daemon à pagina 83 que sua capitania foi incorporada à Coroa no ano de 1751. Idêntico destino sofreram outros donatários. Entretanto, o mesmo tratamento não foi dado aos Capitães da Bahia, Pernambuco, Rio de janeiro e São Vicente a cujos lotes chegaram seus donatários com o apoio do combalido tesouro português e para onde trouxeram como colonos: artífices, operários, lavradores afeitos ao amanho da terra, sacerdotes, artesãos além do direito de escolher o próprio lote como foi o caso de Martim Afonso de Souza e seu irmão Pero Lopes de Souza.
Esses fatos mostraram os evidentes sinais de fragilidade da Corte no plano de colonização do solo conquistado. Mesmo assim a coragem e o espírito aventureiro de Vasco Coutinho não deixaram que se apagasse a chama da esperança de conquistar a riqueza sonhada. Tanto isso é verdade que a própria história revelou para espanto dos leitores a “desmedida ambição” do donatário do Capitania do Espírito Santo por querer, a qualquer custo, “erguer nesta parte da América um novo império até conquistar independência de Portugal”. Todavia esse exagero não passou de calúnia contra Vasco Coutinho quando seu desafeto procurou intriga-lo com o Rei. Fosse isso verdadeiro, a própria divisão do Brasil em capitanias hereditárias teria alcançado êxito retumbante e a Coroa teria mostrado ao mundo a força e a eficiência dos Capitães escolhidos, como também não teria sido necessária a nomeação de um só Governador Geral para a colônia brasileira. Na verdade o que se viu em cada feudo foi sofrimento e sacrifício na vida de todos, tanto pela falta de recursos, pelas grandes distâncias entre os povoados, pelas dificuldades para transpor cordilheiras imensas, pelo profundo choque cultural como também pelo possível engano do próprio Rei quando resolveu fazer da colônia local de homizio da escória humana que crescia na periferia da Corte. Podemos dizer que Vasco Coutinho foi um capitão que lutou enquanto pôde, qual atlante que sustentou nos ombros sessenta vilões incapazes, até que um dia emudeceu e sofreu só depois de descobrir que não trouxera braços para o trabalho, muito menos com quem trocar idéias ou conversar. Por isso, em duas oportunidades, lançou-se ao mar e partiu em busca de ajuda ou de quem quisesse compartilhar do seu projeto de colonização. Tudo tentou mas não obtendo êxito, voltou só. Cansado, a idade avançando, a fadiga e a tensão constante curvaram o dorso desse gigante. Na trajetória de sua luta acabou sendo colhido por inesperado acontecimento causado por quem deveria ser o mais digno representante da Igreja Católica no Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, o prelado cuja debilidade não condizia com o posto de representante do Sumo Pontífice pois era conhecido como homem mau, rancoroso, criou sérios embaraços ao trabalho de catequese adotado pelos jesuítas porque procuravam usar alguns costumes indígenas como a música, os adereços e a dança de modo a obter facilidades de aproximação e compreensão da crença católica do conquistador. Ainda assim, qual avarento incorrigível, preferia continuar aplicando multas aos fiéis em pecado e não a penitência ou conduzia o excomungado para o caminho fácil da reconciliação mediante pagamento em dinheiro além de fomentador de discórdia entre as ovelhas do próprio rebanho, ao ponto de ter tido entre os desafetos o próprio Segundo Governador Geral, Dom Duarte da Costa.
Por infeliz coincidência, estando D. Pero Fernandes Sardinha a serviço do apostolado na capitania de Pernambuco onde, no Domingo, celebrava missa, lá apareceu o Capitão do Espírito Santo, Vasco Coutinho, onde fora em busca de sugestões e ajuda do velho amigo desde as conquistas na África e na Ásia, o donatário Duarte Coelho e, como temente a Deus, não deixou escapar a oportunidade de buscar consolo na santa celebração. Ao ver entrar no templo o donatário do Espírito Santo cansado, alquebrado e visivelmente doente o imperdoável Primaz o apontou como viciado por “beber fumo” e por conviver com más companhias. Em razão disso, diante dos presentes excomungou-o e expulsou-o da igreja. O Capitão Vasco abaixou a cabeça e recebeu a ofensa quase morto de vergonha. Sentiu o golpe profundo daquele ato de desumanidade imposto por quem deveria ser generoso em exemplos de paciência e perdão entre os homens. Vasco não balbuciou uma só palavra, a surpresa da ofensa em público o feriu com golpe mortal qual lança que atinge o coração do guerreiro, reuniu as forças que ainda lhe restavam, levantou-se e se retirou. Encerrou-se na sua propriedade, a Fazenda da Costa em Vila Velha, onde sofreu até seus últimos dias.
Diante de fato como este o historiador atento tem dificuldade de imaginar o tamanho do castigo que o Bispo Fernandes Sardinha aplicaria aos Incas, povo da elevada cultura pré-colombiana que cultivava o tabaco entre as plantações de milho e feijão.
No primeiro livro da História do Brasil tudo isso foi narrado pelo autor Frei Vicente do Salvador empregando palavras de efeito com objetivo de impressionar os leitores, historiadores e comentaristas da época e, pelo visto, conseguiu atingir seu objetivo pois que, suas citações exageradas são repetidas ainda hoje.
Podemos dizer que o quotidiano de Vasco Fernandes Coutinho no solo do Espírito Santo constituiu-se numa das maiores epopeias vividas no tempo do Brasil colonial. O episódio da sua excomunhão constituiu-se em absurdo de tal proporção que nos leva a acreditar ter sido feita a justiça divina quando o Bispo foi salvo de um naufrágio para ser devorado pelos caetés em junho de 1565. Vasco Coutinho faleceu pouco antes, em 1561, privado de tudo que pretendeu realizar ou seja, construir uma capitania cuja grandeza ajudasse mostrar ao mundo a força do seu pequenino Portugal.
Por fim, pode nosso imaginário nos revelar o quanto trabalhou e amargou esse pobre Capitão entre a ralé que o Rei de Portugal um dia despejou na sua caravela.
A tradição de Vila Velha guarda numa pequenina rua o nome do primeiro donatário como uma débil reverência ao primeiro grande homem do Estado do Espírito Santo. Podemos dizer que o povo capixaba é guardião de uma dívida de justiça por não cultuar seu vulto de herói. Por que não homenageá-lo erguendo a mais bonita estátua na principal praça da capital do nosso estado? Especialmente a cidade de Vila Velha, que tendo sido o berço da nossa colonização foi também a cidade que adotou como sua e onde residiu até o último dia de sua vida.
[SANTOS, Jair. Falando de Vila Velha. Vila Velha, 2002. Reprodução autorizada pelo autor.]
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Jair Santos é arquiteto e professor aposentado, natural de Alegre, ES, autor dos livros Vila Velha, onde começou o Estado do Espírito Santo e A igrejinha do Rosário.