“Tanta delegacia no mundo e ela vem baixar logo aqui,” pensou Pedro vendo-a sentada diante da mesinha da máquina, divinizada pela luz de maio que banhava a sala. Entretida na leitura de Caras, ela só notou a presença do escrivão quando este encostou ao seu lado.
“Pedro?!… eu não sabia…” surpreendeu-se, num descontrole agitado.
“Que eu trabalhava aqui?”
“Juro que…”
“Não jure… Uma vez você jurou e não cumpriu. Talvez porque não tivesse jurado pela santa cruz do Redentor pra ter valor a sua jura… Ou talvez porque fizesse figa com os dedos da mão esquerda, a mão do Torto.”
“Com toda esta amargura, você nunca entenderá as minhas razões… a pressão de papai… o ambiente dentro de casa. Foi muito difícil para mim, acredite… e nós éramos muito jovens, lembra-se?”
“Diante dessas desculpas, se minha Olivetti fosse um piano, eu bancaria o Sam e tocaria “As time goes by”.
“Você ainda se lembra da canção?”
“Nem Bogart esqueceu-se dela… Às vezes eu a assovio no chuveiro, enquanto ensabôo as más lembranças…”
“…O mundo sempre acolherá os amantes, enquanto o tempo passa…” cantarolou ela, num pianíssimo de alcova.
“Passou depressa para nós e esfumou-se num fim indesejável…” recordou-se ele.
“Papai me obrigou a deixar Calçado.”
“Seu Fritz e seu jeitão de coronel da Gestapo!”
“Nunca mais voltei lá.”
“Você só perdeu o coreto da pracinha…”
“E as mariolas de dona Zita… Ah, dona Zita! Elas nos pegou no banco do jardim,” relembrou ela, ruborizando-se.
“Nunca mais compramos suas mariolas…” acrescentou ele, dando a impressão de que lhe havia piscado o olho direito.
“Lembra do banco?” provocou ela, dando a impressão de que lhe piscara o olho esquerdo.
“Como ia esquecer? Tinha escrito Casas Pernambucanas no encosto…”
“Você não presta mesmo… Não estou falando do encosto, mas do assento.”
“Era duríssimo…”
“Poucas vezes notamos essa dureza… Quando notávamos, queríamos fugir para Lisboa… Calçado era pequena demais para nós dois.”
“Você escolheu Lisboa com o atlas aberto em suas coxas,” disse ele, o olhar em lusco-fusco erótico.
“Você também gostava de vê-lo.”
“E de vê-las… Nunca pensei que me escapassem como peixes.”
“A verdade é que escolhi Lisboa porque me parecia o nome de uma flor…”
“Pra mim soava como uma espécie de repolho.”
“Você só me diz isso agora.”
“Não queria chocá-la antes.”
“Debaixo de sua capa de cinismo, você não passa de um romântico,” disse ela, desnudando Pedro.
“Mudei muito.”
“Ficou mais romântico?”
“Fiquei menos cínico.”
“Nesse caso, prefiro o Pedro dos tempos das mariolas,” fingiu ela uma decepção que não lhe ia n’alma.
“Crianças fomos, como tal, tu louca de amores foste e eu, louco, te imitava…,” invocou ele Guimarães Passos.
“…então pelos teus olhos eu me olhava e tu falavas pela minha boca,” completou ela a estrofe que muitas vezes recitaram juntos.
“Esqueçamos passadas fantasias…,” cortou Pedro o dueto poético em que resvalaram, oferecendo-lhe um cigarro que, com uma sacudidela destra, fez emergir na boca do maço.
“Obrigada, mas não fumo há anos. Meu marido… eu me casei, sabia…, tanto fez que larguei o vício em que você me iniciou.”
“Eu a iniciei, e ele a curou. Perdi mais uma vez.”
“Em compensação, houve outras iniciações…”
“Em Fernando Pessoa, por exemplo.”
“E Dostoiévski…que eu dizia apreciar para não desapontar você.”
“Fingia também que gostava de Eça?”
“De Eça sempre gostei. Ainda me recordo da dedicatória de A Cidade e as Serras que você escreveu. Quer que a repita?”
“A esta altura é despiciendo…”
“Você continua tão intelectual! Só um intelectual seria capaz de usar despiciendo numa conversa como a nossa.”
“Ser intelectual é um mau hábito em que me aperfeiçoei. Já sou escrivão de polícia…”
“Me disseram que você também escreve livros.”
“Não os considere liiiivros em escala portentosa. São mal traçadas linhas das horas de insônia.”
“Duvido que não sejam bons.”
“Acredite em mim, pelo menos desta vez… Mas o que você veio fazer aqui?”
“Roubaram meu passaporte…” justificou-se ela.
“Passaporte é com a polícia federal…”
“E esta o que é?”
“Polícia civil, que eu chamo de incivil.”
“Não consigo entender a diferença…” declarou ela num muxoxo.
“Não vale a pena… Você vai usar o passaporte pra quê?”
“Para voltar a Lisboa. Abri ali uma loja de produtos esotéricos.”
“Sempre Lisboa… Lisboa revisitada, nunca de mim conhecida!” declamou Pedro o verso que compôs na hora.
“No sentido comercial, não tenho do que me queixar…” confessou ela.
“E no sentido sentimental?” cutucou ele.
“Pelo que houve entre nós não preciso responder à sua pergunta.”
“Então faço outra: em sua loja você vende Paulo Coelho?”
“Acho Paulo Coelho um enganador. Mas vendo muito.”
“Vender Paulo Coelho em loja esotérica é cultuar a hipocrisia sob o pálio do incenso… Sem querer ofender…”
“Você não me ofende, Pedro. Mas vê se consegue resolver o meu problema. Preciso uma segunda via do passaporte…”
“Vamos dar um jeito nisso.”
Pegou o telefone e ligou para um amigo, na Polícia Federal. Fez o pedido, conseguiu o apoio desejado e colocou-a a par de quem devia procurar.
“Não há mais nada que possamos fazer um pelo outro?” perguntou ela, relutando em partir.
“Fizemos antes e nos machucamos,” respondeu ele.
“Naquele tempo, éramos estouvados e ingênuos. Ainda não tínhamos calibrado nossas emoções.”
Aquele calibrado nossas emoções fê-la esplender madura e desejável aos olhos de Pedro que quase precipitou-se para lhe dar um ósculo. Mas apenas quase, nada mais que quase, um quase que recebeu uma freada brusca em boa hora.
Ela o reinquiriu, promissora: “Você não quer o endereço da minha loja? Quem sabe, um dia?”
“Lisboa é muito longe e não sei se tem minha água-mineral preferida.”
“Mas nós íamos fugir pra lá…”
“Então Lisboa era mais perto e eu gostava de refresco de groselha…”
“Não seja turrão, Pedro. Longe é um lugar que não existe e ainda não vimos o fim da história. Anote meu endereço.”
“E o seu marido?”
“Ele leva a vantagem de ser o meu marido.”
“Já que você insiste, escreva seu endereço no meu talão de cheques. Talvez me anime a comprar uns euros…” disse ele passando-lhe o talonário.
“Compre sim. E apareça. Pode ser o recomeço de uma bela amizade,” comentou ela, detendo-se para observar a foto da catedral de Vitória, que ilustrava o talonário, feita por Humberto Capai. No verso da capa, onde procurou um espaço para escrever, leu a legenda: “Catedral — Ergue-se a Catedral de Vitória no sítio histórico onde a cidade nasceu. Substitui ali a primitiva matriz, de linhas coloniais e recatada modéstia, demolida em 1918. Com suas torres pontiagudas, vitrais coloridos e a nave em forma de cruz, a nova matriz inspira-se na catedral de Colônia, Alemanha. Mas faz questão de ser capixaba, nesta nossa pátria, o Espírito Santo.” Seguia-se o nome do autor da obra-prima.
“Quem é Luiz Guilherme?”, perguntou ela não muito interessada.
“Um escritor capixaba,” respondeu Pedro.
“Ah..!”
“O que significa este ah?” reagiu ele.
“É apenas um ah despiciendo. Tenho certeza que, como escritor, ele não chega a seus pés.”
“Agora sou eu que digo ah,” disse Pedro, escancarando a boca, enquanto ela escrevia o endereço junto à legenda da catedral.
“O céu e o inferno lado a lado,” pensou Pedro, admirando-lhe os dedos longos e belos.
“Pronto, agora você já pode me visitar.”
“Vou pensar no seu caso,” prometeu o escrivão.
“Então, até breve!”
Quando ela saía, dona Lenilda, a faxineira, entrava na sala para servir um cafezinho ao escrivão. Depois de passar pela mulher, disse para o amigo:
“Aí tem coisa, seu Pedrinho!”
“Teve, Lenilda, teve,” retrucou ele, de xícara na mão, cigarro pendente do beiço e olhar nostálgico como se cravado num retrovisor.
Ou como se visse Lisboa a distância.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)