Naquela tarde —
Não. Comecemos pela Prof. Álvara Fragosa.
Dois quase exatos anos atrás, a professora Álvara Maria Fragosa[ 1 ] defendeu tese de doutorado na Universidade de São Paulo, diante de uma banca de medalhões da Crítica Literária Nacional. A tese ostentava o título de A fantasmalização do morto em espectro e o silêncio intervalar, diferido no espacitempo, informado como sintaxe dos indecidíveis derridianos por meio de marcas iterativas no âmbito de um glossário intertextual, com base em obras de Luciano de Samósata, William Shakespeare, Machado de Assis e William Burroughs e, título por título, um título como esse, por si só, já deveria ser suficiente para dar a alguém o título de doutor. Ao final da séance (que durou quatro horas) a professora se viu aplaudida de pé pelos quatro medalhões que compunham a banca e pelos cinco gatos pingados que compunham a platéia, aplauso que a levou a tão vulcânica erupção de soluços e lágrimas que deu origem a nova catadupa de palmas e pôs em moção um círculo vicioso: quanto mais chorava ela, tanto mais aplaudiam os circunstantes, de modo que já não saberia dizer quem porventura entrasse naquele momento se o aplauso se destinava à brilhante defesa de tese ou ao sísmico epílogo de lágrimas. Seja como for, esse, segundo confessou depois a já então doutora Dra. Álvara a uma amiga aqui em Vitória, foi o melhor e o mais feliz choro de toda a sua vida.[ 2 ]
Aprovada summa cum laude, a Dra. Álvara Fragosa zarpou a bordo do seu próprio Entusiasmo rumo à publicação da obra. A tanto, apesar de sua congênita modéstia, foi convencida pelos quatro cavaleiros da néo-nova crítica no jantar que a eles ofereceu após a defesa.[ 3 ] Pois a súmula da conversa desse jantar foi esta e só esta: que empreendimento intelectual de tamanha envergadura como A fantasmalização tinha de ser devidamente divulgado entre todos os estudiosos de crítica literária do país.
Isso fora dois anos antes. De volta a Vitória, fiel à confiança nela depositada pelos olímpicos medalhões, a Dra. Álvara enviou cópias da tese (quatrocentas páginas em entrelinha dupla) a dezesseis editoras, inclusive à da USP, e a treze medalhões que a pudessem apadrinhar com uma só palavra ao pé de um ouvido editorial ou até mesmo com o laurel de um bem aplicado prefácio. Nessa brincadeira gastou uma pequena fortuna, seja pra produzir as vinte e nove cópias xerográficas (a R$ 0,06 a página, preço especial pra documentos acima de cinqüenta páginas), seja pra remeter os vinte e nove pacotes via Sedex (a R$ 19,80 o pacote), mas pouquíssimo ou nada conseguiu de concreto além de três ou quatro mensagens eletrônicas acusando recebimento do material e prometendo leitura em breve. Numa das mensagens, assinada por um velho medalhão de Santa Catarina, o nome da professora doutora aparecia como Alvará Fragosa.
A Dra. Álvara, porém, não se permitiu esquecer o seu sonho. Ou melhor, seus bons colegas, que torciam todos contra ela, isto é, a favor de seu fracasso, é que não permitiram que esquecesse, cobrando-lhe notícias e relatórios do andamento da edição no momento do cafezinho de cada dia na sala nossa dos professores. Decidiu, portanto, dar uma banana (a expressão é minha e não dela) aos dezesseis insensíveis editores e aos treze relutantes padrinhos e custear ela mesma uma edição caprichada em Vitória, certa de que, uma vez impressa a obra, viriam — não pra ela, que era doce e humilde, mas pra tese dela, que não era nem uma coisa nem outra — a glória e o desagravo. Uma grande editora, sonhava, poderá mesmo interessar-se em fabricar uma segunda edição, e nesses momentos de sonho franzia o cenho e prometia-se que a nenhuma das dezesseis casas a cuja porta batera em vão a nenhuma delas daria o gostinho de publicar sua obra-prima.
Assim foi que a Dra. Álvara caiu nas mãos melhores impossível de Djalma Smee, da Bico de Lacre Editores. Ele a impressionou à primeira vista pela figura forte e varonil, pelo perfume de loção após barba, pelo terno de microfibra, pela voz de barítono (que, junto com sua figura, a fez lembrar do ator Howard Keel), pela beijoca que depositou nas costas da mão dela, pelas palavras de confiança e serenidade, pelas baforadas de charuto (que pediu licença pra acender) e por um esporro homérico que despejou, via telefone, sobre um sujeito que tratou por Perereca,[ 4 ] e que, pela conversa, nada tinha a ver com nada de bibliográfico mas sim com mecânica de automóveis. Impressionou-a, portanto, por tanta coisa que ela relevou (coisa difícil numa professora da área de Letras) os barbarismos cariocas que pontuam o discurso dele.[ 5 ]
A Dra. Álvara saiu da Bico de Lacre com Djalma Smee na cabeça e no coração, e com cheiro de tabaco no cabelo. Estava segura de ter confiado seu tesouro intelectual ao editor mais que certo, e ainda levava de lambujem, pra casa e pra cama, a fantasia de um possível, nunca se sabe, relacionamento amoroso com um homem que era, na cara e na voz, o próprio sósia de Howard Keel. Ressalve-se que esse meigo xodó pelo ator não significa que ela tivesse idade pra ter visto os filmes dele no cinema, pois nessa época (primeira metade dos anos cinqüenta) nem tinha sequer pensado em nascer. Vira-os, mas sim, em vídeo, retirados da seção de clássicos da locadora, porque uma de suas muitas paixões eram os românticos musicais da Metro (outra eram alcachofras empanadas). E, com a cabeça cheia de Djalma Smee como estava, na volta pra casa passou na sua locadora, a Videologia, ali mesmo em Santa Lúcia, o seu bairro, e, meio excitada, meio constrangida, locou uma cópia de Ardida como pimenta.[ 6 ]
A história da Dra. Álvara Fragosa, com alcachofras e tudo, já vai extensa demais. Cumpre dizer apenas que tal era a confiança dela em seu editor adquirido que, apesar do bruto susto telefônico que levou no dia seguinte ao inteirar-se do orçamento pra publicação de seu livro com o selo do passarinho de bico vermelho, logo se recuperou e, com voz firme, como se estivesse casando com aquele orçamento, disse a Djalma Smee que sim.
A Dra. Álvara não era rica; quarenta e cinco anos, divorciada (ainda que sem filhos), sujeita a pagar uma pensão alimentícia ao marido (que, no mercado informal, ganhava mais que ela), vivia do emprego que tinha na Ufes, e a publicação do livro lhe custaria o equivalente a cinco meses de salário. Aceitou o assalto, como tudo na vida, em confiança, fez um empréstimo na Caixa Econômica e, na cerimônia de assinatura do Contrato de Edição, pagou um gorducho sinal. Feito isso, aceitou um cappuccino e esperou engatar uma conversa mole com o seu editor, que lhe permitisse, inclusive, chegar aonde queria: a Howard Keel. O editor, porém, espiando a hora certa em seu relógio, lamentou sinceramente que uma audiência com a secretária de cultura lhe abreviasse o tempo disponível aquela manhã. Saiu a Dra. Álvara mais pobre e menos satisfeita e chamou Djalma Smee a secretária (não a de cultura, mas a dele próprio, que respondia pelo nome de Magnólia) e mandou incluir o nome da professora no índex das pessoas pra quem estaria, a partir de então, ou em viagem de negócios a Gotthaab, na Groenlândia, ou em reunião com a secretária de cultura do município, do estado, ou da universidade: nessa ordem. Djalma Smee tinha verdadeira fixação em secretárias de cultura, na doce ilusão de que seus seios fossem bojudas cornucópias de verbas e recursos e na perene esperança de muito mamar em cada um da meia dúzia deles.[ 7 ]
Não se pense, no entanto, que a medida de Djalma Smee de indexar a Dra. Álvara na sua lista negra telefônica significasse que pretendia rolar a edição do livro até o fim dos tempos. Se tomou essa medida foi só porque sentira na Dra. Álvara uma certa predisposição a se tornar uma chata do tipo “Como é que vai o nosso livro?” — no que estava muito enganado, porque o que ela só queria era conversar com ele sobre Howard Keel e, quem sabe, convidá-lo pra verem juntos Ardida como pimenta. Mas a Bico de Lacre não enrola os seus autores, pois não interessa a Djalma Smee garfar apenas o gorducho sinal mas toda a grana do obeso orçamento. Tanto assim que no mesmo dia passou os originais da famosa tese — que, na Bico de Lacre, ficou conhecida pelo codinome de “livro dos fantasmas” —, às mãos da secretária que, por sua vez, os passou às mãos do revisor oficial da casa editora, isto é, às mãos de mim.
Nem seria necessário, a rigor, uma revisão do texto impecável da professora, mas a casa editora não abria mão dessa rubrica de despesa, até porque 60% do valor cobrado sugava-os o bolso voraz de Djalma Smee. De qualquer modo, dei conta do meu trabalho: li a tese da professora e fiz alguns pequenos reparos — do tipo trocar aspas duplas por aspas simples em citações no interior de citações e corrigir uma que outra falha de digitação — sem, no entanto, entender muito bem o que estava acontecendo ali naquele texto. Sim, o texto não fez sentido nenhum pra mim, fato que atribuí ao elevado grau de inteligência crítica e teórica da professora, já que não podia contrapor o meu pobre e rasteiro estranhamento ao erudito aplauso dos quatro medalhões da banca nem ao diploma de doutorado conferido por uma universidade como a USP. Assim, li o cipoal acadêmico munido de reverência e respeito e até quase bati palmas pra frases como esta: “O múltiplo é a manifestação inseparável, a metamorfose essencial, o sintoma constante do único. O múltiplo é a afirmação do um, o devir, a afirmação do ser. A afirmação do devir é, ela própria, o um; a afirmação múltipla é a maneira pela qual o um se afirma.” E como esta: “Tornar a vir é o ser do que devém. Tornar a vir é o ser do próprio devir, o ser que se afirma no devir. O eterno retorno como lei do devir, como justiça e como ser.” Pérolas da néo-nova crítica literária.
Naquela tarde (agora sim e finalmente) fui à Bico de Lacre devolver o texto da professora devidamente revisto e incompreendido. A Bico de Lacre, como se sabe, é o braço editorial da Desentupidora e Higienizadora Clean, e divide com esta, irmãmente, as suas dependências administrativas. Djalma Smee atende, na mesma mesa, aqueles clientes interessados em limpar fossas e esgotos e também aqueles fissurados por colocar no mundo obras intelectuais que sem elas (na opinião exclusiva de seus autores[ 8 ] ) o mundo estaria irremediavelmente empobrecido. Lembrando-me de algumas[ 9 ] dessas obras, todas revistas por mim, vejo que, ao contrário do que pode parecer, não é tão descabida assim a associação entre desentupidora e editora: a diferença está em que a desentupidora trata merda como merda e a editora trata merda como literatura. Já administrativamente o que as distingue é que, ao atender os clientes literários, Djalma Smee maloca a plaqueta em que seu nome aparece como diretor gerente e a substitui por outra com os dizeres gerente editorial.
Mas andiamo, como dizem os etruscos. O endereço de ambas e uma só firma é ali no bairro do Horto, ao pé de um morro, não muito longe mas também não muito perto da horta de gráficas que se situa em Gurigica. A rua é tranqüila (até mesmo os cadáveres que de vez em quando rolam lá de cima do morro são discretos e silenciosos) e (coisa rara em Vitória, cidade sedenta de sol) arborizada. Toquei a campainha, troquei algumas palavras com uma voz emparedada e, como por milagre, a porta abriu-se com um estalo de chibata, acionada por um dedo de longo alcance. Galgando os alguns muitos degraus a pique, corri a mão pelo corrimão de madeira, e não demorou muito cheguei ao patamar administrativo da empresa. Dona Magnólia veio receber-me com um sorriso estranho, estranho porque sorriso. Quando foi que vi essa megera sorrir antes pra mim? Vejam: vai tratar-me até de danadinho:
— Você caiu do céu, seu danadinho. Já liguei não sei quantas vezes pra sua casa. Dr. Djalma está louco pra falar com você.
Djalma Smee não é doutor a não ser pras negas dele, já que não defendeu nenhuma tese de teoria literária, ou do que seja, como fez, galhardamente, a Dra. Álvara Fragosa. Doutor ou não, vi-o ver-me através do vidro do aquário que lhe serve de gabinete e vi-o pespegar na perna uma palmada de contentamento, após o quê chamou-me com largos acenos de mão e charuto. Entrei no aquário. Djalma apertou-me a mão. Mandou-me sentar.
— Como é que tu adivinhou[ 10 ] que eu estava querendo falar contigo? Magnólia está ligando direto pra tua casa desde meio-dia.
— Meio-dia eu saí pra almoçar e não voltei em casa, — eu disse.
— Tu precisa é de um celular, — aconselhou ele, — pra ficar acessível quando a gente precisa de ti. Vou te dar um de presente de Natal.
— No momento o que eu quero, — disse eu, — são os meus honorários de revisor.
E depositei sobre a mesa o calhamaço em que se encarnava a tese da Dra. Álvara Fragosa.
— Já? — assombrou-se Djalma. — Tu é fera, hein, cara?[ 11 ] E que que tu achou? Diz pra mim.
— É do cacete, — disse eu pra ele, — só que não entendi porra nenhuma.
— É exatamente isso que eu quero pra Bico de Lacre, — exultou ele: — o texto indevassável. E está cheio de penduricalhos, não está?
— Penduricalhos? — estranhei.
— Notas de rodapé, — traduziu ele, soltando uma baforada de fumaça.
— Às pencas, — disse eu.
— Jóia, — disse ele. — São textos assim que impõem respeito à comunidade acadêmico-científica.
— E quanto a isto, Djalma? — perguntei, coçando o polegar com o indicador.
Nesse ponto — em pagar o que deve, pelo menos a mim — tenho de reconhecer que Djalma nunca nega fogo, e não negou desta vez:
— Vou falar com Magnólia pra fazer teu cheque, — disse ele, com o charuto plantado em riste entre os dentes.
Falai no mal, preparai o pau. A secretária bateu à porta e meteu dentro do aquário meio palmo de cara.
— O pessoal chegaram, — disse ela, empregando com muita propriedade uma concordância ideológica.
— Manda entrar, — disse Djalma, e levantou-se pra receber os visitantes.
— Quer que eu saia? — perguntei, humilde, levantando-me também.
— Não, não, — disse ele. — Tu é a pessoa que eu quero comigo nesta reunião.
Entraram no gabinete três homens e uma mulher, que Djalma recebeu com uma overdose de cordialidade. A mulher era jovem e estava visivelmente ou grávida ou ascítica, ou seja, ou esperando neném ou com barriga d’água.[ 12 ] Dos três homens, o primeiro era velho, franzino e anguloso, e bem podia ser o pai da moça. O segundo era grande, sisudo e faraônico, e bem podia ser o seu irmão. O terceiro, pra minha surpresa, era Fernando Achiamé, um dos sócios eméritos do Clube das Terças-feiras: era o único que trazia chapéu na mão,[ 13 ] e a ele bem podia a moça ter dado a mão ou algo mais: e, sendo ou não sendo ele o pai da criança, aproveitemos pra concluir que ela não estava ascítica mas grávida.
Ao apresentar-me aos recém-chegados, Djalma fez questão de carregar nas tintas. Longe de ser pouca porcaria, eu era, pra todos os efeitos, chefe da equipe de revisão da editora, formado em Letras, poeta com livro publicado, pesquisador de naufrágios de navios,[ 14 ] e premiado em vários concursos promovidos por instituições culturais de todo o Brasil. Os quatro nomearam, um a um, os seus nomes, e Djalma repetiu-os, um a um, pra mim como se lhe coubesse a responsabilidade de homologá-los, e depois apresentou os visitantes em conjunto como membros do conselho editorial da Academia Pansófica do Espírito Santo.
— Instituto Pansófico, — corrigiu Fernando.
— Sinto-me honrado, — disse Djalma, ignorando a correção e, por conseguinte, o erro, — com a vossa presença em minha toca.
Dito o quê, dirigiu-se vocífero à secretária que, empedrada à porta, esperava ordens:
— Liga pra Miguel Desidério. Diz que só está faltando ele. E manda trazer café e água.
Há no aquário de Djalma Smee uma mesa de reunião com meia dúzia de distintas cadeiras, distintas tanto porque todas têm aparência respeitável como porque nenhuma delas tem qualquer parentesco com nenhuma outra.[ 15 ] O editor da Bico de Lacre abriu sobre as asas de nós cinco os vastos tentáculos e conduziu-nos até à mesa. Ali cada qual sentou na cadeira que lhe coube; a uma e outra cabeceira sentaram-se Djalma e o irmão da moça. Djalma abriu então um largo sorriso editorial nos lábios e disse:
— Que calor que está fazendo lá fora, hein? Diz pra mim. Se importam de esperar um pouquinho? Desidério já foi chamado. Trabalha aqui perto. Não demora. Não conheço quem faça melhores projetos gráficos que ele em Vitória. Em Vitória? No sudeste inteiro, e quem fala do melhor do sudeste fala do melhor do país. Não é não? Diz pra mim.
— Vai demorar muito? — perguntou Fernando.
— Nada, — respondeu Djalma. — Cinco, dez minutos. Enquanto isso, vamos tomar um café.
— O senhor poderia apagar o charuto? — disse a Djalma o irmão da moça. — Peço este obséquio em atenção ao estado interessante de Terezinha.
— Mil perdões, — disse Djalma, enterrando o charuto editorial na tumba de um cinzeiro.
Chegou a servente das empresas geminadas trazendo café e água. Era uma senhora franzina de seus mais pra sessenta que pra cinqüenta anos, de cara amarrada, que bem podia ser esposa do sócio velhinho e, por conseguinte, mãe da moça grávida. Djalma achou de bom tom mostrar-se democrático:
— Dona Leonarda está conosco há quantos anos, Dona Leonarda? Quinze? Diz pra mim.
— Fora os sem carteira, — disse Dona Leonarda.
— Ah! Que senso de humor! — exclamou Djalma. — E ainda faz o melhor café forte de Vitória. Tem gente de alto quilate que vem aqui, eu penso que é por minha causa, que nada, é pra tomar o café desta moça.
— A senhora é daonde? — perguntou Fernando Achiamé.
— Sou de Colatina, — respondeu Dona Leonarda.
— Eu também! — exclamou ele, deslumbrado ante o feliz acaso. — Então a senhora é minha conterrânea!
— Eu não, credo! — disse ela. — Nem conheço o senhor. Olha essas liberdades comigo, moço. Sou pobre mas sou honesta.
— Que senso de humor! — riu-se Djalma. — Que faria eu sem essa mulher? Diz pra mim.
Dona Leonarda caiu fora sem ter pronunciado um só sorriso. Calamo-nos pra beber a água e depois pra adoçar o café. Colherinhas de plástico fizeram um vôo rasante do açucareiro às xícaras, enquanto a moça grávida pingava no seu café algumas gotas de adoçante. O meu fiz questão de, prevenido, açucarar bem açucarado, que já conheço o café forte de Dona Leonarda. Djalma tomou o dele puro e preto, num só gole, e levantou-se.
— Vão me desculpar um minuto. Aproveitem pra pôr meu chefe de revisão a par do problema que aflige a nobre Academia.
Aí fugiu pra sua mesa e pediu uma ligação, que aguardou com um charuto fresco metido — apagado — no canto da boca. Cá entre nós, Fernando tomou a palavra. Disse que estavam ali, ele e os outros, pra entregar à Bico de Lacre a edição da Sursum Prorsum, a revista do Instituto Pansófico.
Aproveitei a ausência de Djalma pra perguntar, baixinho, o que significava a palavra “pansófico”.
— Pansófico, — explanou Fernando, — é o adjetivo que corresponde a pansofia, palavra grega que significa ciência universal. E Sursum Prorsum, o nome da nossa revista, significa, em latim, para cima e para diante. É, modéstia à parte, o periódico mais antigo do Estado em circulação. O primeiro número saiu em 1912, com colaborações de Rui Barbosa, Austragésilo de Ataíde, Pessanha Póvoa, Dom Fernando Monteiro, meu xará, e muitos mais.
— É mais antiga que a Revista do Instituto Histórico, — disse o irmão da moça.
— É mais antiga que a Vida Capichaba, — repetiu o sócio velhinho, levantando um dedo idoso e caloso.
— A Vida Capichaba não conta, — resmungou o irmão da moça: — parou de circular há mais de trinta anos.
— Ah é? — disse o sócio velhinho. — Bem que eu não tenho visto nas bancas.
— É mais antiga que A Gazeta, — disse Fernando, — que circula desde 1928.
— É verdade que A Gazeta é um jornal diário, — disse a moça, — e a Sursum teve ano que não saiu nenhuma edição dela, mas, ressalvando isso, não se pode negar que tem mais tempo de longevidade.
— Ultimamente temos publicado sem falha um número por ano, — disse Fernando. — O problema é que a qualidade gráfica e editorial sempre deixou muito a desejar, e o último número foi uma verdadeira calamidade. Por isso o atual conselho, do qual tenho a honra de fazer parte, resolveu dar uma guinada de trezentos e sessenta graus[ 16 ] e reformular a revista como um todo, sobretudo nos itens grafismo e revisão.
— Deu tudo errado na revisão do último número, — suspirou a moça.
— Grum, — resmungou o irmão dela.
— Só no meu artigo, — disse a irmã dele, — contei oitenta e sete erros diversos, principalmente de ortografia. Os acentos fugiram todos das palavras certas e foram parar nas palavras erradas. Por exemplo: todos os verbos no passado receberam chapeuzinho: estâmos, recebêmos, colocâmos.
Ao enunciar cada palavra a moça fazia no ar, com o dedinho, o sinal de circunflexo.
— Quem foi o responsável pela revisão? — perguntei, com curiosidade meramente profissional. E estava tranqüilo: eu que não fora.
Minha pergunta fez pipocar na mesa um silêncio pesado.
— Que que ele perguntou? — perguntou o sócio velhinho.
— Ele perguntou, — disse o irmão da moça, — quem foi o responsável pela revisão desse número da revista.
— Ah! — exclamou o velhinho. — E não foi você, Epitácio? Me disseram que foi você.
— E fui eu, sim, — disse Epitácio. — E quero ver quem tem coragem de dizer que não cumpri diligentemente minha tarefa. Passei oito dias lendo as provas da revista e anotando as correções à margem. E afirmo que havia correções a dar com o pau. Fiz o que me competia e entreguei as provas ao nosso presidente. O que aconteceu depois não é de minha responsabilidade.
— E o que foi que aconteceu? — perguntei.
— Pelo que sei, — disse Fernando, — o empregado da gráfica teve dificuldade pra decifrar as correções que tinha de fazer, porque a letra de Epitácio são uns garranchos ilegíveis.
— Isso é desculpa dele, — disse Epitácio. — O sujeito é um preguiçoso safado. Eu falei isso pra ele. Abri a esmo as provas da Sursum no nariz dele e mostrei uma das minhas correções. Olha o que eu escrevi aqui: Almanaque do Tico-tico. Você corrigiu? Não. Do jeito que estava, ficou.
— E como é que estava? — perguntei.
— Almanaque do Reco-reco, — disse Epitácio. — A autora do texto confundiu Tico-tico com Reco-reco porque a revista tinha um trio de personagens que se chamavam Reco-reco, Bolão e Azeitona. Mas eu consertei. Consertei e não adiantou nada. Tá lá: Almanaque do Reco-reco. E o sujeito teve o desplante de dizer na minha cara que eu tinha corrigido Reco-reco pra Reco-reco, quando estava lá, claramente, Tico-tico.
— Logo você, Epitácio, — disse Fernando, — que até escreveu uma crônica sobre o Almanaque do Tico-tico, aliás belíssima.
— Pois então, — disse Epitácio.
— Então a revista saiu cheia de erros, — disse eu.
— Cheíssima, — disse Fernando. — A única coisa que saiu correta foram uns poemas em polonês que Mieczyslaw levou pra revista e ninguém teve coragem de recusar.[ 17 ]
— Esses eu nem olhei, — disse Epitácio. — Não sei polonês… O raio foi que um dia aí me telefonou um gaiato perguntando quanto é que eu cobrava pra fazer a revisão de um livro em polonês. Quando entendi que era uma gozação e já ia mandar o sujeito praquele lugar, ele desligou.
— Deve ter sido alguém do próprio Instituto, — disse Fernando, com um sorriso tão deliciado que logo desconfiei ter sido ele mesmo o autor do trote.
— A revista do Instituto Pansófico também publica poesia? — estranhei.
— Sim, nós temos uma seção chamada “A poesia é necessária,” — disse o pai da moça.
— Isso também vamos mudar, — replicou Fernando. — A poesia não será mais necessária, pelo menos na nossa revista. Não tenho nada contra a poesia, também eu cometo meus versos,[ 18 ] se quiser posso até recitar alguns aqui, mas o Instituto não pode descarrilar de sua linha pansófica. Teve um número aí que tinha mais literatura que ciência. E, cá pra nós, uma literatura muito da chinfrim ainda por cima. O Instituto estava perdendo a credibilidade. Mas não importa. Daqui pra frente tudo vai ser diferente.
— Você tem que aprender a ser gente, — cantou uma voz. Era Miguel Desidério que vinha entrando aquário adentro. — O seu orgulho não vale nada, nada!
— Oi, Miguel, — disse Fernando, com um sorriso. É amigo de Miguel? Quem diria.
— Ei, Miguel, — disse eu, não querendo deixar por menos: também eu sou amigo do bruto.
Miguel chegava do jeito desleixado como gosta de andar, com blusa de malha, bermuda jeans e sandálias de borracha, e uma sacola de supermercado cheia de tudo que precisa pra enfrentar o dia, inclusive alguns exemplares de seu mais recente livro de poemas,[ 19 ] que costuma distribuir como isca a toda e qualquer criatura do sexo feminino que encontre pelo caminho. À vontade em qualquer espaço, Miguel veio sentar-se à cabeceira da mesa, no lugar deixado vago por Djalma: muito justo: quem foi ao convento perdeu o assento.[ 20 ] Foi então logo se apresentando à moça, sentadinha à sua esquerda, e apertou-lhe a mão. Depois apertou também a mão da família toda: do pai e do irmão e daquele a quem a moça deu a mão.[ 21 ]
Djalma Smee voltou do convento pra mesa trazendo nas mãos uma sétima cadeira, e abriu espaço pra ela e pra si ao lado de Miguel: preferia dividir com outro o império da cabeceira a perdê-lo. A seguir pigarreou. Bem, agora estamos todos aqui, disse ele, expressando o necessário óbvio. Aí começou, oficialmente, a reunião pra redenção editorial da revista do Instituto Pansófico do Espírito Santo.
Uma hora depois estava terminada a reunião. Nenhum dos quatro representantes do conselho editorial do Instituto resistiu à avalanche de esmeradas publicações que se derramou sobre a mesa, todas elas com projeto gráfico creditado ao fino gosto de Miguel Desidério e a inequívoca marca de qualidade editorial representada pelo passarinho de bico vermelho. Não havia ali, é verdade, nenhum texto que fizesse justiça à capa primorosa, ao caprichoso projeto gráfico ou ao sublime logotipo ornitológico: nem o robusto Valor reconhecido, que continha nada mais nada menos que o curriculum vitae do professor Nicanor Dias dos Santos, Ph. D.,[ 22 ] nem tampouco o livro de poemas Rebentos da minha alma, do desembargador Átila, o Huno, de Oliveira, nem mesmo a profunda filosofia religiosa de Jesusismo, de um iluminado garçom que vendeu a casa pra pagar a edição. Mas todos esses volumes contribuíram pro resultado final da reunião: a Bico de Lacre assumiu formalmente o controle editorial da Sursum Prorsum, com Desidério responsável pelo projeto gráfico e editoração e este narrador, pela revisão dos textos.
— À exceção, — frisei, cedendo à tentação do gracejo, — de poemas em polonês.
— Desses Epitácio cuida, — acrescentou Fernando.
— Seu filho da mãe, — disse Epitácio, mas rindo.
A reunião levantou-se pras despedidas. Desidério encostou num canto a moça grávida e passou-lhe, num gesto de mágica, um exemplar de seu Cupim. Certamente havia inserido ali uma daquelas suas famigeradas dedicatórias, feitas de caso pensado pra seduzir ainda que até mesmo a mais inflexível das madres superioras de convento de carmelitas descalças.
— Telefona pra mim e diz o que achou, — disse ele, com jeito modesto, como se sua auto-estima de poeta dependesse do veredicto daquela leitora em especial.
Saíram do aquário os sócios pansóficos do Instituto. Ficamos Desidério e eu, que Djalma queria dar-nos ainda uma palavrinha.
— Capricho, hein, capricho! — disse ele. — Essa revista vai nos dar prestígio no meio acadêmico-científico de Vitória. Tudo bem publicar umas merdas como essa — e deu um chega-pra-lá no exemplar do Valor reconhecido, do professor Nicanor Dias dos Santos, Ph. D., —, que ninguém é de ferro, mas o que dá prestígio é publicação científica. Não é não? Diz pra mim. E além disso o dinheiro entra da mesma maneira.
E como. O orçamento apresentado por Djalma Smee era estratosférico. Só o projeto gráfico e editoração de Miguel Desidério ficava a preço de artista plástico consagrado. A minha revisãozinha besta também não ficava muito atrás, uma vez que, como propagara o editor, seriam feitas três revisões de provas e uma revisão de vegetais, e por mais de um revisor, porque, explicou, há que haver um rodízio de revisores porque revisor cansa do texto e texto cansa do revisor. Fez questão de assinalar que não há livro, nem mesmo da Bico de Lacre, sem erro de revisão, porque perfeito só Deus, mas garantiu que a sua equipe de revisores daria um tratamento de primeira aos textos da revista, e nisso empenharia sua barba, se a tivesse.
— Qualidade gráfica e conteúdo intelectual, — disse Djalma. — Com a revista dos pansóficos e a tese da Dra. Álvara inaugura-se uma nova fase pra Bico de Lacre. Não me vão cagar no pau, hein? Diz pra mim.
E despediu-nos. Fiz uma escala na Dona Magnólia pra embolsar meu cheque. Depois descemos, nós da equipe técnica da revista do Instituto, até sermos postos na rua tranqüila e arborizada ali do Horto.
— Vamos naquele bar que eu quero comer alguma coisa, — disse Desidério.
Havia um boteco na esquina de uma ladeira que sobe morro acima. Havia alguns salgados tristonhos na vitrine do balcão. Era preciso coragem pra encarar qualquer um deles. Desidério tinha toda a coragem necessária. Pediu uma coxinha.
— Quer uma? — perguntou.
— Não, obrigado, — respondi.
Desidério pediu também uma guaraná. Sentamo-nos a uma mesa esquálida — filha única de mãe solteira — na calçada. Ele deu uma mordida na coxinha e retirou de dentro da sacola de supermercado um desses pequenos álbuns de fotografias que as reveladoras dão de brinde aos clientes.
— Olha só, — disse ele.
Olhei mas não só: olhei e perscrutei cada foto. Era o ensaio fotográfico de uma moçoila morena que, nuazinha em pêlo, mostrava, em corpo esguio, um sorriso carnudo e uma carnuda xota como raramente vi outros tão que tais.
— Onde você descobriu essa figura?
— Gostou? — Desidério lambeu dos beiços alguns átomos de frango.
— Se gostei? — exclamei. — Miguel, aposto que nunca vi lábios tão sensuais assim antes.
— Nome dela é Hipoteneuza, — disse Desidério, — mas gosta que chamem de Neuza. Achei na rua. Você não imagina as jóias que estão aí dando sopa na sarjeta.
Desidério tem dessas coisas. Descobre no olho das ruas modelos fotográficos em bruto, leva pra um motel, dá-lhes um bom banho, ensina-lhes algumas poses eróticas,[ 23 ] fotografa e depois come. Reveladas as fotos, carrega pra cima e pra baixo na sacola de supermercado pra mostrar aos amigos.
— Tá precisando de emprego, — disse ele. — Tem emprego pra ela não?
— Essa moça já nasceu com emprego, — disse eu. — Nasceu pra dar. Que que ela está esperando? E que que você está esperando pra ser o proxeneta, quer dizer, o empresário dela? O book já está aí pronto.
— Tô falando sério, — disse ele. — Ela tem uma filha.
— Tenho emprego não, — disse eu. — Por que não pediu a Barrica?
— Barrica não, — disse ele. — Não confio.
— Então pede ao pessoal do Instituto Pansófico, — disse eu.
Ele sorriu.
— Gostei daquela Terezinha, — disse. — Existem duas coisas numa mulher que me deixam de água na boca, e uma delas é gravidez.
— Você é um pervertido, — disse eu. — E qual é a outra?
— Aparelho nos dentes, — disse ele.
— Você é um tarado, — disse eu.
Desidério deu mais uma dentada na coxinha e tomou mais um gole de guaraná.[ 24 ]
— Quanto à tal da Terezinha, — eu disse, — não está só grávida, está casada. Não viu a aliança na mão dela não?
— Também adoro mulher casada, — disse ele. — Estou até comendo uma. Se eu te disser quem é, você vai levar um susto. É mulher de amigo.
A última frase foi sussurrada com todos os requintes de confidência ao meu ouvido.
— Então não me diz, — disse eu. — Não quero saber.
Nesse ponto sou absolutamente leal. Mulher de amigo pra mim é homem, como se diz. Já fui cantado por mulher de amigo, e mulher gostosa ainda por cima, e declinei a cantada com absoluta convicção, embora tenha tomado um puta esporro do meu pau depois.[ 25 ]
— Comi essa mulher na semana passada pela primeira vez, — disse ele. — Uma belezura. Deixa eu te dizer quem é.
— Não quero saber, — repeti.
— Só as iniciais, — insistiu ele.
— Não, — disse eu.
— Então lê o poema que eu fiz pra ela, — disse ele.
Tirou uma pasta de dentro da sacola e, de dentro da pasta, uma folha de papel.[ 26 ] Eis o poema que jazia ali:
Não é pra menos, eu que o diga, amada:
também pudera, e olhe lá, agora
em ponto, tão bonita que, além
do mais, sem mais tardar, vamos, venhamos.
Há quanto tempo é como queiras. Psiu.
Antes, porém, depois. Se for o caso,
deixo de nove às vinte e quatro horas,
e pelo sim se for o que dirás?
Há que, tal qual, favor não soletrar,
porque não há por quê, nem há de quê,
e o poema se faz sem ter em vista
senão coisa com coisa. E tanto faz
assim como como como assim,
dou-lhe uma e dou-lhe duas e fim.
— Que que você achou? — perguntou ele.
Respondi no chofre:
— Achei indecidivelmente conceitual e metafórico, organizador e desestruturante, filosófico e poético.
Ele releu o poema, por sua vez, enquanto mastigava a derradeira lasca de coxinha. Depois concordou:
— Acho que você tem razão. De qualquer forma, nossa amiga, a mulher de nosso amigo, ficou extasiada quando leu. Agora lê isso aqui.
E me impingiu outra folha de papel com outro poema nela. Eis o que li:
Todo cuidado é pouco, Jacqueline,
agora que te vi, agora que assisti
você sorrir, que admirado admirei
a sombra do teu corpo esguio e belo,
e passei necessidade de tocar
as tuas mãos, e os lábios, e os cabelos,
todo cuidado é pouco, porque basta
um só deslize, um triz, uma fagulha,
e apaixonado estarei até o pescoço
por você. E aí? Que terrível destino
me espera, prisioneiro em tuas mãos?
Melhor me prevenir enquanto é cedo:
fica o poema contigo de refém
e eu fico livre de ti e passo bem.
— E aí? Que que achou? — perguntou o poeta.
Respondi com a maior sinceridade:
— Achei um tanto constativo e performativo, mas a textualidade podia ser mais velada, mais heterotanatobiográfica. Porque, você sabe, não há indecidibilidade nem deslocamento do texto metafísico sem a incorporação de uma película mortífera ao tecido textual.
— É? — disse Desidério, meio decepcionado. — Mas essa é uma primeira versão. Vou ver se reescrevo o poema de acordo com isso aí que você disse.
— Mas quem é Jacqueline? — perguntei.
— Jacqueline Paganini, — disse Desidério.
— Da tevê? — exclamei, incrédulo.
— A própria, — disse Desidério. — Telefonou me convidando pra ir no programa dela hoje à noite falar de poesia. E acho que ela me dá ponto. Olha o que estou dizendo: seu amigo ainda vai acabar comendo essa musa televisiva.
Jacqueline Paganini é um fenômeno da televisão local. A porra da mulher tem trinta anos, parece que tem vinte, é linda pra cacete, desimpedida, desembaraçada, e tem o dom de sorrir o sorriso mais bonito de Vitória. Todos os homens (e quem sabe algumas mulheres também) que comparecem ao seu programa fatalmente acabam por cantá-la até mesmo diante das câmeras. Não será Miguel Desidério que fará diferente.[ 27 ]
— Não esquece de dar seu livro a ela, — recomendei.
— Já dei, — disse ele. — Já fui no programa dela uma vez. Agora vou atacar de poema personalizado. E mais: pretendo recitar o poema com o programa no ar.
Aí Desidério virou-se pro dono do boteco e disse:
— Quanto é que deu?
— Três contos, — disse o homem.
— Tem três contos aí? — perguntou a mim.
— Não tem dinheiro não? — repliquei.
— Só uma nota de cem, — disse ele. E, pro dono do bar: — O senhor troca cem?
— Cem contos? — disse o homem. — Nem sei o que que é isso.
— Paga aí pra mim, cara, — disse Desidério. — Você tá com muito. Acabou de receber.
Paguei o lanche de Desidério, em respeito ao seu talento como poeta. Despedimo-nos, cada qual ia pra um canto. Lá se foi ele de volta ao estúdio onde trabalha, lá vim eu pra avenida Vitória a fim de pegar um ônibus. Essa decisão estava tomada. Só não sabia se pegava um ônibus pra casa ou pro centro. Sim. Rever um de meus editores deu vontade de rever o outro.[ 28 ] Tive saudades do Sr. Eylau e, sobretudo, de Dona Mônica. Tive saudades da doce Fúlvia, até porque estava trabalhando num poema de amor endereçado a ela (também tenho esse direito). Tive saudades do Edifício Pongal. Saudades tive do centro da cidade às quatro e meia da tarde. Passava nesse exato momento diante de um telefone público, que como os há espalhados pela cidade toda: um exército de caça-níqueis. Tinha um cartão telefônico. Liguei pra Agência Ajax. Atendeu, como esperado, a secretária da agência.
— Dona Mônica, boa tarde, — disse eu, — e diga-me depressa, que meu cartão só tem três unidades, se o Sr. Eylau pode me receber ainda hoje.
— Ele tem um compromisso às quatro, — respondeu ela. — Vou agendar você às cinco. Pode ser?
— Estou indo pra aí, — disse eu.
— Está cedo, — disse ela. — São dez pras quatro.
— Estou com saudades da Agência Ajax, — disse eu, e desliguei.
Peguei um ônibus pra cidade na avenida Vitória. Aproveitei a viagem pra fazer, na cabeça, mais uma estrofe do poema pra doce Fúlvia. Embora seja eu quem o diga e não a Dra. Álvara Fragosa, trata-se de um projeto ambicioso e revolucionário, uma versão altamente original e pós-moderna de poema alfabético, bem distante, é claro, dos poemas abecedários medievais e dos abecês da poesia popular. O elemento alfabético do poema se situa na última sílaba do primeiro verso de cada estrofe, e se caracteriza por um monossílabo em á. Eis a estrofe referente à letra J:
Te quero, Fúlvia, já!
Te quero tanto como
não quero operar as adenóides
nem as amígdalas, mas,
se for preciso pra cheirar melhor o teu cangote,
pra engolir melhor a tua baba de moça,
que venham, cortantes, afiados, mais que já,
as abençoadas pinças e os redentores bisturis.
Saltei na rua Osório. No elevador subi junto com dois rábulas engravatados que, por coincidência, iam também pro quarto andar, ou seja, por coincidência tinham algum processo a tratar com o patrão da doce Fúlvia. Os dois conversavam não como se eu nem estivesse ali mas sim como se, estando ou não estando, tanto fizesse.[ 29 ] Um deles disse ao outro:
— Hoje não tem jeito: vou ter de comer a minha mulher.
— Que que houve? — perguntou o outro.
— É o aniversário da filha da puta, — disse o primeiro.
Saltamos os três no quarto andar. Passei à frente deles e patinei em direção à esquina que, uma vez dobrada, deixava a gente de frente pra porta da Agência Ajax. Bati à porta com os nós dos dedos, trêmulo de saudade. Ah, boa e velha agência Ajax. Ah, bom e velho Porfírio Eylau. Ah, boa e gostosa Dona Mônica.
Feche-se o intercapítulo. O próximo — promessa de narrador — há de abrir-se-á ao abrir-se, pelas mãos de fada de Dona Mônica, a sisuda porta da Agência Ajax.[ 30 ]
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NOTAS
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)