Foto Gilson Soares, 2014. |
Eram essas as elucubrações que me ocupavam enquanto ia pedalando pelo beiral superior do nosso território.
Depois de deixar Riacho Doce e a simpática receptividade do Celsão, voltei até bem perto de Itaúnas, de onde retomei a estrada que conduz ao conglomerado urbano que se formou ao redor da vendinha e da pensão de seu Pedro Canário, e que, depois, apropriou-se do seu sonoro nome para se designar.
Ainda era manhã quando comecei a cruzar, de volta, as matas de eucalipto que povoam hoje, uma boa parte daquela região.
Pelo menos dois fatos marcantes da minha viagem pelo arco norte iriam acontecer ainda naquela quinta-feira a caminho de Pedro Canário: foi na estrada de terra batida que se estende pelo vale do rio Itaúnas, que alcancei o meu recorde de velocidade nesse passeio de pouco mais de 1.000 km. O velocímetro da pretinha – um pequeno computador de bordo, que viaja agarrado ao guidão e plugado a um sensor, no garfo, captando os giros da roda – registrou, num instigante e deserto declive, a velocidade de 58km/h. Em muitos outros momentos da viagem estive próximo dessa velocidade, mas aquele número manteve-se invicto até a minha chegada a Vila Velha alguns dias (e um bom número de velozes e deliciosas descidas) depois.
Outro fato que marcou aquela quadra do giro foi a minha passagem pelo Assentamento Paulo César Vinha.
Por mais de um motivo, considerei marcante a minha passagem por ali.
Conheci Vinha e mesmo não tendo desfrutado de uma maior convivência e troca de ideias com ele, cheguei a participar de reuniões com a sua presença, em Vila Velha. E certamente trocamos, ao menos, cumprimentos cordiais.
Assim, como toda a comunidade capixaba, fiquei surpreso, assustado e indignado com o covarde assassinato dele.
Vinha era, então, um homem bonito, inteligente, jovem e corajoso.
Além disso nos posicionávamos do mesmo lado, no campo onde se travavam algumas das lutas daquele tempo de esplendor e dor.
As placas de sinalização no trajeto, indicando o Assentamento, já haviam despertado a minha curiosidade e a minha emoção.
Acostumado que estou a pedais rápidos, fáceis e muito agradáveis pela Rodovia do Sol, de Vila Velha – moro no bairro Nossa Senhora da Penha – até o Parque Estadual Paulo César Vinha, em Setiba, onde contemplo a rica e muito justa homenagem a este herói conterrâneo e contemporâneo, fiquei surpreso com esta menção a ele lá naquele ponto extremo do nosso estado.
Ali, deparei-me com uma vila rural organizada, disciplinada e que não faz segredo do seu posicionamento político-ecológico, conforme pude constatar nas faixas, placas e bandeiras que o assentamento ostenta.
A tarde estava só começando e a escola do lugarejo – com uma boa estrutura recreativa e esportiva – exibia, naquele momento da minha passagem, toda a estridência da energia infanto-juvenil que grassava, então, pelo pátio ensolarado.
Meio sem saber a quem recorrer, abordei uma moça que transitava, com uma inconfundível (e simpática) postura docente, em direção ao portão de entrada, por onde eu, titubeante, zanzava. Falei pra ela do meu interesse em entregar para a biblioteca da escola um ou dois exemplares do meu livro de poesia recém-lançado. Informei ainda que sou de Vila Velha e que estava de passagem por ali.
Ela – atenciosa, gentil, delicada – depois de confirmar minha conjectura sobre a sua identidade funcional, se dispôs a encaminhar a doação e me contou que uma poeta vila-velhense também havia doado, há algum tempo, exemplares de livros seus para a biblioteca daquela escola: Elisa Lucinda.
Ah, o mundo, ah, a vida!, balbuciei emocionado, enquanto a professora me olhava com olhos de surpresa e incompreensão e se afastava, agradecida, folheando, curiosa, um dos exemplares de Minério.
Ah, o mundo, ah, a vida!, continuei pensando enquanto retomava a estrada solitária e silenciosa: Vinha e Elisa dois quase-amigos meus – belos e valentes – com quem cheguei a velejar em barco comum, por ocasionais rios e mares da nossa juventude canela-verde.
Ele, Vinha, se foi, violentamente ceifado da sua trilha de sonho; ela, Elisa, ilesa, luzindo agora por caminhos que abre com as próprias mãos – e olhos! – pela vastidão do mundo.
Encontrar uma chispa dos dois ali no acaso daquela tarde que se abria sobre o arco norte, tinha pra mim uma importância emocional, que, mesmo não podendo ser apreendida pelo olhar amistoso da professora, vai ser compreendida, espero, pelo leitor deste meu relato arqueiro que, aqui, arqueja.
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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)
Belo texto, Gilson. Fico aqui pensando na aventura que foi esse circuito de pedaladas, poeira e poesia…não necessariamente nesta ordem. Grande abraço!