Por que ler os clássicos, nos indaga Calvino com a genialidade e a simplicidade dos que sabem, dentre outras coisas, que toda releitura é uma leitura de descoberta como a primeira e que essa descoberta pelo leitor pressupõe amor. Pergunto-me, então, num tempo de adversidades e contrariedades, por que ler poesia e, mais particularmente, por que reler o livro de poemas intitulado Vírgula, de Sérgio Blank. Porque a sua poesia tem a graça e a força particularíssima de fazer-se renovar sempre como experiência de fruição e de reflexão sobre a condição humana.
Logo de início o poeta se apresenta. Desenhada em silêncio e sangue, sua letra indicia a consciência e a pose inalienável de seus versos, e, como marca, inscreve neles o seu canto e a sua alma.
A persona lírica se materializa como “redundância escrita a lápis” e vagueia sombriamente pelas ruas e morros e telhados da cidade, enquanto perscruta o coração. Solidão e melancolia sempre à espreita, grita com a voz do silêncio a sensibilidade do poeta e suas circunstâncias, enquanto segue mapeando a sua, a nossa condição.
Brincando com um universo aparentemente banal e trivial, o poeta tematiza e realça a singularidade da solidão. Mas o leitor, que faz coro às muitas vozes sob a égide de Saturno, compartilha, na polifonia de seus versos, a universalidade desta que é uma das mais humanas das manifestações da condição humana: a solidão. Define-a como palavra-sentença, cuja força comporta afirmativamente a multiplicidade de sentidos e a consciência lúdica do poeta de que a vida, como armadilha, é feita de “penas e perdões”.
Por entre rimas, aliterações e assonâncias, o leitor de rende à profusão e ao inusitado das imagens que, plenas de cor e movimento, metaforizam quão fugaz é a felicidade. O leitor se descobre cúmplice na paixão pela palavra. A pesquisa em dicionário, pretexto para a criação, mostra um poeta-arqueólogo da linguagem. E nessa arqueologia, marcada por fina ironia, o poeta sublinha a dor para expurgá-la, como nos versos em que, aproximando o humano do divino, transcende a dor ao identificar-nos “— com sagrado-coração-de-jesus sangrando flechado e escarlate”.
O resultado, então, é um estado de poesia. Nesse estado, melancolia e contemplação aguçam a nossa perplexidade diante da inexorabilidade da existência. Os “sonhos datados”, os “anos colecionados”, o “calendário fixo no prego” denotam a passagem do tempo, a vigência impiedosa de Cronos.
A despeito de tudo, inclusive da sutil ironia dos versos de Sérgio Blank, percebe-se, num jogo, entre presença e ausência, uma alternância dos temas: amor e solidão se entrelaçam “em qualquer dobra da vida” e guardam o inesperado feito “dobradura em canto de página”. A analogia entre a vida e literatura enreda o leitor pela opacidade dos limites entre realidade e ficção. Imerso nesse mundo fantasmático, aparece um poeta-leitor — “nevermore boulevard com casuarinas que choram ao vento à sobreposse contra a minha vontade a ventania põe cisco nos olhos que fitam os umbrais de edgar allan poe” — que ilude o sentido de realidade, logra a dor e finge fingir “que é dor a dor que deveras sente”. Com isso torna-se imprecisa e tênue a fronteira entre o real e o imaginário.
O poeta vagueia e perscruta. A cidade lhe responde, indiferente, com os ecos de sua própria voz. Nunca se sabe quem ou o que está à espreita. As sombras e as esquinas desta cidade solitária as vemos pelos olhos do poeta, ziguezagueando por suas vielas em horas noturnas a espreitar pensamentos e sonhos. Como o sonho no poema “nebeneinander — a palavra alemã em pronúncia fria”, que lança para perto mas ainda assim um pouco mais além o objeto do desejo, colocando na vida e no poema “ao lado um do outro […] o município em que reside o amor”.
Ao se alternarem amor e solidão, prevalece ao final de alguns poemas, e como fim de toda a poesia, a imagem da busca, ou do plantio do “amor — perfeito”. Como a de quem, por seu olhar soberanamente humano, “espreita estrelas atrás das nuvens pesadas”. Porque, no movimento ininterrupto das ondas do mar que vêm e vão, o desejo “estala às escondidas” e revela a presença de Eros.
Vida e escritura se misturam e uma retira da outra a sua matéria. Papel e prantos são a própria matéria do poema e de sua fusão e metamorfose nasce sempre o traço delicado da vida. Do imaginário do poeta ao “risco exato” do poema ganhamos nós, leitores, a própria poesia, porque o que conta mesmo, a despeito da dor e da falta inerentes à condição humana, é que “a traça no ofício do osso faz a festa”.
[In A Gazeta, Caderno Dois, 21 e 28 de setembro de 1997.]
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