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Vitória, ES: Cidade pontual no início do milênio

Foto Maria Clara Medeiros Santos Neves, 2015.

Que loucos somos nós por amarmos cidades? Mesmo sem entendermos direito as razões, nós as amamos. Cidades são femininas, o que sugere uma aproximação… com o desconhecido. Igual a amar as mulheres, convém amar as cidades sem pretender compreendê-las. E, deste modo, gostar da Vitória sensual de muitas curvas, volumes muitos, diversos mistérios a sondar. A expressão maior do nosso amor pelas cidades se concentra nas pessoas. O que existe na ilha capixaba se impregna de gente – nuvens, musgos, velhas paredes, pedras, vidros espelhados, pontes, água da baía, árvores do Maciço Central, morros, ruas, praças. E o passear dos navios no seu porto íntimo.

Das musas com que se pode esbarrar na vida, as cidades costumam ser as mais gratas e fieis. Para os cultores de todas as artes, Vitória é uma festa: o Cais do Avião, o antigo perfume de café torrando na Avenida Vitória, o relógio da Praça Oito, a luta dos ventos sul e nordeste no ringue insular, a miséria do homem de rua na Praia do Canto, a riqueza do Mercado da Vila Rubim, festas e tipos populares. Mas o que o homem comum tem a dizer sobre tudo isso?

O projeto

A preocupação em registrar opiniões corriqueiras sobre Vitória (outra forma de expressar amor pela cidade?) deu origem a um trabalho. A partir da obra “Rio de Janeiro: um retrato (a cidade contada por seus habitantes)”, organizada por Fausto Wolff e publicada em 1990, Rogério Coimbra, Reinaldo Santos Neves e eu pensamos em fazer algo semelhante sobre a capital capixaba. E, como não há nada de novo sob o sol, diga-se de passagem, como de passagem o disse o próprio Wolff, que ele mesmo se inspirou na estratégia usada pelo jornalista Studs Terkel para produzir o livro “Division Street: America”, andando durante dois anos pelas ruas de Chicago e colhendo, com um gravador, depoimentos dos transeuntes sobre a cidade.

Daí submetemos à Lei Rubem Braga da PMV o projeto de pesquisa A Cidade Pontual: retrato de Vitória, ES, no início do Terceiro Milênio, que, tendo Miguel Marvilla como proponente, foi aprovado em 2004. Nosso objetivo: registrar o que as pessoas – conhecidas ou anônimas – pensam e sentem sobre a aglomeração vitoriense. Quer dizer, amplificar a voz de quem se expressa somente em circuitos restritos. Consideramos que qualquer aproximação sobre a vida de uma cidade só pode ser entendida se vinculada à memória urbana e, por extensão, ao patrimônio cultural. A memória (tanto de indivíduos como de grupos sociais como de comunidades) representa um bem cultural. Um bem em princípio imaterial, passível de se perder para sempre com a morte de seus depositários.

Diferentemente, porém, dos projetos usuais de preservação da memória, não queríamos lidar com a memória do passado (recuperável mediante o registro de depoimentos pessoais a respeito de acontecimentos, situações e costumes de décadas atrás) mas com o que poderíamos chamar de “memória do presente”. Não era o olhar para trás, muitas vezes romantizado, que queríamos acionar, mas o olhar em volta, o olhar aberto e pontual, o olhar que vê as coisas como elas são hoje e não como foram ou eram anos atrás. É o olhar para fora que nos interessava, para a cidade viva e sólida como um todo, e não para dentro, para a cidade mítica e (para usar o termo de Italo Calvino) invisível que se guarda na memória. É, enfim, o olhar em ponto, o olhar em vigor, o olhar em curso, que se desejava como fundamento ao projeto.



Fabricação histórica

Ao analisarmos agora as entrevistas, as surpresas se sucedem. Um exemplo: pessoas vindas de Minas Gerais, morando em Vitória há anos, definem os capixabas como mais fechados que os mineiros… coisas das peculiaridades humanas. As considerações positivas sobre a cidade são muitas: sua escala, vista como mais hospitaleira por ser relativamente pequena se comparada às grandes metrópoles; a beleza natural, que conjuga mar, praias, céu e morros; as praças e parques ao alcance da mão; a construção ou reforma de escolas e postos de saúde; o incentivo às atividades culturais…

Os aspectos negativos também recebem detalhada anotação. Ressaltemos dois: as modalidades de violência que atingem indivíduos e comunidades; as diferentes poluições – a do ar com gases e pó de minério, a sonora, a do meio ambiente, a social que cria menores desamparados e velhos abandonados.

Certos temas encontram as opiniões divididas – quanto às oportunidades de trabalho, uns garantem, outros têm dúvidas sobre as possibilidades de conseguir uma ocupação; quanto à participação em festas tradicionais, uns gostam, outros são indiferentes ou mesmo colocam restrições. Então se constata que a ilha, sem ser um bolo de noiva, possui muitas camadas que os depoimentos evidenciam. São camadas de tempo, que se acumulam sem cessar; camadas sociais, diferenciadas pela origem familiar, ocupação profissional, formação escolar dos depoentes. São camadas espaciais: o bairro em que a pessoa mora ou trabalha (uma cidadela dentro da cidade maior) influencia sua visão de mundo. Todas elas se intercruzam; fazem a diversidade e o colorido do sítio urbano. Quem lê as opiniões dos informantes percebe o que existe de comum e o que varia entre eles.

Suas observações foram feitas, por assim dizer, ontem, anteontem, há bem pouco tempo e, no entanto, causam certo estranhamento. Lembram o verso de Mário de Sá-Carneiro: “Como Ontem, para mim, Hoje é distância”. Alguns dos entrevistados já faleceram; o tão citado Vital foi para o espaço; os “points” de diversão e namoro se modificaram, embora a Rua da Lama e o Triângulo das Bermudas permaneçam, impávidos; as importações no regime do Fundap diminuíram muito, com reflexos na arrecadação municipal; o incremento da indústria petrolífera trouxe impactos bem maiores no dia-a-dia da cidade; o tráfego urbano se complicou ainda mais com a ausência de transporte público eficiente… A “fabricação” da história se acelera e com ela aumenta a “fabricação” da própria cidade: a vida se altera e, por vezes, se encaminha para destinos insuspeitados. Rapidamente as conjunturas humanas se transformam em memória e, em alguns casos, se convertem em história, depois de criticadas e interpretadas. Resultado: as entrevistas viraram fontes históricas.

As falas colhidas soam como uma conversa descontraída, dessas que temos com amigos em qualquer lugar; ou convidam para um caminhar descompromissado pela cidade. Oriundo de projeto despretensioso, o conjunto de depoimentos configura uma pequena foto de Vitória, um retrato 3×4, como aqueles feitos pelos lambe-lambes do Parque Moscoso. Porém, quanta informação uma simples pose pode nos trazer… Das 100 entrevistas programadas, Rogério Coimbra e Inês dos Santos Neves realizaram 81, de 2004 a 2008. As 19 restantes aconteceram neste ano de 2014 por meio de uma pergunta básica – “Como você vê Vitória hoje?” – mas concedendo ao entrevistado a liberdade de se estender em considerações de qualquer ordem. Todas as cem entrevistas estão inseridas no site Estação Capixaba (www.estacaocapixaba.com.br), administrado por Maria Clara Medeiros Santos Neves, onde ficam à disposição não só de pesquisadores envolvidos com o estudo das cidades contemporâneas, mas também de interessados em geral. A propósito, assinale-se que, por decisão da equipe do projeto no que se refere à redação final dos textos, as entrevistas gravadas foram ligeiramente editadas, principalmente no sentido de eliminar detritos de enunciação tais como cacoetes, bordões, repetições desnecessárias, etc., bem como de garantir a clareza da íntegra dos depoimentos. E, apesar da preocupação de se preservar o mais fielmente possível a dicção própria característica da linguagem falada de cada consulente, em momento algum se cogitou de adotar uma ortografia fonética em detrimento da ortografia oficial, que, com um mínimo de exceções, é a que foi adotada na redação final.

As cidades permanecem como a mais misteriosa criação humana. São os indivíduos que contam na vida urbana – amigos, parentes, colegas, conhecidos, a turma, o grupo de interesse. Se um amigo de longa data foi criado no Morro do Quadro, e se novo amigo ali reside, então aquelas ruas e ladeiras com nomes de santos fazem todo sentido para mim. Seu filho namora uma jovem de Jardim Camburi? Pronto, o bairro adquire novo significado para você. Essa pequena aldeia, essa Vitorinha – apelido que comporta qualquer ironia ou carinho que queiram lhe emprestar – concentra o universo que nos pertence: aqui nossos mortos se entranham, surfam no ar os vindouros, e sob seu sol existimos.

Percebida de diferentes maneiras, Vitória ganhou singelo registro de sentimentos e pensamentos de homens e mulheres compromissados com a ilha por simplesmente nela viverem e trabalharem. A cidade acolhe todos – continua a inspirar os artistas e suscitar mais elogios que reclamações. Para os que a amam de verdade, a cidade não falha.

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Fernando (Antonio de Moraes) Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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