Que loucos somos nós por amarmos cidades? Mesmo sem entendermos direito as razões, nós as amamos. Cidades são femininas, o que sugere uma aproximação… com o desconhecido. Igual a amar as mulheres, convém amar as cidades sem pretender compreendê-las. E, deste modo, gostar da Vitória sensual de muitas curvas, volumes muitos, diversos mistérios a sondar. A expressão maior do nosso amor pelas cidades se concentra nas pessoas. O que existe na ilha capixaba se impregna de gente – nuvens, musgos, velhas paredes, pedras, vidros espelhados, pontes, água da baía, árvores do Maciço Central, morros, ruas, praças. E o passear dos navios no seu porto íntimo.
Das musas com que se pode esbarrar na vida, as cidades costumam ser as mais gratas e fieis. Para os cultores de todas as artes, Vitória é uma festa: o Cais do Avião, o antigo perfume de café torrando na Avenida Vitória, o relógio da Praça Oito, a luta dos ventos sul e nordeste no ringue insular, a miséria do homem de rua na Praia do Canto, a riqueza do Mercado da Vila Rubim, festas e tipos populares. Mas o que o homem comum tem a dizer sobre tudo isso?
O projeto
A preocupação em registrar opiniões corriqueiras sobre Vitória (outra forma de expressar amor pela cidade?) deu origem a um trabalho. A partir da obra “Rio de Janeiro: um retrato (a cidade contada por seus habitantes)”, organizada por Fausto Wolff e publicada em 1990, Rogério Coimbra, Reinaldo Santos Neves e eu pensamos em fazer algo semelhante sobre a capital capixaba. E, como não há nada de novo sob o sol, diga-se de passagem, como de passagem o disse o próprio Wolff, que ele mesmo se inspirou na estratégia usada pelo jornalista Studs Terkel para produzir o livro “Division Street: America”, andando durante dois anos pelas ruas de Chicago e colhendo, com um gravador, depoimentos dos transeuntes sobre a cidade.
Daí submetemos à Lei Rubem Braga da PMV o projeto de pesquisa A Cidade Pontual: retrato de Vitória, ES, no início do Terceiro Milênio, que, tendo Miguel Marvilla como proponente, foi aprovado em 2004. Nosso objetivo: registrar o que as pessoas – conhecidas ou anônimas – pensam e sentem sobre a aglomeração vitoriense. Quer dizer, amplificar a voz de quem se expressa somente em circuitos restritos. Consideramos que qualquer aproximação sobre a vida de uma cidade só pode ser entendida se vinculada à memória urbana e, por extensão, ao patrimônio cultural. A memória (tanto de indivíduos como de grupos sociais como de comunidades) representa um bem cultural. Um bem em princípio imaterial, passível de se perder para sempre com a morte de seus depositários.
Diferentemente, porém, dos projetos usuais de preservação da memória, não queríamos lidar com a memória do passado (recuperável mediante o registro de depoimentos pessoais a respeito de acontecimentos, situações e costumes de décadas atrás) mas com o que poderíamos chamar de “memória do presente”. Não era o olhar para trás, muitas vezes romantizado, que queríamos acionar, mas o olhar em volta, o olhar aberto e pontual, o olhar que vê as coisas como elas são hoje e não como foram ou eram anos atrás. É o olhar para fora que nos interessava, para a cidade viva e sólida como um todo, e não para dentro, para a cidade mítica e (para usar o termo de Italo Calvino) invisível que se guarda na memória. É, enfim, o olhar em ponto, o olhar em vigor, o olhar em curso, que se desejava como fundamento ao projeto.
Fabricação histórica
Ao analisarmos agora as entrevistas, as surpresas se sucedem. Um exemplo: pessoas vindas de Minas Gerais, morando em Vitória há anos, definem os capixabas como mais fechados que os mineiros… coisas das peculiaridades humanas. As considerações positivas sobre a cidade são muitas: sua escala, vista como mais hospitaleira por ser relativamente pequena se comparada às grandes metrópoles; a beleza natural, que conjuga mar, praias, céu e morros; as praças e parques ao alcance da mão; a construção ou reforma de escolas e postos de saúde; o incentivo às atividades culturais…
Os aspectos negativos também recebem detalhada anotação. Ressaltemos dois: as modalidades de violência que atingem indivíduos e comunidades; as diferentes poluições – a do ar com gases e pó de minério, a sonora, a do meio ambiente, a social que cria menores desamparados e velhos abandonados.
Certos temas encontram as opiniões divididas – quanto às oportunidades de trabalho, uns garantem, outros têm dúvidas sobre as possibilidades de conseguir uma ocupação; quanto à participação em festas tradicionais, uns gostam, outros são indiferentes ou mesmo colocam restrições. Então se constata que a ilha, sem ser um bolo de noiva, possui muitas camadas que os depoimentos evidenciam. São camadas de tempo, que se acumulam sem cessar; camadas sociais, diferenciadas pela origem familiar, ocupação profissional, formação escolar dos depoentes. São camadas espaciais: o bairro em que a pessoa mora ou trabalha (uma cidadela dentro da cidade maior) influencia sua visão de mundo. Todas elas se intercruzam; fazem a diversidade e o colorido do sítio urbano. Quem lê as opiniões dos informantes percebe o que existe de comum e o que varia entre eles.
Suas observações foram feitas, por assim dizer, ontem, anteontem, há bem pouco tempo e, no entanto, causam certo estranhamento. Lembram o verso de Mário de Sá-Carneiro: “Como Ontem, para mim, Hoje é distância”. Alguns dos entrevistados já faleceram; o tão citado Vital foi para o espaço; os “points” de diversão e namoro se modificaram, embora a Rua da Lama e o Triângulo das Bermudas permaneçam, impávidos; as importações no regime do Fundap diminuíram muito, com reflexos na arrecadação municipal; o incremento da indústria petrolífera trouxe impactos bem maiores no dia-a-dia da cidade; o tráfego urbano se complicou ainda mais com a ausência de transporte público eficiente… A “fabricação” da história se acelera e com ela aumenta a “fabricação” da própria cidade: a vida se altera e, por vezes, se encaminha para destinos insuspeitados. Rapidamente as conjunturas humanas se transformam em memória e, em alguns casos, se convertem em história, depois de criticadas e interpretadas. Resultado: as entrevistas viraram fontes históricas.
As falas colhidas soam como uma conversa descontraída, dessas que temos com amigos em qualquer lugar; ou convidam para um caminhar descompromissado pela cidade. Oriundo de projeto despretensioso, o conjunto de depoimentos configura uma pequena foto de Vitória, um retrato 3×4, como aqueles feitos pelos lambe-lambes do Parque Moscoso. Porém, quanta informação uma simples pose pode nos trazer… Das 100 entrevistas programadas, Rogério Coimbra e Inês dos Santos Neves realizaram 81, de 2004 a 2008. As 19 restantes aconteceram neste ano de 2014 por meio de uma pergunta básica – “Como você vê Vitória hoje?” – mas concedendo ao entrevistado a liberdade de se estender em considerações de qualquer ordem. Todas as cem entrevistas estão inseridas no site Estação Capixaba (www.estacaocapixaba.com.br), administrado por Maria Clara Medeiros Santos Neves, onde ficam à disposição não só de pesquisadores envolvidos com o estudo das cidades contemporâneas, mas também de interessados em geral. A propósito, assinale-se que, por decisão da equipe do projeto no que se refere à redação final dos textos, as entrevistas gravadas foram ligeiramente editadas, principalmente no sentido de eliminar detritos de enunciação tais como cacoetes, bordões, repetições desnecessárias, etc., bem como de garantir a clareza da íntegra dos depoimentos. E, apesar da preocupação de se preservar o mais fielmente possível a dicção própria característica da linguagem falada de cada consulente, em momento algum se cogitou de adotar uma ortografia fonética em detrimento da ortografia oficial, que, com um mínimo de exceções, é a que foi adotada na redação final.
As cidades permanecem como a mais misteriosa criação humana. São os indivíduos que contam na vida urbana – amigos, parentes, colegas, conhecidos, a turma, o grupo de interesse. Se um amigo de longa data foi criado no Morro do Quadro, e se novo amigo ali reside, então aquelas ruas e ladeiras com nomes de santos fazem todo sentido para mim. Seu filho namora uma jovem de Jardim Camburi? Pronto, o bairro adquire novo significado para você. Essa pequena aldeia, essa Vitorinha – apelido que comporta qualquer ironia ou carinho que queiram lhe emprestar – concentra o universo que nos pertence: aqui nossos mortos se entranham, surfam no ar os vindouros, e sob seu sol existimos.
Percebida de diferentes maneiras, Vitória ganhou singelo registro de sentimentos e pensamentos de homens e mulheres compromissados com a ilha por simplesmente nela viverem e trabalharem. A cidade acolhe todos – continua a inspirar os artistas e suscitar mais elogios que reclamações. Para os que a amam de verdade, a cidade não falha.
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Fernando (Antonio de Moraes) Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)