“Uma modigliani em minha sala,” pensou Pedro ao sentar-se atrás da sua Olivetti, na delegacia da Chapot Presvot.
De fato, ali estava uma garota magra e longa como uma figura de Modigliani. Seu rosto em V era alvo, alvas eram as suas mãos, alvo o colo meio que escondido mas não tanto, e alvo também — um belo alvo — o retalho de coxa que ela exibia com as pernas deleitosamente cruzadas.
Com o cenho franzido, a jovem analisava a escultura que Pedro tinha num pequeno pedestal, atrás da sua mesa — um crânio humano sobre um livro aberto.
“Meio brega esta sua decoração. É um crânio de verdade?” perguntou a Modi, derivando para o escrivão seus olhos de catarata do Niágara.
“É de louça inglesa,” respondeu Pedro, respingado da água atordoante.
“Objeto de estimação?” indagaram as cataratas.
“Tem uma procedência especial. Pertenceu a um professor de literatura portuguesa, já falecido. Sou muito amigo dos filhos dele.”
“E tem algum significado também especial?”
“O significado que você quiser lhe dar. Para mim, mostra a transitoriedade da existência humana,” filosofou o escrivão, arrematando com o verso do poeta: “Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro!”
“Interessante, muito interessante…” pestanejaram as cataratas.
“Mas o que trouxe você até aqui?” burocratizou Pedro a conversa, empertigando-se na posição de datilógrafo.
“Estamos aqui para fazer uma queixa,” disse ela.
“Tem mais alguém ainda por chegar?” indagou Pedro.
Ela deu um risinho de nível superior e explicou:
“É que eu uso a primeira pessoa do plural quando falo de mim mesma.”
“E vocês querem se queixar de quê?” tirou o escrivão a sua casquinha, naquele plural majestático e risonho.
Ela fingiu não notar a rebatida, e prosseguiu:
“Trata-se de um assédio sexual, de que estamos sendo vítima.”
“E como você se chama?” perguntou Pedro, retomando o tratamento singularizado.
“Dayse Montenegro.”
“E qual o nome dele?”
“Dele quem?” espantou-se ela, abrindo e fechando as catadupas.
“Do homem que a está importunando.”
“Não é homem, é mulher,” esclareceu Dayse com desembaraço moderninho.
Pedro achou que era hora de pedir apoio a um Carlton conselheiral. Sacou o cigarro da carteira, acendeu-o e tragou abissalmente um naco de fumaça, enchendo os pulmões para mergulhar até o extremo fundo das relações humanas. Quando reatou o interrogatório estava certo de que não seria entendido:
“Virago, então?”
Ela, porém, entendeu.
“Virago indisfarçável. Para ser mais explícita, só falta fumar charuto com o mesmo ardor com que você fuma cigarro.”
Pedro coriscou um risinho discreto de quem estava começando a apreciar o diálogo com a modigliana e revelou sua íntima satisfação numa segunda baforada de fumaça. A seguir, indagou, de fumacê à cabeça:
“E você tem testemunhas ou provas do assédio que está sofrendo?”
“Algumas pessoas já perceberam, mas prova provada ainda não temos. Estas coisas são difíceis de conseguir quando não se passam em público. E em público nunca se passam ou ficam disfarçadas,” disse ela, revelando conhecimento da tática de abordagem.
“O assédio se verifica mesmo na presença de estranhos?” aprofundou Pedro a investida.
“E por que não? Toda mulher sabe quando um homem a está assediando, por mais que ele disfarce.”
“Mas você não disse que se tratava de uma virago?”
“Não é a mesma coisa? Homem, sapatão… O objetivo é o mesmo — o triângulo da bermuda,” disse ela, saboreando a própria espirituosidade. “Aliás, ‘elas’ são mais ousadas do que eles,” acrescentou, arregalando as catadupas.
“E já houve assédio em locais privados?” E temos o escrivão numa pergunta de interesse discutível.
“Acontece quando ficamos sozinhas.”
Pedro precisou de tempo para perceber que, desta vez, aquele ficamos sozinhas não era o plural majestático do jargão de Dayse, mas uma referência à ação da sua cortejadora.
“E é comum vocês ficarem a sós?”
“Sim, porque ela é nossa professora de artes plásticas. Ela dá aula para várias garotas, como eu, e até para mulher casada. Mas é conosco que se engraçou, arrastando a asa principalmente quando acontece de ficarmos apenas nós, em seu ateliê.”
“Por que você não muda de professora?” perguntou Pedro.
“Porque o curso foi pago à vista, para obter abatimento. Agora temos que ir até o fim. No começo, ainda dava para agüentar. Eram certos olhares, que fingíamos não entender… Com o tempo, porém, o cerco foi aumentando, através de insinuações e gestos. Ficou insuportável! Ainda ontem ela roçou o cotovelo em nossos seios e, quando a encaramos, pediu desculpas como se fosse sem querer. Nesse ritmo vai acabar querendo nos beijar!”
“Além desse tipo de abordagem, já houve algum forçamento de barra?”
“Não, isso não! Ela é muito sofisticada para arriscar um quebra-quarteirão. Lembra-se que nós lhe dissemos que se trata de uma professora de artes plásticas? Na verdade, além de professora, é uma artista muito conceituada, com exposições realizadas em Vitória e no Exterior. Até em Londres já se apresentou. Agora está se preparando para uma turnê em Florença.”
“Uma vida cosmopolita,” comentou Pedro.
“De certo modo, bem invejável.”
“Mas você ainda não me disse o nome dela.”
“Porque você não perguntou.” E as cataratas envolveram o escrivão num jorro derramado.
“Então, vamos lá: preciso de nome e endereço para intimá-la,” disse Pedro, desprendendo pelas narinas duas paralelas de fumaça, o que raramente fazia.
Dayse passou-lhe os dados. Pedro anotou-os, acabou de datilografar a queixa e pediu que ela assinasse.
“Pronto?” (Cataratas abertas para Pedro.)
“Pronto.”
“Aguarde notícias,” disse ele, à beira de mergulhar no despenhadeiro d’água à sua frente.
“Então, tchauzinho.”
“Tchauzinho.”
Três dias depois, toca o telefone.
“Alô?”
“É Pedro?”
“Sim.”
“Aqui é Dayse, está lembrado? Dayse Montenegro… Estivemos com você dando queixa contra a nossa professora…”
Pedro lembrou-se “delas”, mas indagou reducionista:
“Em que posso servi-la?”
“Dá para cancelar a reclamação?”
“Só se for pedido por escrito…”
“Pode ser por fax?”
“Nosso fax está com defeito.”
“Então, Pedro, não dê andamento ao processo porque estamos indo a uma exposição de artes em Florença…”
“Estamos?”
“Estamos!”
“Você mais…?”
“Eu mais…E o culpado foi você…”
“Eu?!”
“Você, com a observação sobre a transitoriedade da existência humana, diante da caveira em sua sala, lembra-se? Agora estamos indo pra Florença.”
“Nesse caso, aproveitem bastante.”
“Não precisa nem falar…” disse ela, desligando.
Pedro pôs o fone no gancho e lembrou-se do verso de Ezra Pound: “Deveríamos, penso eu, dizer em termos civilizados: ‘Dane-se’.”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)