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XII. Aclimação

Não se tratará, aqui, em toda a sua amplitude, do problema da aclimação, que volta, agora, a ser objeto de animados debates. Formulamos nossos pontos de vista a respeito, em trabalhos e conferências, utilizando nossas observações no Espírito Santo.

Procuraremos, apenas, esclarecer se há fundamentos para a suposição de as colônias de alemães no Espírito Santo servirem, como exemplo, de adaptação feliz de uma população de origem teuta do ambiente tropical.

Rodenwaldt (Tropenhygiene, Verlag Enke Stuttgart 1938) advertiu, com razão, que se discutiu tanto o assunto, sem resultados, porque consideraram os trópicos e o clima como se formassem uma unidade. Há, nessas latitudes, todas as possíveis gradações e variações do “clima tropical”, de modo que podem variar, apreciavelmente, nas diversas regiões, as condições climáticas particulares, segundo o paralelo geográfico, a altura, proximidade do mar, condições do vento etc. Quando já se encontram dificuldades para uma definição uniforme de alma tropical, excetuados os fatores fundamentais, calor e umidade, maiores serão elas ainda, quando se procura conceituar a “aclimação”. Reconhece-se, geralmente, a diferença entre aclimação pessoal, ou individual, durante certo tempo, ou durante toda a vida, e a de uma raça ou a aclimação, através de várias gerações, de grupos populacionais inteiros. O exame do problema de aclimação é dificultado por não se tratar apenas de adaptação corporal ou sanitária, mas também da transformação da vida espiritual: a adaptação psíquica e cultural entram na controvérsia. Um julgamento do resultado da aclimação é perturbado, também, por não estarmos em posição de acompanhar uma seqüência maior de gerações de colonos, que tenham permanecido sem miscigenação, radicadas ao solo tropical. Por fim, releva distinguir, ainda, entre “aclimação” e “resultados da colonização”, cujo êxito depende não só de condições climáticas, mas também da capacidade física e espiritual do imigrante, da situação e dos métodos econômicos, das possibilidades de transporte e de colocação dos produtos, e last but not least, da educação e da escola. Em regra, quando se fala de “aclimação”, não se pensa, apenas, na adaptação ao clima, mas no conjunto das condições e influências do ambiente tropical.

Não se podem alcançar decisões básicas no tocante às questões de aclimação e colonização, segundo o que se tem dito sobre o assunto, com exemplos isolados ou através da observação de determinadas regiões de povoamento. Não é possível formular a respeito como se tem acentuado, afirmação com validade geral. Concordamos com Rodenwaldt, em que uma aclimação bem sucedida em determinadas regiões ou sob condições especiais nada significa em face do problema geral da aclimação do europeu nos trópicos. Mas, justamente essas regiões, nas quais se alega ter havido um povoamento bem sucedido, devem ser apreciadas em confronto com as numerosas experiências negativas e, conforme Rodenwaldt reconhece, devem ser examinadas, com cautela e aguçado espírito crítico.

Não nos parece justificado deixar num debate do problema de aclimação, uma região como o Espírito Santo, porque está na borda dos trópicos, não se situando diretamente nas terras baixas tropicais; ou porque o número de famílias que lá vivem é demasiadamente pequeno. Pensamos, ao contrário que o Espírito Santo se presta para pôr à mostra, pelo menos, alguns fatores que favorecem a aclimação e para caracterizá-los, com segurança. Verificou-se, no Brasil, que colônias de alemães, situadas bem mais ao sul, na região subtropical, apresentam condições muito mais desfavoráveis e uma evidente decadência espiritual e corporal.[ 1 ] Se, no Espírito Santo, situado mais para o norte, na borda da faixa tropical, as condições se afiguram mais favoráveis, cabe perguntar a que fatores se deve o acontecimento e, em que medida, podem eles, talvez, atuar, decisivamente, noutras regiões de povoamento.

Não se observam influências prejudiciais, diretas, do clima, na população de origem teuta, do Espírito Santo.

Pode-se, no conjunto, considerar sadio, o clima da região alta, com maiores oscilações diárias e períodos chuvosos mais frios (esfria, à noite, até 4 a 5 graus); também são raras as perturbações diretas à saúde, ocasionadas pelo clima da região baixa. Este se manifesta, no seu aspecto negativo, através da maior freqüência de doenças infecciosas, do pior abastecimento de água, da pior alimentação etc. Pareciam ataques de insolação, uma vez que os colonos, desde a infância, conhecem o perigo. Não se encontra ninguém com a cabeça descoberta: usam-se chapéus, geralmente de abas largas; as mulheres põem um pano na cabeça; os homens, quando trabalham no campo, costumam também proteger a cabeça com um pano. Conforme parecia a Wagemann, o clima da região baixa, ao contrário do da alta, atua de maneira “enervante” gerando a tibieza e o enfraquecimento da capacidade de realização no domínio econômico. Embora esse fato tenha caráter geral, vêem-se, também, nas comunidades da região baixa, colonos, com saúde e em boa situação econômica, não se observando neles nada que denote as influências climáticas desfavoráveis. Deparamos diferenças notáveis, relacionadas sempre com determinadas famílias. A suposição de que a adaptação ao clima da região baixa é mais possível e mais rápida para os colonos nascidos no Espírito Santo, do que para os recém-imigrados da Alemanha, encontra, sem dúvida, uma confirmação nesses colonos.[ 2 ] Wagemann lembra, a esse respeito, as conclusões de Nocht, no Congresso Colonial Alemão de 1910, relativas aos povoadores da Queenslândia Setentrional.

Questão importante e, ao mesmo tempo, litigiosa é a de saber se o branco tem capacidade duradoura para uma atividade corporal intensiva, ou se, pelo contrário, sua capacidade de produção reduz-se, progressivamente, sob a influência do clima. Nossas observações no Espírito Santo, nesse sentido, revestir-se-ão, talvez, de maior interesse, por se ter lá desenvolvido outra geração, livre quase, de influências estranhas, após o aparecimento do livro de Wagemann.

Wagemann observara que, no decorrer do tempo, a energia dos colonos de lá tem, antes, aumentado que diminuído, e nós mesmos nos convencemos que a situação, até hoje, não se modificou. A natureza e a duração do trabalho permaneceram de modo geral, as mesmas que Wagemann descreve. O trabalho, no inverno, dura, em média, cerca de 8 horas; no verão, um pouco menos. Exceto uma breve pausa, por ocasião da primeira refeição, e um descanso, quando reina o calor do meio dia, de, aproximadamente três horas, as pessoas estão em atividade, desde o alvorecer, em casa e no terreiro (neste caso, preferencialmente pela manhã cedo e ao anoitecer), e o tempo restante, em regra, no campo. Então tem-se de realizar, muitas vezes, o trabalho mais árduo, como derrubada da mata, abertura de caminho, lavragem de madeira com os meios mais primitivos, o machado e a serra, muitas horas a cavalo etc. Quando as circunstâncias o exigem aumenta-se ou diminui-se o tempo de trabalho. Dura, muitas vezes, 11 a 12 horas, por ocasião da colheita de café. Em dias extraordinariamente cálidos, não se vai para o campo, as pessoas só fazem os trabalhos mais leves de casa. O camponês dá o maior valor a um sono abundante. Quando possível, vai para cama pelas 8 ou 9 horas, e só se levanta ao alvorecer, de modo que dorme, em média, 9 horas. A simplicidade e a uniformidade da vida, o sono abundante, a alimentação suficiente parecem favorecer as possibilidades de adaptação. O bom estado de saúde e a capacidade de trabalho dos colonos teutos, no Espírito Santo, decorrem, sem dúvida, do modo de vida, em geral metódico, caracterizado pela boa alimentação, bastante trabalho corporal, a que estão acostumados desde a juventude, e pelo sono reparador, determinado pelo cansaço natural. De qualquer modo, ficamos com a impressão de que a população de origem teuta, inclusive a terceira geração, realiza, pelo menos tanto trabalho corporal quanto o trabalhador braçal na Alemanha, tendo capacidade para dar conta das tarefas, com que noutras regiões dos trópicos se costuma sobrecarregar apenas os nativos.

Não se nota, no Espírito Santo, degenerescência física da descendência em virtude de dano ocasionado pelo clima, tão pouco modificação de desenvolvimento constitucional. A degeneração “aparente” é constituída por alterações do tipo, de natureza somática individual (fenotipicamente condicionadas) (phenotypisch hedingte), causadas, em regra, por opilação, modo de alimentação, ou por outras influências externas. Não seriam de esperar modificações, hereditárias determinadas pelo clima, após tão poucas gerações.

Levantou-se, do ponto de vista da higiene da raça, a objeção de que o número elevado de nascimentos e o forte crescimento demográfico não seriam, por si mesmos, valores positivos. Mas, por outro lado, uma taxa de crescimento anormalmente alta não significa, necessariamente, que os rebentos sejam de pouco valor.

A pouca freqüência no tempo dos elementos mais valiosos, que se reproduzem com maior vigor, não se presta para comparar com as condições do Espírito Santo, onde a abundância de filhos é uma necessidade econômica, não sobrecarregando a família, mas trazendo o desejado aumento de mão de obra. As melhores famílias, economicamente melhor asseguradas são, em regra, as de prole numerosa. Ressalta, dos números apresentados sobre a relação entre nascimentos e óbitos que a prole em regra, não só está em condições de viver, mas também tem boas perspectivas de vida. Esta verificação não representa nenhum dado absoluto para medir o valor eugênico da população. Entretanto, deve-se considerar com valor positivo, a taxa demográfica sempre alta, sobretudo em face da ausência de doenças hereditárias e da existência de fatores seletivos, até certo ponto eficazes, e tendo-se em vista outras regiões onde, juntamente com condições econômicas desfavoráveis, se manifesta progressiva diminuição de nascimentos, aumento da mortalidade ou miscigenação com outras raças.

Convém, ainda, esclarecer se não ocorreu uma decadência anímica ou espiritual, motivada pelo clima tropical, uma “degeneração psíquica”, que, noutras regiões, tem desempenhado, sem dúvida, um papel decisivo no malogro das tentativas de povoamento. Considerando-se, apenas, o grau de educação e a aptidão espiritual dos colonos, ao comparar sua situação cultural com as condições reinantes na Alemanha, chega-se à conclusão de que existe uma inferioridade espiritual. Esta porém, não representa, na realidade, uma “manifestação degenerescente”; provocada pelas peculiaridades do clima tropical. Se faltam idéias que são naturais a qualquer menino na Alemanha, por crescerem em contato com elas, se há pessoas, no Espírito Santo, que ainda não viram um automóvel ou não conhecem um avião, e se os garotos não acreditam que exista cinema, o afastamento do mundo, o isolamento, a escassa formação escolar já constituem, por si mesmos, uma explicação suficiente para esse atraso. Por isso, é quase impossível uma decisão segura, no sentido de determinar em que medida fatores climáticos são responsáveis pelo atraso espiritual e pela falta de um desenvolvimento crescente. As colônias do Volga, com sua população de origem teuta, outrora florescentes, estavam, antes do bolchevismo, numa situação econômica muito boa, mas, do ponto de vista cultural, não podiam se manter no nível de qualquer população camponesa da Alemanha, apesar da extensão muito maior da área de colonização, da densidade demográfica, do desenvolvimento de localidades com condições de transporte favoráveis e com boas escolas, porque viviam, também, num espaço de colonização geograficamente isolado, e tinham perdido o estreito contato com a pátria de origem.

A classificação das experiências de aclimação ou de colonizações, como bem ou mal sucedidas, depende dos padrões escolhidos ou das esperanças que nelas depositamos. Não se deve, evidentemente utilizar medidas mesquinhas. Mas, se só admitirmos uma adaptação, quando uma população transplantada para os trópicos realiza a mesma proporção de trabalho corporal ou ainda mais do que na região temperada, e anseia por um desenvolvimento espiritual e cultural independente, apesar do desligamento da pátria original, sem o auxílio do país que a acolhe, então, desesperançados, teríamos de repudiar, de início, qualquer tentativa de aclimação ou de colonização.

Não podemos afirmar existirem, no Espírito Santo, todos os pressupostos para o êxito total de uma colonização nos trópicos. No exemplo do Espírito Santo, porém, vemos os obstáculos mais nos fatores econômicos, na carência cultural, do que nos fenômenos climático-meteorológicos e, por isso, acreditamos ter ocorrido lá uma adaptação bem sucedida”. Se a população (apesar da falta de direção intelectual e de orientação, apesar da instrução escassa, das condições econômicas pouco favoráveis, apesar da falta de cuidados médicos e de higiene) resistiu ao clima, realizou com pesado esforço corporal, o melhor que se podia esperar, e povoou novas áreas, permanecendo germânica, no caráter e na índole, na língua e na fé, revelando, através de diversas gerações, capacidade de trabalho e de reprodução foram preenchidos os pressupostos que, a nosso ver, compõem o conceito de uma aclimação bem sucedida”.

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NOTAS

[ 1 ] Giemsa e Nauk: Rasse und Gesundheitserhaltung sowie Siedlungsfragen in den warmen Laendern. Arch. f. Schiffs-u. Tropenhyg. 1937, volume 41, caderno 1, p. 9. Giemsa: Ein deutschstaemmiges, im brasilianischen Staate Espírito Santo bodenständig gewordenes Kolonistenvolk. Koloniale Rundschau 1937, volume 28, caderno 3, p. 200. Nauck: Ist eine Dauersiedlung deutscher Auswanderer in den Tropen moeglich? Der deutsche Auswanderer 1937, volume 4. Nauck: Die Aklimatisation und ihre Redeutung fuer die Siedlung in den Tropen, Zeitschr. d. G. f. Endrk. Nr. 3/4, p. 81. Nauck: Akklimatisation und Siedlung in den Tropen. Umschau 1938. Ano 42. Caderno. 42, p. 960.
[ 2 ] K. P. Mueller: Soll der Deutsche in tropischen Gebieten siedeln? Auslandsd. Volksf. 1937. I. Caderno 1, p. 76.

[GIEMSA, Gustav, NAUCK, Ernst G. Uma viagem de estudos ao Espírito Santo: pesquisa demo-biológica, realizada, com o fim de contribuir para o estudo do problema da aclimação, numa população de origem alemã, estabelecida no Brasil Oriental. Trabalho publicado pela Universidade de Hanseática, Anais Geográficos (continuação dos Anais do Instituto Colonial de Hamburgo, vol. 48), série D, Medicina e Veterinária, vol. IV, Hamburgo, Friederichsen, De Gruyter & Co., 1939, traduzido para o português por Reginaldo Sant’Ana e publicado no Boletim Geográfico do Conselho Nacional de Geografia, n. 88, 89 e 90, 1950].

Gustav Giemsa nasceu na Alemanha a 20 de novembro de 1867 e faleceu a 10 de junho de 1948. Foi químico e bacteriologista e alcançou notoriedade pela criação uma solução de corante conhecida como “Giemsa”, empregada para o diagnóstico histopatológico da malária e outros parasitas, tais como Plasmodium, Trypanosoma e Chlamydia. Estudou Farmácia e mineralogia na Universidade de Leipzig, e Química e Bacteriologia na Universidade de Berlim. Entre 1895 e 1898 Giemsa atuou como farmacêutico na África Oriental Alemã. Em 1900 tornou-se chefe do Departamento de Química Institut für Tropenmedizin em Hamburgo.
Ernst G. Nauck nasceu em São Petersburgo, Alemanha, em 1867, e faleceu em Benidorm, Espanha, em 1967. Especialista em doenças tropicais. 

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