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Artigo 1

Vista de Vitória, 1867. Acervo Biblioteca Nacional.
Vista de Vitória, 1867. Acervo Biblioteca Nacional.

A antiga vila da Vitória, hoje capital do Espírito Santo pela nova divisão política, traçada pelo plano do direito das gentes, que constituiu, moveu e consolidou nossa independência, caracterizando-nos como um povo livre da direção da metrópole portuguesa, situada na ilha Duarte de Lemos, desde sua fundação recebeu, pelo costume de nossos avoengos e seus sentimentos políticos e religiosos, as tradições festivas que vamos descrever com a mais fiel imparcialidade, para conhecermos e avaliarmos a marcha progressiva dos acontecimentos que determinam o nosso presente e o nosso passado. Os hábitos são o resultado da educação e nos predispõem para os futuros cometimentos. Dando-nos triunfos ou derrotas, ativam e desenvolvem o espírito para as reformas que só a prática sugere nos longos períodos de decadência e vida de todos os povos. Os diversos termos dos sucessos na carreira da vida servem de comparação para acharmos a conveniência ou desconveniência dos meios que resolvem o problema da felicidade humana. Às vezes falham os cálculos desse jogo, ainda o mais bem combinado, ou por um acaso imprevisto, revoluções na ordem física e moral, ou porque uma razão desvairada pelos caprichos das paixões, congênitas à natureza humana, ultrapassa as raias do seu ser finito. Os diversos períodos da decadência e progresso dos povos são a consequência inevitável da tibieza e excessos do espírito humano. Essas fases mostram a escassez e a plenitude da luz que raiou em seus horizontes.

As guerras entre Esparta e Atenas, entre Cartago e Roma, e as revoluções intestinas da realeza e democracia, prepararam a idade de ouro, que Virgílio vaticinara nas Églogas, seu poema lírico.

E estudando o passado, corrigindo os erros da infância dos povos, que a filosofia e a legislação avigoraram a sua virilidade e cercaram de garantias e prestígio a sua senectude, embalando-a no regaço da paz da consciência pela segurança pública e particular de seus direitos e seus deveres.

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Fidalgos portugueses, a quem coube em partilha a província pelos serviços prestados em antigas conquistas de Málaca, de Diu e do Ceilão, empórios do comércio ávido de Portugal, cheios de prejuízos e preconceitos de raça, ditaram-nos os seus costumes, e estatuíram entre nós os jogos e espetáculos de sua vida pública e familiar.

Brasileiros e portugueses, ligados pelos laços de sangue, sociedade e família, como os albanos e romanos, deviam insinuar e trocar entre si essa íntima familiaridade que coloriu o quadro que vamos descrever, aos traços de nossas grosseiras cores. Sentimos que não seja nossa palheta variada e que a tela não possua a firmeza e finura para fazê-los bem sobressair.

Os jesuítas, por sua parte, que para a propagação dos elementos da fé cristã se apoderavam dos povos, imprimindo em corações novos, ardentes de curiosidade, e inclinados ao maravilhoso, diante de uma natureza rica de encantos, implantaram em sua seiva prodigiosa as primeiras noções que deveriam abrilhantar o teatro de suas glórias e conquistas!

Uns e outros, de mãos dadas, fidalgos e padres, portugueses e espanhóis, a monarquia e a teocracia, irmãs de um pensamento político-religioso que sustentava o cetro e a tiara, engolfados num pélago insondável de ambições que lhes sorriam o futuro, rico de esperanças para o governo do povo, curvando aos degraus de seu trono, subserviente ao mando de seu poderio, estabeleceram as festas em honra da pátria e da religião, ocultando nelas os fins de seus altos projetos.

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É necessário que falemos com esse espírito filosófico que descobre nos fatos e circunstâncias da vida política e religiosa dos povos os planos de suas doutrinas, por onde se encaminham os raios, tirados de um centro comum, e os quais tendem todos a tocar os pontos da esfera que um dedo de mestre traçou, para circunscrever os voos do pensamento, desejoso de esvoaçar regiões desconhecidas que hoje a ciência descortina.

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Desde os primeiros anos de minha juventude, distraído por tantos entusiasmos populares, nas horas de meu recreio, a curiosidade, tão própria desse tempo em que o espírito se entreabre às primeiras impressões, que falam ora aos sentimentos, ora às sensações, conforme a índole e a tendência do indivíduo, elevando o seu talento ou subjugando os sentidos, me levou com a onda do povo, mas de um modo diverso e com vistas mais elevadas, pela instrução que me proporcionavam meus pais e mestres, a presenciar e mais tarde a partilhar, em papeis adequados, das festas que punham em movimento a folgazã população da cidade da Vitória, meu berço natal, fidalgos e plebeus, ricos e pobres, vilões[ 1 ] e campônios, senhores e escravos, militares e paisanos, e até os sacerdotes, cotizavam-se entre si, reunindo-os um só pensamento, para festejar as solenidades da pátria, que se associava, com justa razão, aos sentimentos nacionais.

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NOTAS

[ 1 ] Nesse contexto, habitante de vila.

Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto)Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense,  Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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