Assim, pelo nascimento e coroação de um príncipe, como foi o de Pedro II, erguia-se, no plano que termina a ladeira do palácio, residência dos antigos governadores e hoje dos presidentes da província,[ 1 ] junto à velha casinha em que habita a família do Major Paula, prestimoso cidadão, antigo mestre de música profana e religiosa, uma grande barraca coberta com o velame de embarcações, elevada do solo dois metros, assoalhada, e ali se montava um teatro com aqueles bastidores antigos, próprios para os quadros dos dramas e comédias da velha escola que tantas lágrimas faziam derramar às pessoas sentimentais e outros tantos risos provocavam aos galhofeiros.
De um e outro lado, em toda extensão da ladeira, viam-se camarotes, adornados de cortinas e bambinelas,[ 2 ] de variegadas cores, que protegiam do sereno as famílias e os cavalheiros mais distintos da nossa sociedade. O resto do povo sentava-se em bancos, cadeiras, tamboretes e até esteiras!
Conforme as posses de cada um, iluminavam esses camarotes com globos de vidro, com lanternas de duas faces, tendo as frentes ornadas de festões e grinaldas, que lhes davam um aparatoso realce!
À frente do teatro grimpavam gigantes palmeiras, entrelaçadas de heras e parasitas. Os ramos de murta, consagrados a Vênus pela Mitologia, enfeitavam as colunas e capitéis que formavam a boca do teatro.
O grande pano que protegia o cenário tinha pintado o quadro histórico de Sansão, escancarando as fauces do leão que o acometera. Era obra do pincel do amador e talentoso Gomes Neto.
A frente do pano estavam em ordem, bem dispostas, tigelinhas de barro que foram mais tarde substituídas por copinhos, cheias de azeite de peixe,[ 3 ] que, umedecendo capulhos[ 4 ] de algodão, ateavam com o fogo chamas que derramavam a luz por todo o espaço exterior e interior do palco.
Pela instrução que nos deu o mestre de cena,[ 5 ] ensaiador e contra-regra Souza Ribeiro, natural da Bahia, onde era profissional na matéria, ali havia entrada alta e baixa, direita e esquerda, distribuindo-se os papéis conforme o caráter de cada um.
Representaram-se ali Inês de Castro, Dom José I, O Poeta e a Inquisição, Os Salteadores de Mongrève, Zulmira, O Juiz de Paz da Roça, Zanguizarra, O Aprendiz de Ladrão, O Doutor Sovina, Quem Casa Quer Casa, O Irmão das Almas, Judas em Sábado de Aleluia, precedendo-as monólogos em verso heróico, adequados aos assuntos da festa, obras do talentoso padre Marcelino, padre Fraga e padre Sales.
Odes, sonetos, décimas, sextilhas eram recitadas dos camarotes e até do próprio palácio dos presidentes!
A ouverture tocava a singela música, composta de um violoncelo, uma rabeca,[ 6 ] dois violões e, às vezes, uma guitarra, executando polcas e contradanças do antigo ramerrão! Assim se prosseguia em todos os intervalos da ópera.
Nestas festas por motivos profanos, principiava o espetáculo por um quadro simbólico, figurando personagens históricas, emblemas e brasões nacionais. Estandartes, armas, destroços,[ 7 ] regimentos, parques,[ 8 ] tambores, montículos de balas, eram os monumentos que apregoavam as glórias da pátria.
Que promiscuidade de sentimentos! Que entusiasmo!
Que risos! O povo desprendia-se de todos os seus cuidados e lazeres e cada qual queria ser o primeiro a rivalizar para a grandeza da festa! Era uma febre delirante, que extasiava a gente.
Não havia, como hoje, o egoísmo, a indiferença, a tibieza, a excentricidade que tem amortecido o entusiasmo do povo!
Que indiferença não se nota hoje para a exaltação dos brios nacionais e pátrios!…
Eram atores nos dramas: Bastos, Ladislau, Manoel Simões, Torquato Simões, Bernardino, o escrivão, major Leitão, Paiva, Lima; nas comédias: Gomes Neto, Manoel Tomás, Ferreira, Feijó, Miranda, Antunes, Teodoro, Batista, Luís Paiva, Teixeira, Goulart, pai — que faziam rir a bandeiras despregadas!….
A troça[ 9 ] dos estudantes do padre Sales, de propósito, confundia-se com o povo para pôr em prática suas travessuras e maroteiras!
Assim é que, nos intervalos, barulhados[ 10 ] por aquelas imensas ondas de povo, não podendo delas safar-se, ali comiam roscas, pastéis, bananas, jogando os resíduos nas velhas que cochilavam!
E quando acontecia despregar-se do céu copiosa chuva, que confusão! Amparado pelas esteiras de Jucutuquara, único abrigo, eis esse inúmero povo a acotovelar-se, a escorregar, a cair em trambolhões, pelas ladeiras tapizadas[ 11 ] de capim e muxinga,[ 12 ] sob as trevas de uma noite tempestuosa, apenas clareada pelos relâmpagos e pela cambiante luz dos poucos lampiões de quatro bicos, cheios de nojento azeite de peixe — clássica iluminação daquele tempo tão simples e feliz.
Mesmo assim, com todos esses transtornos, retiravam-se contentes e diziam os grupos pelas ruas: — Nhá mãe (uma mais espevitada), que peça! Que cena! Que toques de musga![ 13 ]
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)