Devo, porém, lembrar que nos Estados Unidos, o país das liberdades, um nosso ministro, por ser um pouco fusco,[ 1 ] foi mal recebido! Um oficial de nossa armada, por ser escuro, em Argel ficou só em um omnibus.[ 2 ]
Aqui, por dê-me cá aquela palha, ofendem-se esquisitas susceptibilidades, e eis disso um conflito, grave, que mais se ateia pelos mexericos e intrigas, consentâneos com o caráter volúvel de muita gente que não tem em que se ocupe, e cuja vida é de alvissareiros, ou antes de alcoviteiros. Se a polícia dispersasse esses ajuntamentos noturnos nos conventículos e tavernas, os nossos costumes seriam outros, e gozaríamos os foros de uma cidade civilizada.
Saí fora do assunto; como porém sou amigo de doutrinar o povo, creio que não levará o leitor a mal esta digressão, que foi bem associada aos últimos pensamentos.
Viremos de bordo, dizem os homens do mar, e copiemos o panorama moral que se reproduz agora mesmo em nossa imaginação.
Seguindo a mesma marcha dos sucessos nas festas civis ou profanas, as religiosas, sujeitas às mesmas influências físicas e morais, oferecem um quadro mais variante, porém um, enquanto à essência, mais sedutor pelo elevado pensamento que as presidia.
A mais antiga, aplaudida, e cuja narração inda hoje faz cócegas às velhas, que nesse tempo eram as mademoiselles do chic e do degagé,[ 3 ] com aqueles famosos trepa-moleques,[ 4 ] pentes de palmo e meio de altura, metidos em um cagucho[ 5 ] em forma de caramujo, era a denominada das onze mil virgens (estas solteironas punham os rapazes tontos) bonitas, rivais daquela Pelopea, praestanti corpore,[ 6 ] como nos diz Virgílio, com ares de patusco. Deviam de o ser, pois eram bretanhesas[ 7 ] (que Bretanha[ 8 ] fresca para os rigores deste verão; bem cobertinhas por um desses frios lençóis, que doce sono, que doces ilusões!…).
Eram chefes desse imenso esquadrão as santas Córdulae Úrsula, cujas imagens, lindíssimas, guardavam-se na capela nacional, e que, não há muito, as vi na Vila Velha deitadas em uma cama profana!…
Precediam a festa dessas heroínas cristãs bailes, máscaras,[ 9 ] valsas, levantamentos de mastro, representações teatrais, jardineiras,[ 10 ] bandos[ 11 ] em versos, que prendiam o povo nessa cidade por espaço de um mês, pois principiavam os brincos[ 12 ] a 29 de setembro e finalizavam no dia 1º de novembro.
Os estudantes da aula de latim eram os principais agentes de todos esses folguedos. Obtida a licença, o que tinha lugar no dia 1º de setembro, ao som de tambores, arvorados nas mãos uns bambus do brejo, em sinal de triunfo, a que chamávamos alabardas, percorria a chusma escolástica latina as ruas da capital e, para dar mais expansão e desafogo ao seu gênio, dirigia-se ao Romão, ocupado hoje pelo capitão Martinho, a beber caldo de cana — que lhe ofertava o velho Antônio, pai de Manoel Ferreira das Neves, mas com a condição de rodearem a engenhoca! Isso era o mais fácil! O amargo do trabalho era suavizado com a doçura do saboroso vinho de cana!
Desde então punha-se em atividade o estudo dos planos para o programa da festa. Na véspera (28 de setembro) era sensível a afluência do povo das nossas circunvizinhanças, cujas canoas atopetavam[ 13 ] os portos e cais, e cujos cavalos, escolhidos, rinchavam alegres nas praças, no Palame[ 14 ] e Campinho,[ 15 ] prevendo as lutas, a que eram afetos, para ganharem primeiros o marco ou baliza de sua veloz e fogosa carreira.
Pelas 11 horas uma dúzia de máscaras, decentes, representando um piquete de cavalaria, precedido de clarim e tambores, levava por comandante um sargento-mor com suas divisas, o qual anunciava em verso encassílabo[ 16 ] rimado o programa da festa. Esse papel era quase sempre confiado ao velho e apaixonado Manoel Tomás de Paiva, homem sisudo, e que era então porteiro da assembleia provincial. Com que facécia, com que gesticulação engraçada não recitava ele o seu bando? As velhas orgulhavam-se por vê-lo gamenho,[ 17 ] e ficavam recordando os amores antigos no pendebant cib ore![ 18 ] Eis uma amostra do pano:
Minha gente, aqui estou, eu não morri,
Desde o ano passado adoeci;
Meteu-se-me grande dor nessas cadeiras[ * ]
Resultado das minhas feiticeiras…
As calças e ceroulas estavam frouxas,
Sem sentir, me caíam pelas coxas.
Soltou a diarreia; era tão forte
Que quase atravessou do sul para o norte.
No dia seguinte, à meia-noite em ponto, um surdo rumor se ouvia por todos os ângulos da festiva cidade. Foguetes do ar, soltos pausadamente, anunciavam que volvíamos para o despertar da aurora. Pouco a pouco se amiudavam com o crescimento das vozes, que iam se fazendo mais distintas.
Já bruxuleavam os frouxos clarões do dia. Nuvens áureas pelos revérberos da febeia luz se agrupavam, formando colunas com lindas cornijas e espaçosos capitéis. Pendiam delas dúplices franjados, e enroscavam-se frocos pelo arco desse formoso camarim. Imensa escadaria tendo no fundo um sólio[ 19 ] augusto recamado de safiras, orlado de rendas de finíssimo ouro, se ostentava majestosa, para dar assento ao rei da criação. Os mais finos pincéis não imitariam esse quadro tão grandioso, e tão cheio de poesia! Já ele assomava nos primeiros degraus, dardejando os raios de seu poder criador.
Ovídio, o poeta mais rico de imaginação, não pôde ser indiferente a essa cena encantadora! Ele a pintou soberba e grandiosa, quando a traduziu nos versos latinos de sua primeira Metamorfose, no livro segundo. Regia solis erat sublimibus alta columnis, Clara micante auro, fiam mas que imitante pyropo.[ 20 ]
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)