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50 tons de azul em Safira


Reler Safira, livro infantil de Sérgio Blank – com ilustrações de Mara Perpétua -, tem o gosto e o gesto de uma redescoberta: da literatura infantil feita no Espírito Santo, do lavor imprescindível de seu autor.

Na tese de doutorado defendida por Ivana Esteves, em 2015, junto à Universidade Federal do Espírito Santo, há um delineamento do modus operandi da literatura para crianças em terras capixabas. A autora demonstra que, independentemente da natureza do financiamento destinado à publicação de seus livros (seja público, por meio de editais; misto, por meio de leis de incentivo; ou privado, por negociação direta dos detentores de direitos em escolas e empresas), os escritores de obras infantis, no contexto estudado, são aqueles que preponderantemente atuam na divulgação e distribuição dessa produção, muitas vezes desdobrando-se como contadores de histórias, oficineiros e gestores culturais e, na ausência de um sistema literário plenamente constituído, transmutando-se em agentes comerciais. Outro modo de funcionamento da dinâmica literária infantil detectado por Esteves (2015) em seu estudo é a relação interessada entre escola e literatura, com a produção sob encomenda de obras que atendam à demanda pedagógica por textos ficcionais com propósitos educativos, nem sempre estão a serviço da complexificação da visão de mundo dos sujeitos e da problematização dos valores sociais instituídos. Mas, na contramão da dinâmica mais recorrente no Estado, não é por nenhuma dessas vias que Safira chegou à 5ª edição.

Blank atuou, historicamente, em oficinas literárias com internos de hospitais psiquiátricos e unidades profissionais, no entanto, não foi por essa via – o trabalho como oficineiro – que chegou às mãos dos leitores pequenos e às escolas. Também atuou como gestor cultural, por exemplo, quando foi editor das obras literárias contempladas por aquela que talvez seja a mais importante política cultural no Espírito Santo (os editais da Secretaria de Cultura do Estado) – e nunca se locupletou desse lugar em favor de Safira. Tem sido um formador de leitores por meio de rodas de leitura, junto à Biblioteca Pública do Estado, mas também aí não se explica o sucesso de seu livro; já que, de Blank, podemos dizer mais ou menos o que Mário de Andrade disse do amigo Carlos Drummond de Andrade, nas primeiras décadas do século passado: contrariam-se, ali, com ferocidade, uma inteligência aguda, uma sensibilidade afiada e uma timidez inaferrável. E eu acrescentaria ao insólito mosaico um quase ceticismo em relação à própria obra.

Isso porque, desde a publicação de Vírgula em 1996, tivemos de esperar mais de quinze anos para ver o nome de Blank em nova capa. A reedição de sua obra completa – até o momento – está sendo realizada, em dois volumes, pela editora Cousa: Os dias ímpares, lançado em 2011, que reúne seus cinco livros anteriores; e a novela infantil sob lupa. Sobre o volume de poemas, o poeta declarou algumas reservas críticas, mas, aparentemente desprendido da vaidade narcísica, optou por manter integralmente o originalmente publicado, como um gesto de respeito à própria história à história das obras. Já a novela infantil, em fase de acabamento, será lançada no próximo dia 15.

Um dos mais importantes poetas de sua geração no contexto literário do Espírito Santo, Blank sempre desafiou os leitores. Se nos intrigam em Estilo de Ser Assim, Tampouco, Pus, Um,, A Tabela Periódica e Vírgula a ironia, os cortes inesperados, as aproximações insólitas, as imagens originais, o ritmo irregular e contundentemente marcado – também não encontraremos  na obra infantil um autor ameno e edulcorado. Não mesmo. Safira não é só um bom livro para crianças: talvez esteja entre os melhores já escritos e publicados no Espírito Santo – e aí a chave, quem sabe, para sua boa acolhida de público e crítica, desde a primeira edição, em 1991.

A obra não nega a inerente natureza formativa presente em toda obra para crianças – conforme já pontuado por estudiosos como Peter Hunt, na Inglaterra, ou Regina Zilberman, no Brasil –, contudo, não dá aos leitores, nem mesmo os pequenos, o trabalho pronto e acabado. Ensina, porque não moraliza – e saímos encantados com Safira porque ela pode ser tão ruim e tão boa quanto qualquer um de nós. É preciso que quem se disponha a ler disponha-se, igualmente, a participar da produção de sentidos que cooperem no processo formativo característico da literatura para crianças.

O narrador em terceira pessoa, em movimento complementar com as imagens produzidas por Mara Perpétua, já na primeira página, nos apresenta a Caneta Safira, como “magra e bonita”; na situação inicial, ficamos sabendo que ela, um dia, rompeu com sua praxe e acordou tarde, restando pensativa e cheia de perguntas. Está dada ao leitor a pista para aquilo que talvez encontre paralelo em toda grande narrativa: quando se faz uma fissura – mesmo que mínima – no ordinário, no habitual, no cotidiano é que se apresenta uma situação que nos obriga à problematização de tudo quanto restava assente, apaziguado, tranquilo.

Nas páginas seguintes, a narrativa vai espargindo elementos que permitam a identificação do leitor infantil com a protagonista: ela também não sabe escrever, era nova e estava aprendendo e, tal como qualquer criança, ao tentar produzir seus primeiros traços, só encontra a si mesma refletida no espelho. Outro elemento que propicia a provável identificação do leitor infantil com Safira é seu egocentrismo, já que ela se julga superior aos demais e rechaça aqueles que não lhe dão a importância que ela supõe ter. O leitor infantil, se capturar algo das ações da caneta Safira algo daquilo queé próprio do processo de reinvenção de si mesmo (ou seja, a detecção de uma visão ingênua e sua superação, a partir do embate com o Outro), pode ir realizando, no processo de apropriação do texto literário, a dupla natureza da literatura. De um lado, um mergulho na dimensão eminentemente subjetiva, pessoal, individual da existência; de outro, uma opção pela compreensão ampliada do mundo e pela inserção na vida social, via reflexão crítica e via ações de transformação da realidade.

Quando Safira se dispõe a considerar aqueles que atravessam seu caminho (como fez com o papel, seu amigo), a ser generosa (como foi com a almofada, a quem doa a coroa), a aprender com o outro (como ocorre quando a formiga foge sem explicação) é aí que pode, enfim, crescer. E esse processo de crescimento permite que ela aprenda que pode escolher aqueles a quem quer perto de si – não porque é arrogante e não julga aos demais bons o suficiente, mas porque tem o direito de se preservar (como o faz quando o mosquito sinaliza que quer “sugar” o seu “sangue azul”).

No entanto, como qualquer possível leitor, Safira tem seus altos e baixos – o que torna o livro e a personagem ainda mais “humanos”. Pouco adiante, na narrativa, resolve afastar-se de uma flor muito perfumada, porque, numa recaída de arrogância, continua supondo que seu sangue azul é melhor que a qualidade dos demais seres com os quais partilha a existência. E – por pura insegurança – desenha uma borracha, para apagar um gesto terno do lápis. No entanto, mais uma vez, o Outro (no caso, a borracha, que se recusa a participar do plano da caneta azul) ensina à Safira que, às vezes, a única atitude sensata é ficar “pálida de arrependimento”, e mudar de atitude.

Pouco a pouco, a caneta Safira vai aprendendo que as pessoas têm suas fraquezas e diferenças o sangue não é só azul, é também vermelho…), e que precisamos, sempre, do Outro, que nos signifique, que nos ajude a produzir sentidona existência – um tinteiro que reponha nossa carga, quando nos sentimos vazios por dentro. Vai aprendendo, também, quando o tinteiro tropeça e mancha tudo de azul, que não adianta a gente cruzar os braços diante do inesperado: o negócio é compreender que o acaso pode ser o pontapé de um céu estrelado.

Por fim, Safira aprende a lição mais bonita: a única coisa boa de ter sangue azul é poder grafar, em si mesmo, em tudo o que nos embala, enfim, no mundo, as palavras que dão sentido à nossa vida. No caso de Safira, em gesto de rebeldia, o que ela escreve escondido de sua mãe no lençol, para ter sempre consigo, foi a palavra “amigo”.

Todas essas ilações, da parte de quem lê, são um trabalho de mergulho no texto em busca daquilo que, para o leitor, é o sentido possível, já que a construção do texto reitera a marca do insólito, do inesperado e do alegórico que atravessa todo o restante da produção literária do autor. E é desse modo que o livro de Sérgio Blank nos emociona e nos convida ao pensamento – enfim, fazendo aquilo que de melhor um livro para crianças pode fazer: nos tornar mais humanos, no sentidomais azul (e agora sim: mais nobre) que a palavra pode ter.

[Por Maria Amélia Dalvi in Caderno Pensar – A Gazeta, 12/12/15]

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