O mastro, de que falei, era conduzido do Porto Velho para esta cidade em prancha[ 1 ] adornada de festões e galhardetes, iluminada por archotes e lanternas simetricamente colocadas, ao som de músicas. Rodinhas da sé, girassóis e pistolas cruzavam seus fogos pelo ar.
Aglomerava-se o povo no cais da Alfândega[ 2 ] ou no largo da Conceição,[ 3 ] onde o depositavam entre alas de coqueiros, sob arcos de murta, para daí, à noite, ser conduzido processionalmente ao largo do Palácio, hoje praça do Dr. João Clímaco. Entre outros, os seguintes versos determinavam o ponto de sua partida:
Amigos, adeus, té à noitinha
Pois espero-vos no largo da Igrejinha.
Se, durante o mês de outubro, davam-se chuvas torrenciais, que embargavam a festa dos máscaras, alguns gaiatos vestiam-se com roupas ordinárias, enlodavam-se no barro e, munidos de enormes bolos dessa substância, percorriam as ruas, jogando pelotas sobre os que encontravam e manchando as frentes das casas com os salpicos de uma papa mole que preparavam! Que gosto extravagante!
Em todos os dias, pela tarde, e muito especialmente nos domingos, os máscaras a pé infestavam a cidade. Não se falava, nem se cuidava de outra coisa.
Era esse o assunto das conversas nos grupos e nas famílias.
Tratava-se então do levantamento do teatro, como já descrevi, quando falei das festas civis.
Aqui porém dá-se uma representação histórico-mitológica que captava todas as atenções. Era ela a fábula de Perseu e Andrômeda. Esta, princesa de invejável formosura, provocou o ódio de suas companheiras e foi condenada a ser devorada pelas feras. Presa com grossos grilhões, foi amarrada a uma palmeira, nas solidões de um deserto, à borda de um escarpado rochedo. Perseu, destemido guerreiro, ouvindo os seus lamentos, a encontra nessa crítica e arriscada conjuntura, livra- a das prisões, promete salvá-la, se ela quiser desposá-lo, matando afinal o monstro, próximo a devorá-la.
Canta ela tristemente:
Ai de mim, triste coitada,
Princesa tão infeliz,
Da formosura o matiz
Ter-me à morte condenada!
Perseu lhe responde:
Senhora, eu sou Perseu
Que, ao passar por esta estrada,
Ouvi os vossos lamentos,
Arrancados de voss’alma.
Vim seguindo os vossos brados;
Vejo-vos em prantos banhada
Chorando a vossa desgraça.
Se me dás a mão d’esposa,
Já podeis estar segura,
Que essa fera malvada
Rojará hoje a seus pés
Sendo por mim degolada.
Ditos estes versos, sente-se o ramalhar da serpente por entre as folhagens do bosque. Andrômeda cai desfalecida e Perseu ataca a serpente, que o vulgo chamava bicha. Então principiava um dançado ao som da música, com posições difíceis, dando em resultado a morte do tal monstro.
O velho Chagas Coelho, escultor e pintor distinto, e depois de sua morte o Chagas Vidigal, eram os structores[ 4 ] desse horrível animal.
O ventre tinha um imenso bojo, com dois óculos por onde se estendiam as vistas do homem que ali se introduzia — terminando por uma enorme cabeça, deixando-se ver escancaradas fauces, a boca com dentes incisivos, uma farpada língua, e chamejantes olhos. Coberta de uma pele escamosa, terminava pelas coxas e pernas do indivíduo, vestidas da mesma forma, tendo por base grandes patas. Das espáduas nasciam asas, enfeitadas com plumas de diversas aves.
Mirabile dictu, horribile visu![ 5 ]
Ao receber o golpe fatal, jorravam da cerviz, golpeada, fitas encarnadas que fingiam sangue. Eis o desfecho do drama. O teatro apresentava o quadro de um bosque, enegrecido pela sombra que projetavam os arvoredos.
Tudo era muito original.
_____________________________
NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)