Como no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, nas festas do Espírito Santo, havia diversos divertimentos nas noites da véspera e [do] dia. Ardia um variado fogo artificial, e o José dos Perus, engenhoso nas mímicas e peloticas,[ 1 ] dava bem agradáveis espetáculos.
Prendia pelas extremidades uma colcha de chita à frente de uma barraca e fazia surgir ali no lado superior os seus galantes bonecos, por cujas manguinhas de suas camisolas introduzia ele os dedos polegar e médio, para dar-lhes o movimento muscular dos braços, firmadas as cabeças no índex por meio de um buraco que tinham no pescoço. Havia um ajudante, palhaço, que divertia o povo com seus espirituosos gracejos.
Desempenhavam esse papel o João Penca, o Maneta e o Teotônio de França. Tiravam a sorte em favor de algum espectador, que lá escorregava sua moeda de prata ou de ouro, entregando ao esperto bonequinho, que fielmente o punha no papo do Peru, saindo ele bem recheado! Que simplicidade! Que meio fácil de ganhar a vida!
O têmpora! O mores!
Acrescentaria aqui o Santos calunga:[ 2 ] nunquam te voltavite! Jamais voltareis!
Levantavam também os pardos os seus mastros em frente à igreja, prenuncio de seus festejos. Executavam a contradançacontradança[ 3 ] dos arquinhos, das enxadas, tomando parte pastores e pastoras com saiotes curtos, cantando canções ao som de violas e flautas; entre elas lembra-me da seguinte quadra:
Não danceis a barca,
Que vós não sabeis,
Vem dançar comigo,
Qu’eu te ensinarei !
Gritava lá dum canto um apaixonado, que nem boia via:
Bravos à trova.
Boa morte seca!…
Isto significava que o cujo queria molhar a goela…
E que tal o devoto!…
Além dos atos religiosos, que eram feitos com todo o recolhimento, e nos quais funcionava a música do major Paula, cujo instrumental compunha-se de um violoncelo, tocado por ele, de duas rabecas, uma do mestre Inácio, professor da única cadeira de ensino primário, outra do padre doutor Alvarenga, e a vocal de habilidosos cantores de orelha, Marciliano, Inácio dos Remédios, insigne barítono, Manoel das Neves, José Francisco, Costa, Nantibus, que entoavam o seu cantochão figurado, os pardos inventaram, para maior realce, uma marinhagem,[ 4 ] que entoava canções em louvor da Virgem. Preparavam um navio com sua oficialidade de guerra, agaloados conforme suas patentes, e percorriam as ruas da capital.
O navio de madeiras leves, bem arqueado, com suas velas largas, disparadas bandeiras e flâmulas, era carregado pelo povo. Ao dar fundo no largo da igreja, saltavam em terra oficiais, marujos e gajeiros,[ 5 ] cantando:
Demos fundo, companheiros,
A terra vamos brincar:
A senhora d’Assunção
Vamos todos festejar.
Viemos lá desses mares,
Corridos da tempestade,
Procurar melhor abrigo,
No porto desta cidade.
Durante o percurso, ou passeio, os marujos cantavam a seguinte balada:
Triste vida do marujo,
A qual delas mais cansada,
Por uma triste soldada[ 6 ]
Passa tormentos.
Exposta às fúrias dos ventos,
Quer no verão, quer n’inverno,
Que nos parece o inferno A tempestade.
Seguiam-se outros cânticos, e terminava por uma chula:[ 7 ]
Louvores em terra,
Louvores no mar:
Viva nosso patrão,
Que sabe bailar.
A barriga é grande,
Como um samburá;
As perninhas feias,[ 8 ]
Como um sabiá.
Faustino Sipipira, empregado da tesouraria da Fazenda e moço inteligente, compôs um entremez que denominou — Souza Lobo, um pardo, louco pelos festejos da Boa Morte. Ardente devoto da pinga, vindo da roça, perdeu-se com a família nas ruas e entre a multidão andava de esmo à sua procura. Feliz achado para uma composição cômica.
Tinha apenas um ato e bem perfeito. Figurava o Souza Lobo e a família da roça, cuja filha um esperto raptara na noite do mastro, aproveitando a confusão que lhe dera oportunidade para essa empresa amorosa.
Esse manuscrito desapareceu.
A mesma sorte teve uma igual composição do nosso talentoso e infeliz Dr. Luís José Ferreira de Araújo, que para as festas de São Miguel enredou com graça e muita originalidade os grotescos episódios que se sucedem nas romarias dos foliões — Do Espírito Santo na roça — e satirizou essa cáfila que desfruta a credulidade do povo.
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)